Maurício Zouein, da UFRR, foi indicado ao mais tradicional prêmio literário do Brasil, o Prêmio Jabuti 2023, com a obra ‘A ideia de civilização nas imagens da Amazônia 1865-1908’.
“Mostrar por meio de documentos, a capacidade humana do desrespeito à vida” é o objetivo principal do livro ‘A ideia de civilização nas imagens da Amazônia’, segundo o próprio autor, o professor Dr. Maurício Zouein. A obra foi indicada pela Câmara Brasileira do Livro (CBL) ao Prêmio Jabuti 2023, premiação literária mais importante do Brasil, que completa 65 anos nesta edição.
A obra busca, através de fotografias antigas da Amazônia, compreender as relações sociais, políticas, econômicas e culturais transformadas em narrativas visuais. Ela é o resultado de 40 anos de estudos.
No livro estão contidos registros raros, datados de 1865 a 1908, de fotografias, cartões-postais e álbuns financiados por governadores do Amazonas e Pará, enviados para outros estados do Brasil.
Parte das imagens mais importantes do livro vieram da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos (EUA). Ao g1, Zouein, que é professor da Universidade Federal de Roraima (UFRR), contou que precisou negociar por mais de um ano e meio com a instituição dos Estados Unidos para ter acesso a fotografias históricas da Amazônia.
Maurício apresentou seu trabalho e só então conseguiu uma licença de pesquisador da Amazônia junto à instituição, conseguindo a liberação das imagens. Sem a autorização, cada imagem custaria R$ 9 mil para ser colocada no livro.
Segundo ele, o motivo de ter esperado tanto tempo pelas fotos foi o fato de querer passar aos leitores da obra a versão mais real possível das imagens, com cores e texturas originais.
O livro teve a indicação aceita na categoria de Ciências Humanas, que faz parte do eixo de Não-Ficção do Prêmio Jabuti. Lançado em agosto do ano passado pela Editora Telha, o trabalho conta com mais de 130 fotografias raras da Amazônia, parte do acervo pessoal do professor, que também é colecionador.
A inscrição da obra no Prêmio Jabuti partiu da própria editora Telha, que arcou com toda a documentação e custos do processo. O professor Maurício contou ter ficado surpreso quando recebeu um email da Câmara Brasileira do Livro confirmando a indicação.
“Eu falei: ‘como assim? Cara, meu Deus do céu, velho’. E aí, o coração do velho disparou, aquela coisa toda, aquela felicidade. O reitor [da UFRR] ligou e perguntou se eu já tinha visto. Naquele dia, eu quase não consegui dormir”,
contou.
A obra também foi enviada pela editora Telha à editora Globo, que se interessou e o enviou a redatores da revista Galileu, uma das revistas científicas mais conceituadas do país. O livro ganhou uma reportagem de mais de dez páginas na publicação.
Devido à reportagem, a obra virou notícia em portais de notícia. Então, Zouein e a editora Telha, se deram conta de que ela tinha um grande potencial. Com a repercussão, o autor conta que recebeu o reconhecimento de muitas pessoas, entre elas, autores que eram referência para ele quando aluno, como a autora Lúcia Santaella.
Hoje, segundo a Editora Telha, já são cerca de 1500 exemplares vendidos em todo o mundo. No dia do lançamento local, que ocorreu no Teatro Municipal de Boa Vista, foram vendidos mais de 200 exemplares da obra.
O livro partiu da tese de doutorado do professor, que foi “aprovada com distinção” por professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Isso significa que o conteúdo da pesquisa era digno de ser publicado em formato de livro. O autor optou por publicar a obra com o selo da UFRR, para demonstrar sua gratidão com a instituição.
Mas a curiosidade sobre seu objeto de estudo começou antes mesmo de Zouein entrar na universidade e perdurou por mais de 40 anos. O autor contou sobre a mensagem da obra e todo o processo de escrita do livro, desde a origem até o lançamento.
Mensagem da obra
O livro propõe uma reflexão sobre como as pessoas da Amazônia foram retratadas por fotógrafos europeus no final dos anos 1800 e início de 1900. Segundo o autor, as riquezas culturais e sociais das pessoas, eram desvalorizadas e ocultadas das fotografias, com o objetivo de valorizar a cultura dos estrangeiros.
“A imagem foi utilizada naquele determinado tempo e espaço, para mostrar as pessoas como se precisassem ser “civilizadas”. Quando se tratava de civilização, [as pessoas da Amazônia] eram [mostradas como] pobres e quando mostradas ao mundo, eram exóticas”,
simplificou Zouein.
Por trás das expedições fotográficas, existia um interesse dos estrangeiros em mostrar como a Amazônia deveria passar por um processo civilizatório. Assim, os europeus buscavam colocar suas percepções de mundo acima da cultura das populações locais.
O professor conta que os indígenas eram tirados de suas casas, tinham seus cabelos cortados e eram vestidas com roupas de não-indígenas. O processo, na linguagem da época, era chamado de “asseamento”, e servia para “não espantar” os estrangeiros de cidades como Manaus e Belém, que disputavam o título de “Paris dos trópicos” na época.
“Quantas vezes a nossa história foi jogada por debaixo do tapete para que esses projetos de progresso e civilização pudessem existir?”, questionou.
Para Maurício Zouein, ao mostrar como tudo isso acontecia através da pesquisa, o livro ajuda a pensar em como o processo de opressão cultural ainda acontece e se repete ao longo dos anos.
