Foto: Ricardo Stuckert/PR
O Serviço Copernicus para as Alterações Climáticas (C3S) acaba de divulgar relatório em que confirma que 2024 foi o ano mais quente já registrado mundialmente e o primeiro em que a temperatura média global ultrapassou a marca de 1,5 grau Celsius (°C) acima dos níveis pré-industrialização (1850 e 1900). O número era o limite de elevação determinado no Acordo de Paris para evitar desastres climáticos mais graves.
Aproximadamente 44 % da superfície do planeta foi afetada por estresse térmico forte e extremo, a temperatura da superfície do mar chegou a 20,87°C, valor acima da média dos últimos 30 anos, além da quantidade de vapor de água na atmosfera ter subido 5%.
De acordo com o documento, as mudanças induzidas pelo homem continuam a ser a principal causa das alterações climáticas, ao lado de outros fatores, como o El Niño Oscilação Sul (Enos), que contribuíram para as temperaturas incomuns observadas durante o ano, resultando no agravamento de incêndios florestais e inundações de grande porte.
“Esse relatório é muito preocupante, porque ele confirma o que já vinha acontecendo desde 2023, quando a temperatura sofreu um grande aumento; os cientistas previam aumento de 1,3°C por causa do Enos, o terceiro El Niño mais forte do registro histórico, que foi de meados de 2023 até abril de 2024, mas já em 2023 ele chegou perto de 1,5°C”, comenta para o Jornal da USP o climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
“Depois que o El Niño acabou, imaginou-se que poderia haver uma pequena queda, porém, ao contrário, a temperatura aumentou mais ainda, o primeiro semestre de 2024 foi muito quente, e a situação continuou pelo resto do ano. O Copernicus compara com registros que começaram em 1850, mas na verdade, estudos arqueológicos comprovam que nunca a temperatura foi tão alta desde o último período interglacial, há 125 mil anos.”
O C3S é coordenado pela Comissão Europeia e pelo Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo (ECMWF), cujos cientistas têm monitorado os principais indicadores climáticos e reunido dados de temperatura diários, mensais e anuais sem precedentes ao longo do ano passado. De acordo com o relatório, 2024 foi o ano mais quente nos registros de temperatura global desde 1850. O conjunto de dados de reanálise global ERA5 do C35 indica que a temperatura média global foi de 15,10°C, 0,72°C acima da média entre 1991 e 2020, e 0,12°C acima de 2023, o ano mais quente registrado anteriormente ano registrado, o que equivale a 1,6°C acima da estimativa da temperatura de 1850 a 1900, designada como o nível pré-industrial.
O documento relata que os últimos dez anos, entre 2015 e 2024, foram os mais quentes já registrados. A temperatura média global mensal excedeu 1,5°C acima dos níveis pré-industriais em todos os meses desde julho de 2023, exceto em julho do ano passado. O ano de 2024 foi o mais quente para todas as regiões continentais, exceto a Antártida e a Australásia, bem como para partes consideráveis do oceano, particularmente o Oceano Atlântico Norte, o Oceano Índico e o Oceano Pacífico ocidental. Foram registradas três estações quentes recordes para a época correspondente do ano: inverno boreal (dezembro de 2023 a fevereiro de 2024), primavera boreal (março a maio) e verão boreal (junho a agosto) com 0,78°C, 0,68°C e 0,69 °C, respectivamente, acima da média de 1991 a 2020, e um novo recorde de temperatura média global diária foi alcançado em 22 de julho, com 17,16°C.
“A resposta às mudanças climáticas deve basear-se em evidências. O futuro está nas nossas mãos, uma ação rápida e decisiva ainda pode alterar a trajetória do nosso clima”, afirma Carlo Buontempo, diretor do C3S.
Estresse térmico
Em 2024, a temperatura média anual da superfície do mar (TSM) sobre o oceano, excluindo os polos, atingiu um nível recorde de 20,87°C, que está 0,51°C acima da média de 1991 a 2020. A quantidade total de vapor de água na atmosfera atingiu um valor recorde em 2024, cerca de 5% acima da média de 1991-2020, de acordo com a ERA5, mais de 1% superior ao de 2016 e 2023, os anos que registraram os valores mais altos no período, respectivamente. Os dados da temperatura do ar à superfície, da temperatura da superfície do mar e dos dados de vapor de água total da coluna são provenientes do ERA5 do ECMWF Copernicus Climate Change Service, que combina observações locais e baseadas em satélite com modelos numéricos de previsão meteorológica de última geração. Os dados do gelo marinho provêm de uma combinação de informações do ERA5 e do EUMETSAT OSI SAF Sea Ice Index v2.2., índice elaborado pela Organização Europeia para Exploração de Satélites Meteorológicos (EUMETSAT).
