Estudo mostra que animais aquáticos da Amazônia dependem de rios sem usinas para sobreviver

Estudo analisa 343 mil quilômetros ao longo de 6 mil rios da Bacia Amazônica e mostra a importância de rios de fluxo livre para espécies migratórias de peixes, botos e tartarugas-da-Amazônia.

“A gente precisa pensar nas bacias ou nesses sistemas de água doce quase como um coração, um sistema vivo”, diz Bernardo Caldas, autor do estudo que faz um diagnóstico de como se conectam os corredores de água doce na Bacia Amazônica.

O estudo é o primeiro a combinar duas camadas de análise em 6 mil rios amazônicos, que somam 343 mil quilômetros. A primeira camada revela a conectividade atual e futura dos rios, apontando as alterações que ocorrerão na paisagem caso todas as hidrelétricas projetadas para a região sejam construídas. A segunda camada traz a ocorrência de peixes migratórios, tartarugas migratórias e botos naquelas mesmas águas, mostrando a importância dos rios de fluxo livre, aqueles cujo curso não é interrompido por barragens.

O estudo ainda vai além: avalia, por exemplo, como os rios amazônicos se conectam aos lagos formados pela inundação no período da cheia, importantes para o ciclo de vida dos grupos de animais analisados. “Esses ambientes mais sensíveis, como as áreas de várzea, acabam sendo os mais impactados pelas hidrelétricas”, explica Caldas.

O pulsar das águas amazônicas, traduzido pela dinâmica de vazante e cheia, é determinante para a saúde do ecossistema aquático e tem sido perturbado por diversos fatores, como mudanças climáticas, desmatamento, mudanças no uso do solo, urbanização desordenada, expansão de estradas e construção de barragens hidrelétricas.

No caso das hidrelétricas, sua presença impacta a saúde deste pulsar e prejudica o ciclo de vida e o movimento de animais rio acima e abaixo. Elas reduzem a quantidade de sedimentos que levam nutrientes para todo o sistema e afetam os povos da floresta não só pelo aumento das enchentes, mas também porque eles têm no peixe uma das principais fontes de nutrição e subsistência. A redução do estoque de peixes no Rio Xingu após o início das operações da usina de Belo Monte é um exemplo do que pode ocorrer com a instalação de hidrelétricas na Amazônia.

Usina Hidrelétrica de Jirau, em Rondônia: risco para os botos do Rio Madeira. Foto: Divulgação/Programa de Aceleração do Crescimento

Barrados no rio

Uma das motivações do estudo foi mapear a conectividade das águas amazônicas e sua relevância para as espécies. Os pesquisadores analisaram 44 espécies de peixes migratórios, todos os botos de água doce e uma espécie de quelônio, a tartaruga-da-amazônia (Podocnemis expansa), única conhecida por migrações superiores a 500 km. As espécies migratórias de longa distância são importantes para compreender a necessidade de se ter rios conectados em toda a bacia.

Distribuição atual das espécies de peixes (a), tartaruga (b) e botos (c) analisadas pelo estudo ao longo da Bacia Amazônica. Fonte: https://doi.org/10.1111/csp2.12853

O Rio Madeira é um exemplo emblemático de fragmentação de habitat, que deixou uma população de botos tucuxis (Sotalia fluviatilis) confinada entre as barragens das usinas de Santo Antônio e Jirau, além de prejudicar a migração de peixes e causar o declínio de populações, como foi o caso da dourada (Brachyplatystoma rousseauxii), um tipo de bagre. Também as enchentes na região, que passaram a ocorrer com maior intensidade e frequência, têm castigado cidades e aldeias indígenas do entorno.

“Hoje, se a gente for ver a planta energética principalmente do Brasil, que tem a maior área amazônica e os rios com maior possibilidade de geração hidrelétrica, a gente vê que houve uma proliferação em cascata”, 

diz Mariana Paschoalini Frias, também autora do estudo.

Projetos de barragens existentes (em amarelo) e potenciais (em magenta). Fonte: https://doi.org/10.1111/csp2.12853

A pesquisa identificou em toda a Bacia Amazônica 434 barragens construídas ou em construção e 463 propostas em diferentes estágios de planejamento.

No pior cenário de desenvolvimento hidrelétrico, em que todas as barragens propostas seriam construídas, 18 dentre os 93 rios de fluxo livre classificados pela pesquisa como longos e muito longos – acima de 500 quilômetros – perderiam seu status de corredores de conectividade de água doce, incluindo o Rio Amazonas, que foi considerado pelo estudo como um dos rios prioritários para manter sua conectividade.

