Estudo amplia área ocupada por esse tipo raro de ecossistema costeiro na divisa do Pará e Amapá
Um novo estudo estima que a área de manguezais no entorno da foz do rio Amazonas, na divisa entre o Pará e o Amapá, é pelo menos 180 quilômetros quadrados (km2) maior do que se conhece. De acordo com artigo publicado em agosto na revista científica Current Biology, a extensão total desse tipo de vegetação de transição entre o ambiente terrestre e o marinho chega a 1.713 km² na grande desembocadura do curso de água, equivalente a cerca de 15% dos manguezais brasileiros. As plantas presentes na região apresentam uma particularidade: são uma mistura de espécies adaptadas a ambientes de água doce, como várzeas, com as de manguezais típicos, onde a salinidade é alta.
No solo enlameado do chamado delta do Amazonas, um tipo de foz formado por vários canais e pequenas ilhas, foram encontradas florestas com espécies herbáceas como as aningas, acompanhadas de árvores típicas de várzeas que parecem fora do hábitat padrão, como corticeiras e alguns tipos de palmeiras, inclusive pés de açaí (Euterpe oleracea) e de buriti (Mauritia flexuosa). Normalmente, os manguezais são dominados por árvores adaptadas a ambientes de água salgada ou salobra. “Mas o Amazonas despeja tanta água doce no Atlântico que a salinidade é próxima a zero em seu delta e por dezenas de quilômetros ao longo da costa na direção norte”, diz o oceanógrafo Angelo Bernardino, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), principal autor do artigo, ao lado de colegas brasileiros, dos Estados Unidos, da Austrália e da Escócia.
Por definição, os manguezais são um tipo de ecossistema costeiro encontrado em áreas tropicais e subtropicais. São caracterizados por espécies vegetais que se adaptaram a tolerar a presença de água do mar. Suas árvores resistem a altas concentrações de sal e podem ultrapassar 35 metros (m) de altura. O tamanho é uma resposta à força das marés e também à renovação dos nutrientes pela dinâmica local: como a água vinda do oceano pode chegar a alturas de até 10 m, as plantas precisam ser grandes e ter raízes igualmente robustas, que emergem do solo e ajudam a segurar o impacto. Em razão da ação da água salgada, árvores pouco tolerantes ao sal não resistem ao passar do tempo, e o ambiente é tomado pelas espécies de mangue.
Mas não é isso o que ocorre em algumas áreas vizinhas à foz oceânica de certos rios. A existência de manguezais com plantas de água doce se deve ao regime de chuvas e à influência da foz de um grande rio sobre trechos de uma área costeira. “No período seco, de redução da vazão dos rios, a água salgada penetra mais nos manguezais”, explica o oceanógrafo Mário Soares, coordenador do Núcleo de Estudos em Manguezais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Nema-Uerj). “Na época chuvosa, existe maior presença de água doce. Isso impede que o ambiente seja dominado por espécies vegetais de água salgada.” Segundo Soares, que não participou do estudo sobre o delta do Amazonas, mas realiza pesquisas na região há anos, os manguezais situados na divisa do Pará com o Amapá destoam do que é observado em grande parte do Brasil.
Acompanhar a influência dos sedimentos transportados pelo Amazonas, a chamada pluma do rio, em diferentes pontos de sua foz, foi o objetivo de uma expedição chefiada por Bernardino em abril deste ano. A viagem faz parte do programa Perpetual Planet Amazon Expedition, da National Geographic Society, dos Estados Unidos, que promove incursões científicas à bacia do Amazonas, desde a região dos Andes até o Atlântico. A equipe coordenada pelo pesquisador da Ufes explorou 11 florestas de mangue ao longo do delta do Amazonas e coletou dados sobre água, solo, salinidade, composição vegetal das florestas e estoques de carbono dos ecossistemas.
Além de notar a presença de espécies de água doce, que, teoricamente, não deveriam estar nos manguezais, a expedição encontrou algo curioso. Na primeira parada, próximo à comunidade do arquipélago de Bailique, a cinco horas de barco de Macapá, capital do Amapá, os solos tinham salinidade extremamente baixa, perto de zero partes por milhar (‰). “O Amazonas é o maior rio do mundo em volume de água. Não há outro lugar com tanto sedimento chegando aos mangues na costa”, comenta Bernardino. Estima-se que 3 milhões de litros d’água do Amazonas cheguem ao oceano a cada segundo próximo à ilha de Marajó, na costa do Pará. Esse total representa quase 20% da água escoada para o mar por todos os rios da Terra. A massa de sedimentos acumulada desde os Andes, no período de um mês, é equivalente ao peso do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro.
