Terra Indígena Jacareúba-Katawixi está há mais de um ano sem proteção, afirma Idesam

Sem nenhuma justificativa oficial, o território que abriga indígenas isolados segue sujeito a invasões, desmatamento e até grilagem.

Há mais de um ano, a Terra Indígena (TI) Jacareúba-Katawixi está sem portaria de Restrição de Uso, medida que busca evitar invasões ao território que está na fase de estudos do processo de demarcação. Acontece que a situação desta TI é delicada, uma vez que se trata de uma área habitada por povos indígenas em isolamento, os Katawixi, que sofre forte pressão de desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras públicas e mineração ilegal. Em janeiro, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) publicaram a nota técnica Isolados Por um Fio: Riscos Impostos aos Povos Indígenas Isolados, que elenca riscos que afetam direitos fundamentais deste e outros povos em isolamento. Desde 2021, o Observatório BR-319 vem alertando e cobrando medidas para resguardar os Katawixi.

A portaria de restrição de uso é o mecanismo usado para controlar a entrada de não indígenas em áreas ocupadas por povos isolados. Esse mecanismo deve ser fortalecido tecnicamente, normativamente e deve ter mais investimento financeiro para que a proteção territorial seja efetiva. Uma decisão sem visão técnica pode comprometer a segurança dos isolados e de seus territórios, como o caso da TI Jacareúba-Katawixi que não teve sua portaria de Restrição de Uso renovada. A TI está no limite do Arco do Desmatamento e cercada por atividades de alto impacto como grilagem, tráfico, grandes empreendimentos como a BR-319, BR-230, BR-364 e BR-317, as hidrelétricas no rio Madeira e Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) nos afluentes da margem direita do rio Purus, além da expansão da fronteira agrícola da soja, pecuária e milho. “Neste sentido, nota-se que os riscos analisados neste estudo são apenas uma fração dos impactos aos quais os povos isolados estão expostos. Há múltiplos fatores que os satélites não identificam e que podem afetar a vida desses povos de maneira oculta. A irreversibilidade dos impactos significa o risco de extermínio desses povos”, diz a publicação.

A nota técnica Coiab e do Ipam apresenta como cinco dimensões de risco estão associadas, principalmente, com atividades ilegais que aumentam substancialmente a pressão sobre as TIs com povos indígenas isolados e são elas: jurídico-institucional (que diz respeito à demarcação do território), desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras públicas e mineração ilegal.

A nota também diz que a Amazônia brasileira tem 44 territórios com confirmação da presença de povos indígenas isolados ou em estudo para confirmação, que somam, juntos, 653 quilômetros quadrados (km²), o equivalente a 62% da área de todas as terras indígenas no bioma. Destes, 34% aguardam a conclusão do processo de demarcação e grande parte dos territórios onde vivem os isolados é compartilhada com outros povos, mas há também TIs de uso exclusivo de indígenas isolados dedicadas ao seu uso e reprodução cultural. A publicação indica que 12 destes territórios estão sob risco “alto” ou “muito alto”, e destaca quatro em situação crítica: TI Ituna/Itatá, no Pará; TI Jacareúba/Katawixi, no Amazonas; TI Piripkura, em Mato Grosso; e TI Pirititi, em Roraima.

“Dada a situação de isolamento, há especificidades no processo de demarcação dos territórios ocupados por povos isolados. Em alguns casos são assinadas Portarias de Restrição de Uso que visam garantir a proteção dos isolados e de seus territórios, respeitando o princípio da precaução”, diz trecho da nota, que segue: “Por vezes esse mecanismo pode se desdobrar no estudo de identificação e delimitação de um território, mas nem sempre isso acontece. O trabalho de pesquisa é executado por equipes técnicas especializadas da Funai, e visam apontar indícios da presença desses povos em uma região específica. A renovação ou não das portarias de restrição de uso cabe à presidência do órgão indigenista federal”. Enquanto outros passos do processo de demarcação não avançam, as TIs deveriam contar integralmente com a Restrição de Uso, mas não é o que ocorre no caso da Jacareúba-Katawixi.

Sobrevoo em Porto Velho, capital de Rondônia, na região da Amacro, em uma área com cerca de 8.000 hectares de desmatamento – a maior em 2022. Foto: Nilmar Lage/Greenpeace Brasil

Medidas de proteção 

Uma das autoras da nota, a pesquisadora Patricia Pinho, que é diretora adjunta de ciência do Ipam, explica que tomar medidas para a proteção do território de indígenas isolados não é uma concessão e nem trata de depender da boa vontade do governo, mas de um direito assegurado pela Constituição Federal. “Os povos indígenas isolados tentam manter a sua autonomia resistindo ao processo de colonização por meio de distanciamento da sociedade nacional e de outros povos indígenas. O Artigo 231 da Constituição Federal reconhece a autonomia desses povos em manter e fortalecer seus seus territórios e seu modo de vida. Uma medida que oficializa esse reconhecimento é o processo de regularização fundiária de um território, que se baseia no direito dos isolados permaneceram nestas áreas”, esclarece.

