Novos dados sobre botos são coletados em expedição no Amapá

Um ambiente complexo, ainda pouco estudado e extremamente desafiador. Esse foi o cenário encontrado pelos pesquisadores que foram ao norte do Amapá estudar os botos do rio Cassiporé, no município de Oiapoque, entre os dias 15 e 25 de outubro. Apesar das quase 20 pessoas envolvidas na pesquisa, que reuniu moradores de Vila Velha do Cassiporé, pesquisadores e especialistas de diversas instituições, nenhum boto foi capturado.

O projeto é uma iniciativa da South American River Dolphin Initiative (SARDI), rede sob a coordenação do WWF-Brasil que reúne pesquisadores de Colômbia, Peru, Equador, Bolívia e Brasil em torno do estudo dos botos sul-americanos. Além do WWF-Brasil, a expedição envolveu o Instituto Mamirauá, a Universidade de São Paulo (USP) e contou com a participação e o apoio do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).  

Foto: Bernardo Oliveira /Instituto Mamirauá

Tendo Vila Velha, a 800 km de Macapá, como base de operações, o objetivo da pesquisa era instalar ‘tags’ satelitais – rastreadores via satélite – e coletar amostras para entender os deslocamentos e estudar a saúde desses animais no Parque Nacional (Parna) do Cabo Orange, unidade de conservação cortada pelo rio Cassiporé.

O parque tem a particularidade de reunir a floresta amazônica ao oceano. “É onde a Amazônia encontra o mar. Temos esse manguezal maravilhoso, uma das últimas faixas contínuas de mangues do planeta, em uma linha de costa com pouca presença humana, o que o mantém em ótimo estado. ”, explica Ricardo Pires, chefe do Parna do Cabo Orange.

Entretanto, as condições encontradas pela equipe inviabilizaram o trabalho por influência do mar, o nível da água no rio chega a variar quatro metros diariamente em alguns pontos. Uma pororoca – onda que ocorre quando a maré sobe e a água do mar invade o rio, percorrendo quilômetros de seu leito – marca a transição entre vazante, quando o curso do Cassiporé desce rumo ao oceano, abaixando o nível da água, e enchente, quando ele sobe em direção à nascente, aumentando o volume de seu leito.

“Estamos acostumados a grandes variações no nível da água, de até 11 metros, mas de forma lenta. Meses com a água alta e meses com ela baixa. Aqui, nós temos a influência da maré. O oceano entra com muita intensidade, duas vezes por dia. E há correntes muito fortes, tanto entrando quanto saindo. Lidar com as redes foi bastante desafiador. ”, Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto Mamirauá que há mais de 30 anos estuda mamíferos aquáticos.

Pedras, galhos e muita lama

Além do desafio para se adaptar às alterações na água, a equipe, com a experiência somada de centenas de capturas em condições mais favoráveis, encontrou uma enorme dificuldade para manipular as redes que cercariam os animais. Mesmo com o auxílio de pescadores contratados para o estudo, o trabalho foi dificultado pela grande quantidade de galhos boiando e pedras no fundo irregular do rio. Além da lama, que chegava a preencher boa parte do rio, a pororoca trazia consigo muita ‘sujeira’ para a água.

Foto: Bernardo Oliveira / Instituto Mamirauá

Para o cerco, encurralavam-se os botos entre duas redes, inicialmente distantes, e reduzia-se seu espaço gradativamente, com a colocação de uma terceira. Por diversas vezes, os botos foram confinados, mas em todas as tentativas de finalmente pegá-los, a rede inevitavelmente se prendia em diversos objetos e abria espaços para que os animais passassem. Um filhote chegou a ser capturado, mas foi imediatamente libertado por ser ainda muito sensível aos processos necessários para o estudo.

Também se notou que os botos, extremamente inteligentes, rapidamente entenderam a estratégia da equipe, evitando cada vez mais o cerco. Na última tentativa, realizada no dia 23, uma das redes rompeu-se, em função da quantidade de galhos presos a ela e da intensidade da corrente. Preocupados com a segurança dos animais e das pessoas, cansadas após uma semana intensa de trabalho, foi decidido cancelar as atividades do último dia (24) para se discutir novas estratégias para uma próxima expedição.

Raimundo Benedito Almeida Miranda, agricultor e morador de Vila Velha que pilota barcos para o ICMBio desde 1993, participante da pesquisa, afirma que já suspeitava que seria difícil lidar com o Cassiporé. “O rio corre muito e o fundo é muito acidentado, tem muito buraco e pau. Sabíamos que não ia ser fácil“, conta.

“Foi um longo processo de aprendizado, tanto para nós, quanto para os pescadores, que nunca haviam capturado botos. Eles tiveram que aprender como manejar a rede e nos ensinar como o rio funciona. ”, revela Miriam.

A expectativa pelo ‘tagueamento’ continua

Uma das dificuldades com as quais os pesquisadores se depararam foi decifrar a rotina dos animais. Os pescadores e moradores da Vila tinham ideias diversas sobre o comportamento dos botos. Alguns afirmavam que eles subiam o Cassiporé com a pororoca; que se alimentavam à noite em uma parte mais rasa do rio; que podiam ser encontrados próximos ao mar; que não ultrapassariam a região mais rasa, próxima à Cachoeira do Cassiporé; que haveria de 50 a 100 animais no rio. As histórias variavam, nem sempre concordavam entre si e nem sempre correspondiam à realidade encontrada. Em alguns dias, os relatos ajudavam, em outros, era difícil encontrar um boto.

Entre as razões que motivaram a pesquisa no Amapá está o fato de o rio Cassiporé representar o limite a nordeste da distribuição geográfica do boto rosa, ou seja, o último local onde a espécie pode ser encontrada nesse canto da Amazônia. Considera-se também a possibilidade do uso de uma faixa fluvio-marinha por essa população. A instalação dos ‘tags’ satelitais ajudará a esclarecer a movimentação dos botos do Parque Nacional do Cabo Orange.

Todos esses desafios observados servem como aprendizado para uma futura expedição, com equipamentos mais apropriados, para finalmente compreender a biologia dos botos do Cassiporé e sua relação com o mar.

“Agora vamos digerir tudo o que vimos e sentimos, elaborar todas essas hipóteses que temos pensado, dividir isso com os parceiros da SARDI e tomar uma decisão em conjunto para voltar preparados para aquela condição de captura. Temos plena consciência de que, melhorando os equipamentos e com mais tempo, as chances de sucesso são bem maiores. E aí a gente começa a entender, de fato, o que acontece com aquela população”, afirma Marcelo Oliveira, especialista em conservação do WWF-Brasil.   

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