Temperaturas extremas e alta umidade contribuem para níveis aumentados de estresse térmico, prejudicando as condições de vida de pessoas, animais e plantas. Grande parte do Hemisfério Norte viveu mais dias do que a média com pelo menos “estresse térmico forte” durante 2024, e algumas áreas tiveram mais dias do que a média com “estresse térmico extremo”. Em 10 de julho de 2024, a área do globo afetada atingiu um novo recorde máximo anual, quando cerca de 44 % da superfície do planeta foi afetada por estresse térmico forte e extremo, 5% a mais do globo em comparação com o máximo médio anual. Os dados de estresse térmico baseiam-se no Índice Climático Térmico Universal (UTCI) do conjunto de dados ERA5-HEAT. “Estas altas temperaturas globais, juntamente com os níveis recordes globais de vapor de água na atmosfera em 2024, significaram ondas de calor sem precedentes e chuvas intensas, causando miséria a milhões de pessoas”, alerta Samantha Burgess, líder estratégica para o Clima da ECMWF.
Carlos Nobre observa que houve um grande aumento da temperatura dos oceanos, principalmente do Atlântico Norte e do Equador, mas também boa parte do Tropical ao Sul, além do Pacífico Ocidental e do Oceano Índico baterem recordes, assim como a maioria dos continentes. “Isso levou nos últimos dois anos a um aumento global de 5% da umidade do ar em relação à média registrada entre 1991 e 2020; quando o oceano fica mais quente ele evapora, entretanto o aumento da evaporação tem sido exponencial, com mais água na atmosfera você gera chuvas mais intensas, secas prolongadas, ondas de calor, toda uma condição que também gera incêndios florestais em número recorde”, ressalta.
“Em Los Angeles, nos Estados Unidos, por exemplo, os ventos chegaram a 160 quilômetros por hora, expandindo rapidamente o fogo, com o tempo seco, a vegetação estava inflamável, não se sabe a causa, descargas elétricas ou um fogo de origem humana.”
A professora Luciana Rizzo, do Instituto de Física (IF), explica ao Jornal da USP que os eventos climáticos extremos, que temos presenciado inclusive no Brasil, são causados pela combinação entre o aquecimento global e a variabilidade climática natural.
“Por exemplo, quando o El Niño, que faz parte da variação natural do clima, soma-se a um planeta mais quente, com mais vapor d’água na atmosfera, resulta em eventos climáticos mais intensos, como os que presenciamos no Brasil em 2024, entre eles a seca histórica na Amazônia, com grandes rios atingindo níveis baixos recordes, e o desastre que ocorreu no Rio Grande do Sul em abril e maio”, afirma.
“Para falar de clima no Brasil, você tem que citar a Amazônia, que é a grande responsável pela manutenção da umidade e da chuva que ocorrem na América do Sul. As pesquisas sobre os ‘rios voadores’ que avançam desde a Amazônia até a Antártida mostraram que existe um transporte de vapor, minerais e gases que percorrem esses ‘rios’ atmosféricos, e isso é afetado porque a Amazônia está sendo fortemente castigada pelas mudanças climáticas”, afirma o professor Luiz Augusto Machado, também do IF.
“O interessante é que quando observamos esse aumento da temperatura as consequências não são lineares. Na Amazônia, tivemos em 2022 e 2023 as maiores cheias, e em 2024 a maior seca; temos secas lá no Pantanal, o Pantanal que a gente conhecia, das inundações, esse ano não aconteceu, então as consequências se acumulam”, diz.
Reduzir a vulnerabilidade
O pesquisador do IEA reforça a necessidade de impedir que a elevação de temperatura no planeta continue a subir acima da marca de 1,5°C, estabelecida no Acordo de Paris de 2015, e reforçada na COP 26 em 2021, em Glasgow, na Escócia. “É um desafio enorme, apenas reduzir as emissões em 43% até 2030, como foi decidido na COP 26, já é uma tarefa difícil, e se só zerarmos as emissões em 2050, o aumento poderá chegar a 2,5 graus; é um suicídio ecológico para o planeta se isso acontecer”, diz Carlos Nobre.
