Uma nova análise publicada pela ONG Imazon, sediada em Belém do Pará, reacende as acusações contra a redução da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, feita pelo governo através de Medida Provisória no fim de dezembro de 2016. Criada há apenas dez anos, a Flona Jamanxim perdeu 57% da sua área original de 1,3 milhão de hectares, quase duas vezes o tamanho da área metropolitana de São Paulo. Da redução total de 743 mil hectares, 438 mil foram adicionados ao Parque Nacional do Rio Novo.
Até aí, sem polêmica. Mas outros 305 mil hectares, um quarto da antiga Flona, viraram parte de uma nova Área de Proteção Ambiental (APA), a mais branda categoria de proteção brasileira, que permite propriedade privada — leia-se, nesse caso, legalização de terras invadidas dentro dos seus limites. Caso vinguem outras alterações feitas por emenda parlamentar após a edição da Medida Provisória, a Flona Jamanxim pode deixar de existir.
Altas taxas de desmatamento, grilagem e crimes violentos dentro da Flona Jamanxim a tornaram uma das mais problemáticas unidades de conservação (UC) federais. Desde a sua criação, em 2006, era crescente a pressão de grupos ruralistas pela redução de seus limites.
A alegação era de que ela foi imposta sobre terras já ocupadas. Ambientalistas temiam que a redução viesse, e rebatiam que a maior parte das ocupações dentro da Flona ocorreu após ela ser estabelecida. Em setembro de 2016, quatro meses antes da redução, o Ministério Público Federal enviou um ofício ao Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) advertindo que a mudança poderia elevar os níveis de desmatamento e de violência na região.
Os dados divulgados pelo Imazon enfraquecem o argumento da ocupação prévia da Flona e confirmam uma análise de 2009, do próprio ICMBio, a qual era contra a redução da Flona além de uma fração de 70 mil hectares (3% da área original), e afirmava que dois terços das ocupações ocorreu depois da criação da área protegida.
Antes ou depois
“Se o objetivo era reduzir a tensão naquela região, isso não será atingido, porque na verdade o poder público cedeu de forma unilateral. É um equívoco total e nós vamos pagar caro por ele, diz João Paulo Capobianco, ex-secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão Marina Silva, que foi responsável pelo plano BR-163 Sustentável. Capobianco chamou de presente de natal a grileiros a criação de uma APA que incorpora um naco da Flona do Jamanxim, um passe livre para continuar grilando UCs na Amazônia.
Do outro lado, o ICMBio, gestor das UCs federais e responsável técnico pela medida, defendeu que a transformação de 24% de Jamanxim em uma categoria de UC branda permite encerrar a fase de conflitos, abre caminho para a regularização fundiária e mantém algum grau de proteção ambiental.
“O que mudou foi o modelo de enfrentamento, baseado em ações de comando e controle. Ele estava se esgotando e nós não estávamos conseguindo reverter a situação [de crimes ambientais]. A mudança é uma aposta em outro modelo, que traga a possibilidade de regularização fundiária numa área crítica, e também de regularização ambiental, que estanque o processo de desmatamento e proteja o resto da Floresta Nacional”, diz Paulo Carneiro, diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação do ICMBio, responsável pela proposta final de modificação da Flona Jamanxim. “A criação da APA mostra que não estamos querendo nos livrar do problema, a gente continua lá”.
Segundo o estudo do Imazon, entre 2010 e 2016 sextuplicaram de 55 para 352 o número de Cadastros Ambientais Rurais (CAR) registrados dentro da área original da Flona Jamanxim. Esses registros, instituídos pelo Código Florestal de 2012 – mas que já existiam no Pará desde 2009, são gerados por qualquer um que esteja em posse de terra, com título ou não, e determinam os seus limites e suas partes que devem ser protegidas, como as de Reserva Legal e de APP (Área de Preservação Permanente). Na falta de títulos legítimos de propriedade, na Amazônia, os cadastros ambientais rurais estão se tornando uma primeira afirmação de titularidade. Sua multiplicação em Jamanxim representa o crescimento do número de reclamantes por terra.
