Foto: Dênio Simões/Agência Brasília via Flickr
O combate ao tráfico de vida silvestre ainda é um tema de pouca eficiência na Amazônia. Quem defende essa perspectiva é Antônio Carvalho, especialista no combate ao tráfico de vida silvestre da WCS Brasil (Wildlife Conservation Society), entrevistado do especial ‘Um grau e meio’, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM).
“A Amazônia ainda é esquecida em relação ao tráfico de animais pelo Brasil. Todos os órgãos de polícia e de meio ambiente têm a prerrogativa de atuar no combate ao tráfico de animais, mas como poucos servidores são especializados no assunto, o tráfico segue quase impune na Amazônia. A maioria dos servidores do Ibama está focada em garimpo e desmatamento, por isso, os mapas anuais de delitos ambientais não refletem a verdadeira situação de crimes contra a fauna”, avalia.

O especialista faz referência ao Diagnóstico de Delitos Ambientais, publicado pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), que mostra a pulverização dos crimes contra a vida silvestre na Amazônia, nas páginas 150 e 151.
Quais são os animais silvestres?
Os animais silvestres são aqueles não domesticados, que têm uma história evolutiva independente do ser humano e não dependem das pessoas para desempenhar qualquer função natural, como a reprodução. Esse grupo é composto por uma variedade de seres, desde insetos polinizadores, por exemplo, até mamíferos, como o lobo-guará e a onça-pintada.
A lei n° 5.197, de 3 de janeiro de 1997, proíbe a utilização, perseguição, caça e destruição de animais silvestres no Brasil, salvo em ocasiões de peculiaridade regional que estabeleçam a permissão para caça mediante regulamentação do governo federal.
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O tráfico de vida silvestre no Brasil
Carvalho atua no combate ao tráfico de animais silvestres desde 2019, quando publicou os primeiros artigos na área. Entre os casos já apoiados por seu trabalho – na WCS e antes, no Instituto Nacional da Mata Atlântica – estão denúncias de comercialização irregular de animais silvestres, como abelhas, no Mercado Livre e no MarketPlace do Facebook.
“Encontramos anúncios de venda de abelhas em caixas fechadas, saindo de toda parte no Brasil para outras regiões onde as espécies não são nativas, e fizemos a denúncia em artigo científico. Todos os anúncios do Mercado Livre foram derrubados, porém, meses depois, surgiram novos. Nosso trabalho sensibilizou, por meio da distribuição da informação, inclusive as próprias plataformas. Mas isso volta, então não podemos perder de vista. Mais do que casos pontuais, divulgar informação sobre as rotas de tráfico, promovendo a compreensão global do problema na cadeia de exploração relacionada às espécies, é muito mais interessante para contribuir com os órgãos policiais e de fiscalização”, explica Carvalho.
Segundo o especialista, o caso mais emblemático recente envolveu uma investigação internacional sobre apreensões conjuntas das espécies mico-leão-dourado e arara-azul-de-lear em 2023 e 2024. Sua equipe conseguiu levantar dados de apreensões dos últimos 30 anos que mostraram o aumento recente do interesse pelas duas espécies, alertando sobre a possibilidade de um zoológico indiano ser o principal receptor desse tráfico.
Carvalho também cita como caso atual a comercialização irregular de carne de tubarão (importada pelo Brasil de países como o Uruguai e Taiwan) para consumo na merenda escolar.
“O Brasil é o maior consumidor de carne de tubarão: são 15 mil toneladas sendo consumidas anualmente. Na maioria das vezes, são espécies ameaçadas de extinção, contaminadas com mercúrio Essa é uma carne que não deveríamos estar consumindo”, comenta.
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Especificamente na Amazônia, Carvalho destaca o problema da venda ilegal de carne de tracajá e da tartaruga da Amazônia. Os animais, que costumam servir de alimento tradicional a famílias ribeirinhas, sendo a segunda fonte de proteína para essas populações, viraram símbolo de status e passaram a rechear os pratos de eventos em cidades como Manaus.
