A lenda por trás do surgimento da etnia indígena Sateré-Mawé e do guaraná, na região do Lago Parauari, afluente do rio Maués, no Amazonas, conta que no começo do mundo, a região era habitada por seres míticos poderosos…
Noçokem e a lenda do guaraná!
Segundo a tradição oral, no começo do mundo existiam três irmãos: Ocumáató, Icuamã e Onhiamuaçabê, responsáveis por uma floresta encantada, chamada de ‘Noçoquem’.
Onhiamuaçabê era uma jovem que possuía estranhos poderes mágicos e vasto conhecimento medicinal, motivo de seus irmãos não permitirem que ela se casasse.
Os irmãos não queriam que ela revelasse os segredos das plantas medicinais e remédios, e nem que ela perdesse sua força mágica. Apesar da proibição, todos os animais de Noçoquem queriam viver com Onhiamuaçabê.
Um belo dia, uma cobra decidiu espalhar pelo caminho por onde a jovem passava todos os dias um perfume que alegrava e seduzia, e quando Onhiamuaçabê aspirou o perfume agradável, a cobra atirou-se sobre a moça e a tocou.
O toque, em uma de suas pernas, foi o suficiente para que a jovem ficasse grávida. Os antigos de Noçoquem acreditavam que para que uma gravidez acontecesse, bastava uma moça ser olhada por algum homem ou animal que a desejasse como esposa.
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Quando os irmãos de Onhiamuaçabê foram até ela buscar um remédio para caçar, conhecido como ‘pussanga’, tiveram uma surpresa: o líquido havia coalhado e no fundo da preparação se encontrava uma espécie de tapioca. A coagulação foi o suficiente para que os irmãos soubessem que Onhiamuaçabê estava grávida.
A jovem foi expulsa de Noçoquem pelos irmãos e levou consigo a mucura, para que lavasse suas roupas; o pato, para que pudesse pegar água no porto; e a saracura (uma espécie de ave), para lhe levar cogumelos.
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Os irmãos, ao descobrirem que o filho de Onhiamuaçabê havia nascido ‘normal’ com braços e pernas, desenvolveram uma raiva pela criança e a proibiram de entrar em seus domínios e se alimentasse de sua plantação. O menino passou então a desejar comer as mesmas frutas que seus tios comiam, plantadas em Noçoquem.
Antes do bebê começar a se desenvolver, Onhiamuaçabê plantara na floresta encantada de Noçoquem uma castanheira. No entanto, com a expulsão da moça de Noçoquem, os irmãos se apoderaram das terras mágicas da floresta encantada e a proibiram de consumir os frutos.
Onhiamuaçabê, morando isolada de seus irmãos, recomendava ao filho que não se aproximasse da floresta encantada. O menino, esquecendo as recomendações da mãe e consumido pelo desejo de comer as castanhas, alimentava-se de frutas do Noçoquem.
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Os guardas de Noçoquem, que tinham recebido ordens de matar quem entrasse na floresta, viram o menino subir na castanheira e o mataram.
Onhiamuaçabê, ao descobrir a tragédia, em prantos, sepultou o filho e invocando as forças mágicas da natureza, profetizou: “Tu, meu filho, serás a maior força da natureza e quem provar dos teus olhos (o guaraná) terá proteção, longa vida e saúde permanente”.
E assim, dos olhos do menino, criou-se o guaraná, e do corpo, uma criança que deu origem aos indígenas da etnia Sateré Mawé.
Na etnia, o guaraná é consumido religiosamente e é o motivo dos visitantes participarem de uma ‘sessão de çapó’, em que o guaraná é servido em cuia passada de mão em mão entre os presentes. Essa tradição tem grande significado religioso, já que todos os participantes do ritual ficam sob a proteção mitológica dos espíritos da floresta.
A preparação do Guaraná
Depois de colhidas, as frutas são colocadas em grandes cestos e transportadas para a aldeia, onde são despejadas no chão e pisoteadas para a soltura das sementes. Após esse processo, são colocadas novamente nos cestos e levadas para o rio, para serem lavadas e depois postas no sol para secar.
Depois de secas, as sementes são torradas e moídas até se tornarem um pó bastante fino. Além disso, os indígenas Sateré Mawé também preparam uma espécie de pão de guaraná, feito com o pó úmido transformado em pasta elástica.
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De acordo com o relato do sertanista João Américo Peret, em seu texto publicado pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), a quantidade de pó em uma dose diária para uma pessoa é de apenas uma colher de chá em meio copo de água, servido ao natural ou adoçado com açúcar ou mel de abelha.
Atualmente, entre os indígenas da etnia, o guaraná é utilizado como fortificante capaz de amenizar a fome de viajantes, e como um analgésico que tira as dores de cabeça, as febres e o mal estar. Além disso, para eles o guaraná também é capaz de curar disenterias, aumentar a resistência física e muscular e aumentar a longevidade do homem.
História e significado
Segundo registros históricos comentados pelo sertanista João Américo Peret, o padre alemão Bettendorf foi o primeiro civilizado a provar o guaraná preparado pelos indígenas da Mundurucânia, região do rio Tapajós e Madeira. Chegando à aldeia fatigado, febril e faminto, ele relatou sentir-se revigorado após consumir a bebida, comparando o efeito a um ‘elixir da eterna juventude’.

Atualmente o guaraná é associado ao tuxaua verdadeiro, líder que guia a comunidade com bons conselhos e palavras de entendimento. Ao consumir o guaraná, todos participam de uma experiência simbólica que une sociedade, natureza e espiritualidade.
*Por Rebeca Almeida, estagiária sob supervisão de Clarissa Bacellar
**Com informações do boletim de ciências humanas do Museu Paraense Emílio Goeldi