Luiz Machado afirma que o aumento do vapor de água na atmosfera significa a ocorrência de eventos extremos que causam sofrimento a milhares de pessoas, especialmente as mais vulneráveis. “Além das metas de redução de emissões, agora é preciso se adaptar, então é extremamente importante haver políticas que permitam essa adaptação, por exemplo, no caso de tempestades severas, um serviço de predição imediata que exista de fato e reduza a vulnerabilidade da população”, recomenda o professor do IF.
Luciana Rizzo reforça que a causa do aquecimento global é a emissão de gases de efeito estufa para a atmosfera, como o dióxido de carbono (CO2) e o metano (CH4), bilhões de toneladas a cada ano, majoritariamente pela queima de combustíveis fósseis, e desde a Revolução Industrial, a humanidade tem sistematicamente transferido carbono, que estava estocado no subsolo há milhões de anos, para a atmosfera.
“Estamos mexendo nas ‘engrenagens’ do clima. Então, do ponto de vista físico, a única forma de reverter essa situação é atingir a neutralidade de carbono. Isto é, reduzir drasticamente as emissões e aumentar os sumidouros, como reflorestamento e tecnologias de sequestro”, diz. “Fisicamente, a solução é simples. Mas do ponto de vista social, econômico e político, é um enorme desafio. Implica abandonar o uso de combustíveis fósseis. Implica promover mudanças substanciais no sistema econômico vigente.
“Importante pontuar que o clima possui uma inércia. A temperatura está aumentando, e vai continuar aumentando por um tempo, mesmo que as emissões de carbono fossem zeradas amanhã. É como tentar parar um caminhão em alta velocidade” (Luciana Rizzo)
“Estamos vivendo uma nova realidade. Então precisamos de sistemas de prevenção de enchentes, cidades permeáveis. Ondas de calor serão mais frequentes em alguns locais. Secas também. Precisamos aliar previsão de clima com ações para proteger a população”, diz ela.
“Por exemplo, se uma seca intensa está prevista, é preciso agir de antemão, garantindo abastecimento de água para populações vulneráveis”, conclui a professora do IF.
O Copernicus é um componente do programa espacial da União Europeia (UE), sendo o seu principal programa de observação da Terra, que funciona através de seis serviços temáticos: Atmosfera, Alterações Climáticas, Emergência, Terra, Marinha e Segurança. Fornece dados e serviços operacionais de acesso gratuito, proporcionando aos utilizadores informações fiáveis e atualizadas relacionadas com o nosso planeta e o seu ambiente. O programa é coordenado e gerido pela Comissão Europeia e implementado em parceria com os Estados-membros, a Agência Espacial Europeia (ESA), EUMETSAT, ECMWF, Agências da UE e Mercator Ocean, entre outros.
O relatório completo pode ser acessado neste link. O ECMWF é uma organização intergovernamental independente apoiada por 35 Estados. É ao mesmo tempo um instituto de investigação e um serviço operacional 24 horas por dia, 7 dias por semana, produzindo e divulgando previsões meteorológicas numéricas aos seus Estados-membros. O ECMWF opera dois serviços do programa de observação da Terra Copernicus da UE, o Serviço Copernicus de Monitorização da Atmosfera (CAMS) e o Serviço Copernicus para as Alterações Climáticas (C3S). O ECMWF também contribui para o Serviço de Gestão de Emergências Copernicus (CEMS), que é implementado pelo Centro Comum de Investigação da UE (JRC).
O ECMWF expandiu a sua localização nos seus Estados-membros para algumas atividades. Além de uma sede no Reino Unido e um centro de computação na Itália, escritórios com foco em atividades realizadas em parceria com a UE, como o Copernicus, estão em Bonn, na Alemanha. Este ano, as organizações envolvidas na monitorização do clima global ECMWF, Nasa, Noaa, UK Met Office, Berkeley Earth e a Organização Meteorológica Mundial (OMM) fizeram um esforço concertado para coordenar a divulgação dos seus dados, destacando as condições excepcionais experimentadas durante 2024.
*Com informações da Comunicação do ECMWF. Conteúdo publicado pelo Jornal da USP.