No começo deste ano, a prefeitura de Careiro (AM) foi multada por servir, em jantar oficial, carne de tartaruga ameaçada de extinção.
“O consumo de tartaruga só está regulamentado na cidade de Manaus. Por aqui, temos algumas peixarias que vendem peixe e tartaruga de criadouro. Mas o desafio está na lavagem de animais, porque, no criadouro, vai demorar cerca de 7 anos para ter um animal grande e no ponto de abate. Então os criadores acabam também recebendo tartarugas, prontas pro abate, pescadas na região”, conta o especialista.
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Como proteger os animais silvestres do tráfico
Para Carvalho, a prioridade é mudar a Lei de Crimes Ambientais para tipificar como crime ambiental o tráfico de animais silvestres e considerar a prática um delito grave, com pena de reclusão.
“Nacionalmente, temos trabalho de apoio em alterações de leis, principalmente a Lei de Crimes Ambientais, que ainda hoje abre a possibilidade de o traficante não ser punido; o cara que trafica 200 aves por dia tá no mesmo tipo penal de uma senhora que tem um papagaio em casa, por exemplo. É preciso mudar a Lei de Crimes Ambientais para tipificar o tráfico de animais silvestres e considerá-lo um delito grave, com pena de reclusão”, defende.
Em segundo lugar, o especialista ressalta a importância de os órgãos competentes adotarem uma visão global do crime ambiental antes de determinar a pena e o valor pecuniário, de multa. Muitas vezes, por exemplo, o crime de lavagem de dinheiro está associado ao tráfico, cita.
O terceiro ponto trata da conversão da multa para o reparo do dano, segundo Carvalho, uma vez que as espécies apreendidas nas operações são encaminhadas para centros de triagens que precisam desses recursos para comportar a demanda.
Cada unidade da federação abriga, no mínimo, um CETAS (Centro de Triagem de Animais Silvestres) ou um CETRAS (Centro de Triagem e Reabilitação de Animais Silvestres). Além dessas instalações, há também parcerias com criadores de animais legalizados, que recebem animais resgatados e trabalham na reabilitação para soltura.
“Não há mais condições de receber [animais silvestres resgatados do tráfico] porque não tem dinheiro, nem espaço. Raramente esses animais chegam em condições de serem devolvidos à natureza. Deveria ser de passagem, mas os animais ficam muito tempo ali, se recuperando, sendo tratados. E o traficante que foi detido, segue praticando crimes sem obrigação de pagar a multa, porque ele não perde direitos se não pagá-las pela Lei de Crimes Ambientais”, relata.
Em quarto lugar, complementando o ponto anterior, Carvalho argumenta que os autores de crimes ambientais deveriam perder direitos – retenção de passaporte e carteira de motorista ou a impossibilidade de conseguir empréstimos – a exemplo do que já ocorre em outros tipos de delitos, mas ainda não nos crimes ambientais.
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Mobilização e governança
O especialista destaca que é preciso ter mais debates públicos sobre o tema, com campanhas e ações de mobilização.
“Cabe a nós estar nesses espaços, não recusar convites, colocar na mídia o que está acontecendo e fazer campanhas. Já fizemos ações em oito aeroportos do Brasil, como a campanha ‘Há viagens que marcam vidas’, informando sobre o tráfico de animais e o impacto nas populações de animais silvestres. São esforços para sensibilizar as pessoas”.
Mais do que isso, reforça que é preciso uma estrutura de governança nacional sobre o tráfico de animais silvestres, com autoridades ambientais e órgãos policiais trabalhando em conjunto e de forma capacitada.
Carvalho menciona como exemplo da dificuldade de manter o trabalho contínuo a troca de delegados da Polícia Federal em um dos municípios que atua: “Em um ano de trabalho, lidei com quatro delegados diferentes na mesma fronteira. Como criar uma estratégia de trabalho conjunto e desenvolver operações dessa forma?”, questiona.
*O conteúdo foi originalmente publicado pelo IPAM, escrito por Bibiana Alcântara Garrido