“O que eu quis é passar um sentimento de esperança. De vontade e coragem para mudar, perceber que a vida a vida é complexa, mas é nessa complexidade que você se acha e que você pode fazer diferença”, disse.
Na visão do autor, três fatores foram importantes para a indicação do livro ao Prêmio Jabuti: a metodologia da pesquisa; o resultado, que chamou a atenção por contribuir com questões sociais discutidas atualmente e focadas nos direitos de classes sociais desfavorecidas; e abordagem sobre a Amazônia, o que ele considera uma marca da região Norte.
Vida para a pesquisa
Natural de São Paulo, Zouein migrou para Roraima aos 10 anos de idade. Aos 18 anos, o professor foi servir o Exército Brasileiro. Inspirado por um livro que ganhou do pai e por como as pessoas do Norte do país se expressavam, Maurício brincava de se perguntar o que as coisas ao seu redor representavam para ele.
Certo dia, ao encontrar um homem de origem indígena, Zouein pensou: “O que esse rapaz representa para mim e para os outros?”. Foi aí que nasceu a sua curiosidade sobre o objeto de pesquisa ao longo da vida: a representação dos indígenas.
A relação de Zouein com fotografias históricas da Amazônia começou em 1983, ano em que foi convidado para fazer parte da Comissão de Criação do Parque Yanomami (CCPY). O período marcou o início da curiosidade do professor e, 40 anos depois, resultou no lançamento do livro.
Durante a graduação, Zouein transitou entre diferentes áreas de estudo das ciências humanas, como antropologia, sociologia e história, em busca de como poderia aplicá-las à sua curiosidade sobre as pessoas, adquirida ao longo da vida.
“Eu me via na responsabilidade de acompanhar aquele meu sentido curioso. Fui tendo contato com metodologias, com disciplinas que eram mais científicas. A partir daí eu fui testando cada disciplina que eu tinha, testando a minha curiosidade”, explicou o professor.
A área que mais se encaixou à curiosidade do professor, que na época era aluno, foi a semiótica. A semiótica é uma ciência que estuda os signos, ou as significações por trás da linguagem, seja textual ou visual, dentro de um contexto social e cultural. Posteriormente, essa metodologia virou sua filosofia de vida.
O trabalho de conclusão de curso de Zouein, apresentado em 2001, tratou sobre a representação das pessoas indígenas na mídia. Com a graduação em comunicação e um mestrado em psicologia, Maurício optou por fazer o doutorado em história.
Na época, o professor já colecionava livros raros de fotografias da Amazônia, que se tornariam os objetos principais da sua pesquisa. Junto à sua orientadora do doutorado, decidiu unir o útil ao agradável e fazer sua tese sobre a Amazônia. Para ele, a decisão foi considerada um desafio.
É da orientadora do doutorado de Maurício, Andréa Casa Nova Maia, a apresentação do livro, que consta nas primeiras páginas. Durante os estudos, ambos entenderam que as pessoas da Amazônia eram entendidas através das imagens. Assim, a curiosidade que Maurício adquiriu pelas fotos lá em 1983, se uniu ao seu objeto.
Com o material da sua coleção, formado por álbuns originais, Zouein começou a escrever a tese de doutorado. Para ele, trabalhar com originais, acrescentou qualidade ao trabalho, pois “ninguém estava me falando como era, criei um discurso próprio em cima do conhecimento da época”.
Maurício conta que a escrita da tese durou cerca de três anos e meio. Por isso, os avaliadores compararam o professor a um pesquisador “das antigas”, devido à paciência com que ele trabalhou seu objeto de pesquisa.
“Pra mim foi um elogio. Eu não tenho pressa em trabalhar. Trabalho devagar, o que é legal, até porque é o prêmio Jabuti, não é? “,
disse entre risos.
Importância da família
Maurício fez questão de destacar o papel da família ao longo da carreira. Segundo ele, a vida pessoal está diretamente ligada à vida como pesquisador. O professor conta que sempre teve seu trabalho incentivado pelos pais e pela esposa.
“A minha vida sempre foi atrelada a esse ofício. Só que antes eu não tinha consciência disso. Hoje vejo que tive uma família que viu qual seria o meu potencial. Não sei como eles viram isso, porque era bagunceiro (risos). Mas viram e me incentivaram”, relatou.
O livro contém uma dedicatória logo na primeira página, que diz “Para Karen”. Ele conta que tanto os pais, quanto a esposa, Karen Zouein, foram essenciais para o desenvolvimento do seu trabalho ao longo da vida.
“A vida me presenteou com a minha esposa, se não fosse ela, eu não estava aqui. Minha esposa e a família dela sempre gostaram da minha profissão. Não posso dizer que foi sorte, mas acho que são sementes que você vai plantando ao longo do caminho”, disse emocionado.
Próximo livro
O próximo livro do professor está 50% pronto. Previsto para conter 700 páginas, vai tratar das representações do corpo humano, desde à pintura rupestre, à inteligência artificial (I.A). Segundo ele, nos dias de hoje, o ser humano não precisa mais olhar para outro com o objetivo de representá-lo.
A proposta da segunda obra será mostrar como a representação dos corpos é construída e como o olhar do seres humanos sobre os outros foi transformado ao longo do tempo. “Como alguém imagina uma outra pessoa, está mais ligado ao imaginário do que a uma representação real”, explica.
*Por João Gabriel Leitão, do g1 Roraima