O que é o efeito “ar-condicionado” das Terras Indígenas e como o marco temporal pode prejudicá-lo

Esse fenômeno de resfriamento se dá pela evapotranspiração das árvores, que bombeiam até 1.440 mm de água por ano para atmosfera, formando os chamados rios voadores – três vezes mais que nas áreas contíguas às TIs.

Toda vez que Kaianaku Kamayurá, 32 anos, vai visitar a família na aldeia Ipawu, no centro do território do Xingu, a indígena, que mora em Brasília, sente a temperatura cair bruscamente ao entrar na floresta de 26.420 km² localizada no nordeste do Mato Grosso.

“O contraste na sensação térmica é grande. O ar circula mais fresco e chove com mais intensidade aqui dentro. Na nossa vizinhança, onde só tem campo de soja, a atmosfera é quente e seca”, diz a jovem Kamayurá, que atua como coordenadora do movimento Amazônia de Pé, uma rede de órgãos e ativistas que militam por um projeto de lei para destinar terras públicas na maior floresta tropical do planeta.

A diferença entre a região de mata densa em que vivem seus pais e o entorno, dominado pela presença de imensas fazendas, chega a impressionantes 5 °C. No restante das Terras Indígenas homologadas na Amazônia Legal, a média é de 2 °C mais baixa quando comparada a áreas contíguas não protegidas.

Ritual Kamayurá no Parque Indígena do Xingu. Foto: Rafae_Silva (CC BY-NC 2.0)

Os dados constam em um estudo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em colaboração com o Centro de Pesquisa em Clima Woodwell, cujo objetivo foi avaliar as consequências socioambientais do Projeto de Lei n° 2.903, que flexibiliza direitos dos povos originários e trata da tese do marco temporal, que estabelece a data da promulgação da Constituição de 1988 como parâmetro para os direitos de ocupação de território indígena.

Depois de aprovado no Senado em setembro, o PL foi parcialmente vetado por Lula. O Congresso, por sua vez, derrubou os vetos presidenciais nesta quinta-feira, 14 de novembro. Para evitar uma derrota ainda maior, o governo conseguiu um acordo para que fossem preservadas três vedações. Foram mantidos a proibição de contato com povos isolados, o plantio de culturas transgênicas em Terras Indígenas e a permissão para que territórios já demarcadas voltassem às mãos da União em caso de aculturamento.

“Nosso trabalho faz uma correlação direta entre Projetos de Lei que ferem os direitos dos povos originários com efeito no clima. Se forem ratificados, poderá ocorrer um aumento do desmatamento de 23 a 55 milhões de hectares nos próximos anos em função do avanço da grilagem e da fronteira agrícola sobre as TIs. E até 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono poderão ser emitidos para atmosfera”, afirma Martha Fellows, coordenadora no núcleo de estudos indígenas do Ipam e autora do estudo, em declaração dada antes da decisão final dos congressistas que abriu o caminho para a promulgação do PL.

Segundo Fellows, a razão do Parque Indígena do Xingu ter 3 graus a mais do que a média das outras Terras Indígenas é a divisão brusca entre a selva densa e a monocultura do entorno.

Chamado pelos pesquisadores de efeito “ar-condicionado”, o fenômeno resfriador observado de forma tão eloquente no território do Xingu se dá pela evapotranspiração. Trata-se de um importante serviço ecossistêmico em que as árvores conectam a água do solo até o ar, devolvendo umidade para a atmosfera e reduzindo o calor. 

Trecho de mata em área de plantio de algodão no noroeste de Mato Grosso, próximo à região do Parque Indígena do Xingu. Foto: Pedro Biondi/Abr (CC BY 3.0 BR)

No Xingu, este ciclo formador de nuvens que abastece os chamados rios voadores é quase três vezes maior do que nas áreas desmatadas, bombeando até 1.440 milímetros de água (por metro quadrado) ao ano para a atmosfera, enquanto no entorno desflorestado não chega a 540 milímetros. Em outras áreas ancestralmente ocupadas na Amazônia Legal, o estudo aponta uma média 9% maior de evapotranspiração em relação às regiões não conservadas.

Conforme aponta a pesquisa do Ipam, órgão que também faz parte do movimento Amazônia de Pé, as TIs da Amazônia Legal armazenam cerca de 55 bilhões de toneladas de carbono, o equivalente a 26 anos de emissões brutas do Brasil.

Se lançado no ar, além de comprometer as metas do país na redução de emissão de gases do efeito estufa e inviabilizar o compromisso com desmatamento zero até 2030, esse carbono colocaria estas regiões em um cenário de altas temperaturas e redução da umidade e chuvas.

“Fizemos um retrato do potencial que estes territórios já têm para promover serviços ecossistêmicos e ajudar na crise climática global. Deveríamos garantir a continuidade deste potencial ao invés de ameaçá-los. E os direitos indígenas são originários, não vieram depois da Constituição de 1988”, 

diz Fellows.

De olho nos problemas que a insegurança jurídica traz ao dia a dia da relação entre indígenas e não indígenas, Kaianaku Kamayurá, que é formada em Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Goiás (UFG), pede pressa aos tomadores de decisão.

“Estamos dentro do Xingu, onde vivem 16 povos. O território é homologado, mas estamos preocupados em relação à adoção do marco temporal”, diz Kayanaku. “São áreas cobiçadas pelo agronegócio, há muitos interesses envolvidos. Tem casos de invasão, extração de madeira ilegal, e o marco temporal abre uma possibilidade de rever estas Terras Indígenas já demarcadas. Pode haver diminuição do território e isso traz um risco para todo mundo. A PL 2.903 é um grande pacote de ameaças para os povos indígenas.”

A grande interrogação em torno do tema deve seguir em aberto por algum tempo. O Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a tese do marco temporal em setembro, promete inviabilizar a lei na prática atribuindo a ela o entendimento de inconstitucionalidade. Em contrapartida, o Congresso pretende incluir o marco temporal em uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), obrigando o STF a observar as regras da nova lei em suas resoluções.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Luís Patriani,  disponível aqui

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