Por sua condição de animal silvestre, o guará é protegido por lei, pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), e o estado de conservação dessa espécie é preocupante. A ave é considerada extinta em lugares onde, antes, era avistada, como Piauí e Rio de Janeiro. A população de guarás também está em perigo no Estado de São Paulo e criticamente ameaçada no Paraná e em Santa Catarina. Na Ilha do Marajó, no Pará, também se nota uma redução populacional da ave.
Entre as principais causas do declínio da população de guarás no Brasil, estão a perda do habitat, a destruição das áreas de nidificação e de alimentação, a caça excessiva, o comércio ilegal, a colheita dos ovos e a venda das penas para adorno. Pensando nisso, a veterinária Stefânia Araújo Miranda escreveu a tese Incubação de filhotes de guará (Eudocimus ruber) no Parque Mangal das Garças: uma ferramenta para a conservação da espécie, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal (PPGCAN/IMV), com orientação da professora Sheyla Farhayldes S. Domingues.
Objetivo é reintroduzir animais na natureza
Para o desenvolvimento da pesquisa, Stefânia Miranda elaborou protocolos de manejo e alimentação, incubação dos ovos e análise de crescimento para filhotes de guará. “O foco é a preservação. Reproduzir esses animais em cativeiro para, futuramente, desenvolver a reintrodução deles à natureza, além de servir para a reprodução de espécies semelhantes”, afirma a pesquisadora.
O estudo foi feito no Parque Mangal das Garças, em Belém, o qual conta com uma comunidade de 97 guarás atualmente. “Nós somos um zoológico com animais em exposição. Como não retiramos os animais da natureza, trabalhamos com a pesquisa voltada à reprodução e ao manejo das espécies que nós temos aqui, no parque, para a manutenção e a diversificação dos indivíduos, por meio de permutas, do nosso plantel”, conta Stefânia.
“Nós fizemos a criação artificial de filhotes. Após a coleta dos ovos, todos os processos foram feitos artificialmente. Fizemos a incubação durante 23 dias, usando uma chocadeira elétrica, com rotação automática dos ovos a cada duas horas, controle da temperatura e da umidade. Tentamos reproduzir o trabalho dos pais na natureza. Após o nascimento, criamos os filhotes artificialmente, alimentando-os a cada uma hora”, explica a veterinária. Foram selecionados 25 filhotes, os quais foram mantidos no berçário, com aquecimento constante e dentro de ninhos feitos de palha e feno.
Primeiros dias: dieta rica em proteína
Depois de saírem do berçário, os filhotes foram divididos em três grupos, que receberam dietas diferentes. A Dieta C consistia numa mistura de ração – que já era utilizada para alimentar guarás adultos – e 150 ml de água; a Dieta S continha a mistura de ração e 100 ml de caldo de camarão; e a Dieta F era feita de ração e 100 ml de caldo de peixe.
“Nós testamos três dietas e verificamos que a Dieta F proporcionou a melhor curva de crescimento, por ter uma quantidade de proteína maior. Dessa forma, os filhotes cresceram e ganharam peso mais rápido. Além disso, o peixe se mostra como uma solução, economicamente, mais viável. A dieta com o camarão também foi muito boa e pode ser utilizada. A Dieta C causou o óbito do grupo que se alimentava dela, então foi parada imediatamente. Chegamos à conclusão de que, no primeiro momento de desenvolvimento do filhote, é necessário que a alimentação tenha um teor proteico maior”, avalia Stefânia Miranda.
Na natureza, a principal fonte alimentar dos guarás é o caranguejo, responsável pela coloração vermelha da ave. “O vermelho das penas se deve a um pigmento chamado cantaxantina, que é um derivado do caroteno. O caroteno é o responsável pela cor da cenoura e da casca dos caranguejos e dos camarões, evidenciada quando são cozidos”, explica Stefânia em sua tese. “E por que não usar o caranguejo na dieta artificial? Por vários motivos: preço, dificuldade de armazenamento e aquisição, necessidade de um controle sanitário muito maior, além de não ser disponível durante o ano todo. Precisávamos de algo viável para os animais e para o zoológico”, afirma Stefânia Miranda.
A pesquisa mostra que o uso do protocolo não afetou a coloração natural dos guarás. “Nós observamos que, como na natureza, eles nascem com as penas pretas e dentro de 60 dias começam a aparecer as penas vermelhas. Isso mostra que a dieta artificial foi semelhante à natural, quimicamente falando. O que dá a coloração deles é o caroteno e o caroteno estava presente na ração”, resume a veterinária.
Maior controle das variáveis e informações mais precisas
A tese também elucida certas contradições presentes na literatura sobre as características da ave antes da fase adulta. “Isso acontece porque os estudos são feitos, em sua maioria, na natureza. É mais difícil controlar as variáveis e ter resultados precisos quando o indivíduo se encontra em seu habitat. Aqui, no Mangal, como os animais estão em cativeiro (ou ex situ), conseguimos ter um controle maior das variáveis. Podemos fazer biometrias corporais, verificar o ganho de peso, acompanhar as mudanças fenotípicas que ocorrem nos filhotes, controlar temperatura, umidade etc. Então, dessa forma, nós podemos coletar mais informações precisas”, explica a autora da pesquisa.
Em razão dos bons resultados do estudo, os protocolos criados pela pesquisadora foram adotados como rotina no Parque Mangal das Garças. Os 97 guarás que residem no parque, atualmente, foram criados com base no procedimento exposto na tese. “O nosso trabalho foi pioneiro na criação artificial ex situ”, revela Stefânia Miranda.
“Nós usamos o protocolo para a reprodução e manutenção do plantel, mas também para a permuta, que é a troca de animais entre zoológicos. Recentemente, um zoológico de Poços de Caldas, em Minas Gerais, mandou flamingos para o Pará e nós enviamos guarás para Minas Gerais”, informa.
“O Instituto Estadual do Ambiente (INEA), do Rio de Janeiro, região em que os guarás desapareceram, entrou em contato conosco, pois está interessado em fazer uma reintrodução de guarás no Estado. Estamos trabalhando nesse projeto e, futuramente, gostaríamos de reintroduzi-lo em outros lugares onde a espécie também desapareceu”, planeja Stefânia Miranda.