De acordo com a publicação, até junho de 2022, a ausência de mecanismo legal que garanta o princípio da precaução da sua segurança e de proteção do território dos Katawixi abriu precedentes para que a área seja ocupada por terceiros. “A Jacareúba-Katawixi tem 111 pedidos de Cadastro Ambiental Rural [CAR], lembrando ainda que mais de 95% do território é sobreposto por uma Unidade de Conservação [UC] federal de proteção integral”, diz trecho da nota técnica. A UC em questão é o Parque Nacional (Parna) Mapinguari, criado em 2008. A nota também revela que Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto, que também fica na área de influência da BR-319 e registra a presença de isolados, também está sob risco tendo 94% do seu território ocupado por registros de CAR.

Patrícia explica que, os povos indígenas isolados só estão efetivamente seguros quando o processo de demarcação dos seus territórios é concluído. “São necessários estudos, identificação e delimitação para depois ter uma declaração efetiva pelo Ministério da Justiça e, então, uma demarcação desse território. Somente quando a TI está homologada é que a gente fala que existe uma segurança institucional jurídica. Grande parte das TIs com povos indígenas isolados na Amazônia ainda não se encontram num estado de homologação e registro, o que as torna vulneráveis a invasões, desmatamento ilegal, queimadas, grilagem de terras, como, por exemplo através de grilagem por meio de um CAR fraudulento”, esclarece. Mesmo diante destas etapas do processo, a posse permanente dos territórios habitados por isolados deve ser reconhecida, independente da demarcação administrativa dessa área.

Pinho destaca que, atualmente, a TI Jacareúba-Katawixi está no eixo central da região de fronteira da expansão agrícola entre os estados de Amazonas, Acre e Rondônia, conhecida como AMACRO (sigla atribuída à região que compreende 32 municípios entre os três estados). “A nossa publicação se faz imprescindível para a próxima gestão federal sobre atentar para as politicas públicas robustas e eficientes em manter e assegurar o direito desses povos assegurados, dada relevância para proteção da floresta e sobrevivência dos povos originários, especificamente isolados”, disse Patrícia.

A nota técnica faz três recomendações: garantir os direitos indígenas fundamentais, fortalecer o caráter técnico da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e zerar as atividades ilegais nos territórios. O Observatório BR-319 procurou a Funai para saber se e quais medidas serão adotadas pela nova gestão para proteção da TI Jacareúba-Katawixi, mas não obteve resposta até a publicação desta edição. 

Licenciamento da BR-319 

A existência dos Katawixi é conhecida desde os anos 1970, mas só oficialmente confirmada em 2007, durante os estudos para o planejamento da construção das usinas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Na ocasião, foram encontrados não apenas vestígios da presença dele, como também servidores da Funai foram cercados por um grupo e ouviram gritos dos indígenas. Desde então, a TI esteve protegida por portarias de Restrição de Uso, com vigência de três anos, sucessivamente renovadas. A última, foi assinada em 14 de dezembro de 2018 pelo então presidente da Funai, General Franklimberg Ribeiro de Freitas, e venceu em dezembro de 2021.

A importância dos povos isolados no licenciamento ambiental da BR-319 já foi abordado pelo agora gerente de Povos Isolados da Coiab, Luiz Oliveira Neto, que também é um dos autores da nota. Ele explica que os Katawixi, provavelmente, são do povo Kawahiva, sobreviventes de diversos massacres e dispersos em pequenos grupos entre o Amazonas, Rondônia e Mato Grosso, ou de outro povo do tronco linguístico Arawá, como é o caso dos Paumari. Independente disso, eles tiveram o seu território dividido pela abertura da BR-319. “Essa divisão do território dos indígenas, por si só, é catastrófica. O grupo que vive na TI Jacareúba-Katawixi pode ser de dois ou mais povos. Eles podem tanto habitar a sudoeste do Trecho do Meio, quanto a oeste do trecho entre Humaitá e Porto Velho. Além disso, há de se considerar que essa região tem ecossistemas únicos, que são os campos amazônicos”, diz Neto. A Restrição de Uso é o único instrumento que existe para proteção destes indígenas. “Por isso, a TI Jacareúba-Katawixi está sob Restrição de Uso, para estudos, para saber qual o grupo étnico vive ali, que recursos eles precisam para a manutenção do seu modo de vida, quais áreas eles usam e, enfim, entender quais são as necessidades deles para a delimitação do território com segurança. A não renovação da portaria é um ataque à existência dos indígenas isolados”, acrescenta.

Em julho de 2022, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) emitiu a Licença Prévia para o trecho do meio da BR-319. A medida está em desacordo com recomendações feitas pelo próprio órgão e coloca em risco a segurança jurídica das obras no segmento. 

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Projeto de cosméticos sustentáveis assegura renda de comunidades na Amazônia

O Projeto Cosméticos Sustentáveis da Amazônia é uma parceria público-privada que congrega 19 associações de produtores focadas na extração da biodiversidade amazônica.

Leia também

Publicidade