Cerca de 100 km ao norte do arquipélago de Bailique, nos arredores de Sucuriju, uma das pontas do estado do Amapá, a influência da pluma do Amazonas ainda era presente, mas menos dominante. Devido à maior presença de água do Atlântico, a salinidade nesse trecho ficava entre 5‰ e 11‰, de sete a três vezes menor do que a taxa média numa área de oceano. Como resultado da baixa salinidade, os solos desses manguezais no delta do Amazonas são também muito ácidos, ao contrário dos que costumam ser encontrados no restante do Brasil.
A geóloga Valdenira Santos, do Núcleo de Pesquisas Aquáticas do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), conta que foram mapeadas áreas de manguezais formados apenas por árvores da espécie popularmente conhecida como siriúba (Avicennia germinans), também presente na foz do Amazonas, a mais de 230 quilômetros da desembocadura do rio, mais para dentro do continente. A siriúba é uma espécie arbórea típica dos manguezais clássicos, onde a salinidade é elevada. A princípio, não deveria ocorrer em regiões afastadas das águas salgadas do Atlântico. É uma situação diferente da descrita no artigo de Bernardino, mas ilustra a disseminação desse tipo de ecossistema em lugares inesperados. “Não sabemos ainda os mecanismos que fazem com que essas populações de manguezal se estabeleçam em zonas com completa ausência de influência das águas do mar”, comenta Santos.
Além de abrigar espécies vegetais e ser a morada de muitas espécies animais, como aves, caranguejos e peixes, os manguezais também têm um papel significativo no sequestro de gás carbônico (CO2), principal gás de efeito estufa, da atmosfera. Por serem pobres em oxigênio, os solos lamacentos dos manguezais não estimulam a decomposição da matéria orgânica que armazenam. Partes de vegetais e árvores que, em outros ambientes, normalmente apodreceriam e liberariam novamente CO2 para a atmosfera permanecem preservadas no fundo desses ecossistemas costeiros. Na prática, os manguezais funcionam como sorvedouros de carbono.
Esse processo é provavelmente ainda mais intenso na parte norte da costa do Brasil sob influência da pluma do Amazonas. Os sedimentos do rio transportados para o mar carregam grande quantidade de matéria orgânica. Por isso, a análise da evolução da quantidade de carbono estocada no solo dos mangues do delta do Amazonas pode servir como um termômetro das atividades humanas na bacia do rio. Parte dos resíduos orgânicos produzidos pelo desmatamento e pela introdução de atividades agropecuárias acaba nos mangues da região, onde fica preservada. Medir os níveis de carbono acumulados em árvores de manguezais e no solo, diz Bernardino, pode ser um indicador do avanço de fenômenos como o desmatamento nas últimas décadas.
Segundo a edição divulgada em setembro deste ano de um relatório sobre a situação global dos manguezais, feito por um conjunto de entidades ambientais não governamentais que participam da Global Mangrove Alliance, a extensão coberta por esse ecossistema no planeta diminuiu 5.245 km2 (3,4% do total) desde 1996. No entanto, o trabalho aponta que as áreas de manguezal com maior crescimento nos últimos anos são as situadas na desembocadura de rios, como o Indragiri, em Sumatra, na Ásia, o Amacura, na Venezuela, e, principalmente, o Amazonas. A boa notícia pode esconder um dado preocupante: a área dos manguezais teria aumentado nesses trechos da costa devido à intensificação do desmatamento. Isso faria, de acordo com o relatório, com que os rios carregassem mais sedimentos para sua foz, ampliando os trechos do litoral aptos a serem ocupados por esses ecossistemas. Outra possível explicação: o aumento da extensão dos manguezais seria decorrente de aprimoramentos nas técnicas de mapeamento dessas formações.
Essa situação, aliada ao aumento global do nível do mar em razão das mudanças climáticas, também pode provocar uma espécie de interiorização dos manguezais. Artigo de pesquisadores da Europa e do Brasil, publicado em maio de 2022 na revista Science of the Total Environment, analisou imagens de satélite e identificou um aumento de 157 km² na área de manguezais nos últimos 38 anos só na costa do Amapá. De acordo com o trabalho, o crescimento se deveu provavelmente à elevação do nível dos oceanos, que teria empurrado esse tipo de ecossistema costeiro continente adentro.
*Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui, escrito por Guilherme Eler.