Capobianco conta que à época da criação das UCs do plano BR-163 sustentável, o Ministério do Meio Ambiente enfrentou a resistência de Manoel Guerreiro, secretário do governo do Pará, que advertia para as múltiplas ocupações da área. “Eu pedi a equipe que se fizesse uma análise detalhada e, em 2005, ela foi feita utilizando pela primeira vez imagens de radar. Mostramos as imagens em uma reunião com governadores e ficou evidente que tinham sido excluídas da Flona e do Parque Nacional do Jamanxim todas as ocupações”, diz Capobianco. “Não restaram áreas abertas, apenas ramais madeireiros e áreas degradadas. O que havia era um monte de pleitos de propriedade baseados em títulos falsos”.
Por linhas tortas
A imagem animada acima mostra que o lado oeste da nova APA Jamanxim, que faz fronteira com os limites reformulados da Flona, tem um desenho que parece escavá-la, em um encaixe parecido com uma peça de quebra-cabeças. Não há casualidade aí, a linha que delimita a APA com a versão reduzida da Flona tenta retirar da última a maior parte das terras ocupadas. Basta superpor ao terreno a marcação dos desmatamentos detectados pelo Prodes (veja pontos vermelhos no mapa dinâmico a seguir) que a fronteira de contato entre a Flona e a nova APA ganha um súbito sentido. Porém, não há malícia nesse desenho, feito pelo ICMBio. Sua intenção declarada é tentar encerrar o capítulo dos enfrentamentos fundiários.
“O traçado dessa área foi feito em cima do mapa de ocupação iniciado em 2009. A ideia era pegar só ocupações antes da criação da Flona, mas não foi possível. Foi o melhor que a gente conseguiu, o traçado que melhor compatibilizou áreas abertas antes da criação da UC com a ocupação que a gente tinha e que fizesse o maior sentido para a conservação. É uma tentativa de retirar as ocupações de dentro da Flona”, diz Carneiro.
Entretanto, segundo o Imazon, esse objetivo ficou longe de ser alcançado, pois há 80 cadastros que continuam parcialmente superpostos ao que restou da Flona e outros 153 inteiros dentro dela.
A análise mostra que, entre 2006 e 2016, operações de fiscalização do Ibama resultaram em 449 embargos (áreas interditadas por desmatamento) dentro dos limites originais da Flona Jamanxim, dos quais quase metade ocorreu em 2008 e 2009, na operação Boi Pirata II. Esse pico de embargos foi associado com uma forte queda do desmatamento na Flona, sinal de que autuar desmatadores funciona. Após a redução de dezembro, ainda restaram quase 300 embargos dentro da Flona.
O Imazon lembra que os números do seu estudo são compatíveis com o levantamento de 2009 feito pelo ICMBio, que detectou 67% das posses como posterior à criação da Flona. Esse levantamento também mostrou que 60% dos ocupantes não residiam lá. Por fim, o Imazon derruba o argumento de que a Flona Jamanxim é ocupada por pequenos fazendeiros. Os cadastros ambientais rurais mostram que, ao contrário, esses imóveis têm em média 1.843 hectares, o que os enquadra como fazendas de porte grande.
Medida necessária ou sinal verde
A pior consequência possível da redução da Flona Jamanxim é incentivar mais invasões lá mesmo e em outras UCs. “Isso pode virar estratégia para redefinição de áreas, como já aconteceu na Terra Indígena Baú, em 2003. As ocupações vão ocorrendo e a pressão aumenta para reduzir a UC, até que ela se torne inviável. Se o Congresso aprovar a Medida Provisória 756, vai chancelar essa estratégia”, diz Heron Martins, pesquisador do Imazon e autor da análise.Não é o que pensam, no ICMBio, as pessoas mais próximas do problema.
“Não acho que vamos ter uma explosão de desmatamento nessa região, porque a área que pode ser regularizada dentro da nova APA, se for usada a regra do Programa Terra Legal, gira em torno de 50% da área que já estava desmatada desde 2004 [ano limiar do Terra Legal]. Essa não é a primeira vez que se revê limite de UC na região Norte. Já aconteceu, com histórias de maior ou menor sucesso. De cabeça, me vem uns 6 casos por questões de ocupação ou falta de aderência ao objetivo de conservação. Dentre eles, há ao menos um de aparente sucesso, no Parque Nacional dos Campos Amazônicos, alterado num modelo parecido com esse [da Flona jamanxim]”, diz Carneiro.
