Foto: Miguel Monteiro
Há milênios, comunidades indígenas e tradicionais ao redor do mundo praticam a caça de subsistência como fonte essencial de alimentação. Contudo, a carne de animais silvestres, conhecida popularmente como ‘carne de caça’, ainda é pouco estudada pela ciência em relação aos seus conteúdos nutricionais, o que dificulta a avaliação de sua importância dentro da dieta das populações tradicionais que a consomem.
Em um estudo recém-publicado na revista Ethnobiology and Conservation, pesquisadores do Instituto Mamirauá e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) avaliaram a composição nutricional da carne de 26 espécies de animais, revelando diferenças significativas nos perfis nutricionais entre os tipos de carne e suas partes anatômicas.
📲 Confira o canal do Portal Amazônia no WhatsApp
Nutrientes essenciais e segurança alimentar
A pesquisa conduziu uma revisão sistemática de 20 artigos científicos e documentos publicados ao redor do mundo, focando em 10 nutrientes essenciais: ferro, zinco, selênio, manganês, potássio, magnésio e sódio, além de proteína, gordura e ômega-6. Os autores compararam esses conteúdos nutricionais entre músculos e vísceras de diferentes espécies de mamíferos, aves e répteis.
O estudo encontrou que a carne dos músculos de répteis contém 60% mais ferro que a de mamíferos e 400% mais selênio que aves. Já a carne muscular de aves apresenta níveis 200% maiores de potássio e ômega-6 em comparação com mamíferos. A carne dos mamíferos destaca-se pelo alto teor de zinco.
Ao comparar as partes anatômicas, as vísceras mostraram-se mais ricas em minerais, como ferro e zinco, em todas as espécies. Ao mesmo tempo, vísceras de répteis têm 300% mais gordura que as de mamíferos, enquanto as vísceras de mamíferos são ricas em proteínas e ômega-6.
Implicações para a saúde e sustentabilidade
Os resultados da pesquisa destacam o valor nutricional da carne de caça, considerando o seu consumo sustentável por comunidades tradicionais que, muitas vezes, têm pouco acesso a outras fontes de proteína e micronutrientes. As carnes provenientes da caça de subsistência são importantes fontes de ferro, zinco e selênio, por exemplo, nutrientes que frequentemente são encontrados em deficiência dentro de grupos vulneráveis em comunidades tradicionais, como mulheres e crianças, afetadas, especialmente, pelo avanço ilegal do garimpo, exploração de madeira, pesca industrial, caça ilegal e grilagem de terra em seus territórios. A deficiência destes nutrientes pode levar a complicações graves de saúde, como anemia, comprometimento do sistema imunológico e atrasos no crescimento.
“A carne de caça oferece uma fonte muito importante de macronutrientes – como lipídios e proteínas – e de micronutrientes – como ferro e zinco – para populações que, muitas vezes, carecem de alternativas viáveis, e frequentemente sofrem com fome ou falta de micronutrientes” comenta Daniel Tregidgo, pesquisador do Instituto Mamirauá e um dos autores do estudo.
“Aqui na Amazônia, onde a população enfrenta os piores índices de insegurança alimentar e desnutrição do Brasil, já sabemos que o consumo da carne de caça é associado com menos anemia em crianças ribeirinhas, e que pode substituir a proteína na época de escassez de peixes”, acrescenta o pesquisador.
Além disso, o consumo de vísceras, muitas vezes negligenciado, pode maximizar a ingestão de nutrientes, complementando a dieta e promovendo uma maior diversidade nutricional. No entanto, os autores alertam para riscos associados ao consumo excessivo das vísceras, uma vez que elas podem conter concentrações elevadas de metais pesados, sendo aconselhável cautela, especialmente para crianças.

Leia também: Jacaré-açu, o maior e mais temido jacaré da Amazônia
Os pesquisadores enfatizam a necessidade de políticas que equilibrem a conservação da biodiversidade com o direito dessas comunidades tradicionais à segurança alimentar. Restringir o acesso dessas populações à carne de caça de maneira proibitiva pode levar ao aumento dos casos de desnutrição, ao passo que a caça insustentável pode acarretar o declínio populacional de animais silvestres e ao comprometimento da integridade de ecossistemas.
“Nossa revisão mostra como as carnes de caça são ricas nutricionalmente, mas também como os valores nutricionais variam muito entre as espécies. Essas informações são essenciais para desenvolver políticas e práticas para combater a desnutrição nessas comunidades, no contexto de caça sustentável para preservar as populações de animais silvestres tanto para conservação, quanto para saúde humana”, conclui Daniel.
Dessa forma, faz-se necessário a implementação de estruturas de governança que considerem a segurança alimentar e nutricional de comunidades tradicionais e o consumo sustentável de animais silvestres. Abordagens participativas para definir e aplicar regulamentações são essenciais para alcançar cenários ecologicamente sustentáveis e socialmente justos.
O Instituto Mamirauá é referência em projetos participativos que desenvolvem práticas de manejo dos recursos naturais de forma integrada e sustentável. O Instituto foi pioneiro em implementar, em parceria com comunidades tradicionais e órgãos governamentais, o primeiro sistema de manejo sustentável do pirarucu, espécie crucial para a segurança alimentar de populações tradicionais e para o equilíbrio dos ecossistemas amazônicos.
A implementação do manejo gerou um aumento de mais de 600% na população de pirarucus nas áreas manejadas, espécie que sofreu forte declínio populacional devido à pesca comercial. Além disso, o Instituto Mamirauá vem desenvolvendo outras práticas de manejo sustentável, como o manejo de jacarés, de abelhas nativas sem ferrão e o manejo florestal. O Instituto Mamirauá também promoveu a criação das primeiras Reservas de Desenvolvimento Sustentável do país, as Reservas Mamirauá e Amanã, que juntas somam mais de 3 milhões de hectares e têm desempenhado um papel fundamental para o fortalecimento de projetos de manejo participativo e comunitário.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Instituto Mamirauá, escrito por Miguel Monteiro