‘Paraíso’ da bioeconomia é ameaçado por licença para madeireira em território quilombola na Amazônia

Território quilombola é parte do mosaico de áreas protegidas da Calha Norte, entre o rio Amazonas e a fronteira com Suriname e Guiana, um dos maiores blocos de florestas contínuas do mundo.

Para chegar à Terra Quilombola Alto Trombetas 1, é preciso subir o rio Trombetas a partir da cidade de Oriximiná. Foto: Antônio Silva/Agência Pará

Localizadas em um dos maiores blocos de floresta tropical protegida do planeta, as comunidades remanescentes de quilombos de Oriximiná, no norte do Pará, são vistas como modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia brasileira, com bioeconomia baseada em produtos não madeireiros. Por lá, as atividades estão centradas na extração e venda de castanha-do-brasil, semente de cumaru, óleo de andiroba e óleo de cobaípa — usados como alimento ou matéria-prima para medicamentos, perfumes e cosméticos. São produtos que geram renda com as árvores em pé, um tipo de negócio em sintonia com o conhecimento tradicional que faz desses quilombolas guardiões da Floresta Amazônica.

Em 2022, uma reportagem do jornal Valor Econômico mostrou como um sistema de cooperativas criado pelas comunidades com o apoio de uma organização civil sem fins lucrativos tem impulsionado o progresso socioeconômico da região, transformando Oriximiná em um “paraíso” bioeconômico, onde milhares de quilombolas garantem o sustento com a floresta preservada.

No entanto, um contrato assinado no início do ano por uma associação local com uma empresa madeireira afronta costumes dos quilombolas e coloca em risco o modelo de desenvolvimento sustentável. A Associação Mãe Domingas, que representa as seis comunidades de Alto Trombetas 1, um dos oito territórios quilombolas de Oriximiná, fechou um acordo com a companhia Benevides Madeiras para explorar a área. As tratativas geraram tensões, especialmente depois que funcionários da madeireira acessaram o território quilombola para avaliar o potencial da floresta.

“Não faz parte da nossa cultura derrubar árvores”, disse Aluízio Silvério dos Santos, líder da comunidade quilombola Tapagem, às margens do rio Trombetas, em Oriximiná. Aos 74 anos, ele é um dos moradores que luta contra o acordo.

Imagem: Reprodução/Mongabay

 A entrada dos madeireiros na reserva foi autorizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio) no dia 7 de março, a pedido de Ari Carlos Printes, coordenador da Associação Mãe Domingas. Em 30 de março, em sentido oposto, a Promotoria de Justiça Agrária do Ministério Público do Estado do Pará recomendou a interrupção de qualquer ação visando o manejo madeireiro na área quilombola até que seja feita a “consulta prévia, livre e informada de todas as comunidades”.

Os promotores apuram a denúncia de que a Associação Mãe Domingas fechou acordo com a Benevides Madeiras sem consultar os quilombolas, por meio de mudanças no estatuto e irregularidades na lista de presença da assembleia que aprovou a parceria com a madeireira. Registrada em cartório, a ata do encontro mostra apenas 65 pessoas favoráveis ao plano de manejo — poucos votos para definir o rumo do território onde vivem cerca de 400 famílias.

As atas da reunião mostram que apenas 65 pessoas no território quilombola são a favor do plano de gestão.

“Temos uma batalha contra o assédio de madeireiros”, afirmou à Mongabay por telefone Sílvio Rocha, outro morador do território que atua contra o projeto. “Debates sobre esse tipo de projeto já tinham sido feitos pela associação no passado, quando os moradores decidiram que não queriam o manejo de madeira. O corte de árvores vai contra nossos princípios e costumes, sem falar do impacto ambiental”, alegou Rocha.

“Aqui ninguém desmata, ninguém degrada. E isso vai acontecer quando as máquinas chegarem no território. Temos medo que a situação acabe gerando violência”, 

disse.

Questionado pela Mongabay, o ICMBio disse que a permissão era apenas para o tráfego de madeireiros pela Reserva Biológica do Rio Trombetas e que, em nenhum momento, foi autorizada a extração de madeira na Terra Quilombola. O órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente também informou em comunicado por e-mail que já acatou a recomendação do Ministério Público, suspendendo o acesso de novas pessoas na mata até que a situação seja pacificada.

Mas a Associação Mãe Domingas não pretende suspender o trabalho com a Benevides Madeiras. “Todas as tratativas foram feitas dentro da lei”, disse à Mongabay Mário Luiz Guimarães Printes, advogado da associação. “A opção por um projeto de manejo em área quilombola está amparada pela Constituição Federal. Essa não é a função do Ministério Público. Nós vamos continuar com o trabalho, pois não há ação judicial proibindo,” afirmou.

Mauro Roberto do Vale Martins, coordenador de projeto da Benevides Madeiras, afirmou que a empresa pretende tirar as dúvidas do Ministério Público antes de dar andamento ao projeto de manejo no território. “Não queremos trazer discórdia para as comunidades”, disse à Mongabay por telefone.