“Para a gente isso foi uma surpresa, porque não tem um projeto de hidrelétrica no Amazonas, mas o sistema ficaria tão saturado e tão comprometido que mesmo o Amazonas perderia a dinâmica e as funções importantes dentro da bacia como um todo”, diz Caldas.

“Se todas as hidrelétricas que estão planejadas para a Amazônia forem construídas até 2030, a gente vai perder praticamente toda a conectividade”, diz Mariana Frias. “Em todos os rios, começa a aparecer aquela linhazinha se não vermelha, alaranjada. Se não alaranjada, ela fica um pouco mais rosa. Ela vai decrescendo ali no seu índice de conectividade, mostrando o quanto a gente está perdendo”,

completa.

No mapa de cima, é possível observar a conectividade dos rios na Bacia Amazônica no cenário atual; no mapa de baixo, um cenário futuro considerando a hipótese de todas as hidrelétricas propostas para a região serem construídas. Quanto mais vermelho, maior o impacto. Fonte: https://doi.org/10.1111/csp2.12853

De acordo com o estudo, mais de 20 espécies migratórias de longa distância, além dos botos, estariam ameaçadas pela instalação de barragens ao longo dos rios Amazonas, Negro, Maranhão, Napo, Ucayali, Preto do Igapó-Açu, Beni e Uraricoera – todos eles considerados corredores prioritários para a biodiversidade.

Frias destaca o conjunto de hidrelétricas projetado para o Rio Tapajós como crítico. “Se fossem construídas essas hidrelétricas, a gente teria aí pelo menos quatro grupos isolados de botos, por exemplo”. Também o projeto da usina binacional com a Bolívia, no Rio Mamoré, prejudicaria a conectividade da Bacia Amazônica entre Bolívia e Brasil. “Isso iria aumentar a fragmentação populacional de botos na região e pioraria o cenário para os grandes bagres migradores”, diz a pesquisadora.

Repensar a matriz energética 

Especialistas alertam que, embora muitos rios de fluxo livre estejam dentro de áreas protegidas, nem sempre as águas contam com proteção específica. “A gente tem poucos mecanismos que nos ajudem a conservar essa dinâmica dos rios”, diz Caldas. Ter um diagnóstico mais abrangente sobre a situação das águas é importante para orientar a política de gestão e a tomada de decisões.

Dados do MapBiomas Água mostram a tendência de redução da superfície de água entre 2001 e 2021 na Amazônia brasileira, em relação à média histórica de 1985 a 2022, sendo as causas mais prováveis as mudanças climáticas e o desmatamento.

“A redução de superfície da água afeta os ecossistemas aquáticos e sua biodiversidade”, diz Carlos Souza Jr., coordenador técnico e científico do MapBiomas. “A química da água é modificada e o isolamento de corpos hídricos restringe o fluxo da fauna aquática. O isolamento também é agravado pelas represas de grande e pequeno porte, que modificam o fluxo hídrico e da fauna”.

Estudo publicado em 2019 já mostrava que o desenvolvimento de infraestrutura, como a implementação de hidrelétricas, impactam a superfície das águas na Amazônia.

Especialistas indicam repensar a matriz energética brasileira, melhorando o desempenho das hidrelétricas já instaladas e priorizando a energia eólica e solar. No entanto, o interesse por novos complexos hidrelétricos continua pulsando em alguns setores. É o que mostra a recente fala de Aloísio Vasconcelos, ex-presidente da Eletrobras, a favor da construção do complexo de hidrelétricas no Rio Tapajós durante evento na Confederação Nacional da Indústria (CNI).

“O Rio Tapajós é um dos poucos grandes rios do mundo que ainda tem fluxo livre”, diz Alexandre Gross, especialista em infraestrutura e conservação do WWF. 

“Existe na Europa uma tendência de desmontar barragens e recuperar o fluxo livre dos rios. Eles já estão numa fase de desmonte de barragens. A gente ainda está tentando evitar que elas aconteçam”.

Alexandre Gross

Segundo Gross, desde a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, em 1984, existe no imaginário brasileiro a ideia de que precisamos de grandes hidrelétricas. “Pinta-se a energia hidrelétrica como limpa e esse é um conceito que a gente tem que quebrar. Ela não é uma energia limpa, dadas todas as consequências socioambientais que ela gera”, diz. “O governo Lula mencionou que, se precisasse, ele faria de novo Belo Monte. Isso nos assusta”, alerta.


*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, com texto escrito por Sibélia Zanon

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