O gestor da Flona Jamanxim, Rodrigo Printes, reforça a defesa: “As mudanças de limites já provocaram a reação de grileiros e grandes latifundiários, porque propomos adotar os critérios do Terra Legal, que prevêem uma só matrícula por CPF [por pessoa] e no máximo 1.125 hectares. Em protesto, eles bloquearam a BR 163, junto com os garimpeiros que querem explorar minérios na Flona. Houve até churrasco com carne fornecida pelos grandes fazendeiros. Há pecuaristas com posses dentro da APA que se sentem lesados, pois frigoríficos que assinaram o Termo de Ajuste de Conduta da Carne com o Ministério Público não podem comprar gado produzido dentro de unidades de conservação, e a categoria APA não é exceção”.
As mudanças feitas em dezembro de 2016 começaram a ser debatidas dentro do governo depois do levantamento feito pelo ICMBio em 2009, que propôs uma redução da Flona de no máximo 70 hectares. Ao longo desses anos, as reuniões sobre o assunto reuniram membros do ICMBio, do Ministério do Meio Ambiente e associações locais de ocupantes da Flona. As associações propuseram transformar em APA 900 mil hectares, ou 70% do total da Flona Jamanxim. O número acabou ficando em 305 mil hectares.
“A perspectiva de redução da Flona gerou um movimento organizado de ocupação da área para se beneficiar. Uma revisão de Jamanxim abre a perspectiva de um efeito cascata de fazer ocupações ilegais dentro de UCs e esperar novas reduções. Jamanxim aconteceu da pior maneira possível, através de Medida Provisória, no apagar das luzes de 2016. Os próximos alvos estão dados, desde a revisão das UCs criadas na Amazônia até centenas de casos de conflito em UCs”, diz Capobianco.
Dentro do ICMBio, fontes variadas ouvidas pela reportagem revelam uma queixa recorrente: quando as UCs da BR-163 foram criadas, elas faziam parte de um plano sistêmico e grandioso, chamado Plano de Desenvolvimento Sustentável da Área de Influência da BR 163. Ele criava o Distrito Florestal Sustentável de 19 milhões de hectares, 15% da área colossal do estado do Pará, ou duas vezes o tamanho de Portugal. A proposta incluía a concessão de exploração de florestas, apoio a iniciativas de produção sustentável e fortalecimento da sociedade civil e movimentos sociais.
“Quase nada saiu do papel”, diz Cláudio Maretti, ex-presidente do ICMBio e atual diretor do órgão. Ele acompanhou o processo de criação das UCs em torno da BR-163 quando ainda trabalhava para o WWF. “Nós [ICMBio] estamos sozinhos lá, com eventual ajuda do IBAMA em operações de repressão ao desmatamento. O Estado não chegou, não chegaram desde os postos de polícia rodoviária federal previstos para a BR-163 até as ações de promoção de desenvolvimento sustentável. Atacar só o ICMBio é perder de vista que estamos fazendo o melhor possível”.
Entretanto, a maneira como foi feita a redução causou um choque. “Fazer isso por MP, no final do ano, foi um negócio totalmente esquisito, nunca tinha acontecido. Se o ICMBio considera que tem argumentos consistentes, que prepare um projeto de lei e mande para debate no Congresso Nacional”, diz Capobianco. “Reduzir uma UC invadida de forma criminosa, como foi Jamanxim, é dizer: tem jogo, o crime compensa”, completa.
Pode piorar
A história não acabou e o debate da primeira redução pode ficar para trás, pois a Flona Jamanxim ainda pode sofrer mais reduções. O senador Jader Barbalho (PMDB, Pará) apresentou uma emenda à Medida Provisória 756, que alterou a Flona Jamanxim, propondo reduzi-la ainda mais, com aumento da APA Jamanxim para 814 mil hectares (mais do que dobra a nova APA, avançando dentro da Flona) e cancelamento do aumento do Parque Nacional do Rio Novo. Esta é apenas uma das 15 emendas apresentadas por membros da comissão mista de senadores e deputados, que incluem o senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e Paulo Rocha (PT-PA).
A comissão é responsável por analisar a Medida Provisória 756. Todas as emendas geradas dentro dela reduzem áreas de proteção ambiental. A emenda apresentada pelo deputado Zé Geraldo (PT, Pará), por exemplo, transforma toda a Floresta Nacional do Jamanxim em Área de Proteção Ambiental.O primeiro prazo limite para votar a MP 756 de 2016 no plenário do Congresso Nacional é 19 de abril, 60 dias após a sua edição, quando qualquer dessas emendas pode ser aprovada também.