Documento mostra que o ICMBio autorizou a entrada de madeireiros no território.

Parceria de risco 

A Terra Quilombola Alto Trombetas 1 está parcialmente titulada desde 2013 em nome da Associação Mãe Domingas, que reúne as comunidades Abuí, Paraná do Abuí, Tapagem, Santo Antônio do Abuizinho, Sagrado Coração e Mãe Cué. O território está situado entre a Floresta Nacional de Saracá-Taquera e a Reserva Biológica do Rio Trombetas, na Calha Norte paraense, entre o rio Amazonas e a fronteira com Suriname e Guiana. Essa parte da Amazônia é conhecida pelo mosaico de áreas protegidas por Unidades de Conservação, Terras Indígenas e territórios quilombolas.

Os quilombolas de Oriximiná estão espalhados em 37 comunidades entre oito territórios e são descendentes de africanos escravizados que superaram as cachoeiras do rio Trombetas no século 19 para fugir da captura ordenada por donos de fazendas de gado e cacau. Isolada, a região de mata fechada virou um refúgio onde era possível viver livremente por meio da caça, da pesca, de pequenos cultivos e da extração de castanhas e outros recursos florestais. A conexão profunda com a natureza explica porque muitos quilombolas rejeitam planos de desenvolvimento baseados na derrubada de árvores, mesmo que sejam em formatos sustentáveis.

O manejo florestal para extração de madeira é uma das possibilidades de desenvolvimento sustentável na Amazônia, pois gera emprego e dinheiro para as comunidades. Realizado de maneira correta, respeitando limites fixados por órgãos ambientais, o negócio pode abastecer o mercado de madeira e ajudar a frear o desmate ilegal.

Porém, a parceria entre comunidades e madeireiras exige um certo grau de amadurecimento e organização social para que o contrato resulte em benefícios, segundo os especialistas. 

“São comunidades isoladas, que só agora estão conhecendo as diferentes possibilidades de desenvolvimento sustentável, muitas vezes sem condições de avaliar propostas, abraçar projetos e gerir recursos em benefício da população”,

disse Marco Lentini, especialista florestal do Imaflora, que atua com projetos de manejo sustentável na Amazônia, inclusive em comunidades quilombolas de Oriximiná.

Ele afirma que é preciso desenvolver uma rede de apoio para essas comunidades, especialmente nas áreas mais centrais da Amazônia, mostrando que o cardápio de projetos florestais é bastante amplo. “Temos que mostrar às comunidades que elas não estão sozinhas na hora que o madeireiro bate na porta da associação para oferecer uma parceria”, disse à Mongabay por telefone.

Ainda não há um plano de manejo florestal aprovado para o território da Associação Mãe Domingas, mas o primeiro contrato assinado coloca nas mãos da Benevides Madeiras a elaboração do projeto de manejo. O papel dos quilombolas é garantir o acesso ao território para que o trabalho seja feito pelos madeireiros. “Temos um acerto com a madeireira. O contrato é para avaliar se o projeto é viável, se tem madeira boa, se tem como escoar as toras. Ainda não sabemos se vamos fazer ou não”, explicou Ari Carlos Printes.

O primeiro contrato assinado pela associação coloca a preparação do projeto de gerenciamento nas mãos da Benevides Madeiras.

Mesmo sem modelo definido, o coordenador da associação garante que a parceria com a madeireira vai beneficiar as seis comunidades. “Hoje não temos recursos para financiar estrutura de saúde, tendo que viajar várias horas de barco em busca de atendimento. Nós temos direito de fazer um projeto de manejo dentro do território”.

O advogado Rodolpho Cioffi de Ávila, que atua em favor dos quilombolas de Oriximiná, alerta que os recursos de um projeto com madeireira não garantem melhoria, pois é preciso criar bons mecanismos para gerir esse dinheiro em benefício das comunidades. “Muitas vezes, a simples divisão do dinheiro entre as famílias quebra as atividades tradicionais, muda os hábitos dos moradores e abre caminho para problemas como alcoolismo e violência doméstica. É preciso avaliar com precisão as vulnerabilidades ambientais, econômicas e sociais antes de firmar um acordo, sem deixar um cheque em branco para a madeireira atuar na região”, disse ele ao Mongabay por telefone.

A ofensiva de madeireiros não é a única ameaça aos quilombolas de Oriximiná. Parte dos territórios sofre com os impactos da exploração de bauxita pela Mineração Rio do Norte, que está presente na região do rio Trombetas desde a década de 1970. As comunidades também temem o projeto de extensão da BR-163 – ligando Santarém ao Suriname – que foi defendido pelo governo Jair Bolsonaro e pode estimular o desmate na região.


*O conteúdo foi originalmente publicado por Mongabay, com matéria escrita por André Schröder 

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