Indígenas Paiter Suruí transformam cafezais dos invasores em café amazônico de qualidade

Cafezais herdados de antigos invasores foram reflorestados e se tornaram a primeira experiência mercantil do povo Paiter Suruí.

Foto: Walela Soepilema

O primeiro contato dos Paiter Suruí com o café foi em 1969. O cultivo não fazia parte da cultura ancestral deste povo originário, que vive na Terra Indígena Sete de Setembro, em uma região que vai de Cacoal, no sudeste de Rondônia, até Aripuanã, no noroeste do Mato Grosso. A data coincide também com o primeiro contato oficial da etnia com os não indígenas.

Nesta época, o Governo Federal incentivava a ocupação no norte do país com a promessa de terras e melhores condições de vida. Rapidamente, a área foi tomada por madeireiros, garimpeiros e outros exploradores. Morreram centenas de indígenas, grande parte por conta de doenças como o sarampo. 

“Os invasores plantaram alguns pés de café. Como não eram de boa qualidade, devastaram o nosso solo”, lamenta o engenheiro ambiental e liderança Xener Paiter Suruí, filho do cacique Almir Suruí, referência mundial na luta pela sustentabilidade.

Foto: Walela Soepilema

Depois de muitos confrontos com os exploradores e também com o governo, a demarcação se deu somente em 1976 e a posse permanente – porém parcial – de suas terras, em 1983. Foi quando os Suruí começaram a reflorestar as áreas degradadas e aprender o cultivo de café. Os cafezais herdados dos colonos invasores constituíram a primeira experiência mercantil dos Suruí. Os grãos passaram a ser vendidos para as cidades vizinhas, sem nenhum tratamento.

De acordo com o conhecimento da dinâmica da floresta, eles entenderam que o café precisava de sombra. O plantio passou a ser feito ao lado de outras culturas como cacau, castanha, banana e mandioca, sem nenhum uso de agrotóxicos. O manejo junto à floresta destoa brutalmente das paisagens desmatadas dos arredores da Terra Indígena.

“Eles não fazem grandes plantios, mas pequenos e sempre às margens da floresta. Assim, o café absorve tudo aquilo que a floresta pode dar, inclusive água”, esclarece Thamyres Ribeiro, consultora técnica indigenista da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que trabalha com o povo Paiter Suruí há cerca de 25 anos.

“Essa dinâmica florestal nada mais é do que o tão estudado sistema agroflorestal, que os Suruí sabem de forma autêntica e ancestral”,

afirma.

Foto: Walela Soepilema

Edições limitadas para todo o Brasil

Em 2018, os Suruí estabeleceram uma parceria com a 3 Corações: o Projeto Tribos, focado no protagonismo indígena, profissionalização, infraestrutura e tratamento do café. São microlotes em edições anuais e limitadas, agora indo para a quinta safra, vendidos para todo o país; 100% da renda é revertida e toda a produção é comprada pela marca.

O rótulo, feito com papel composto com sementes de manjericão, traz uma tag escrita em tupi mondé, idioma oficial da etnia, com suas principais informações. A iniciativa foi realizada junto à Funai e à Embrapa, entre outras instituições, e reúne 132 famílias indígenas de diferentes etnias, espalhadas por 28 municípios de Rondônia.

Entre suas características sensoriais estão notas de sabor e aroma de frutas secas, chá preto, castanhas e chocolate amargo, além de corpo cremoso a licoroso e baixa acidez. O café, classificado como especial por sua alta pontuação, é da espécie robusta, que vai muito bem em climas quentes e úmidos como o da Terra Indígena.

A região, inclusive, passa por uma valorização de seu terroir para o café: em 2021, foi reconhecida com o selo de Indicação Geográfica Matas de Rondônia. Embora muitas pessoas ainda torçam o nariz” para o robusta, trata-se de uma variedade que, quando cultivada com qualidade, vem despertando cada vez mais interesse do mercado e valorizada na cena do café especial por suas características e complexidades.

A partir deste projeto, os Suruí começaram a fermentar e selecionar o café, duas etapas essenciais para o aumento da qualidade e da pontuação dos cafés especiais. Mas esta não foi a única parceria importante: o Coffea Trips também foi fundamental.

A empresa da jornalista e curadora Kelly Stein propõe roteiros ao redor do Brasil por diferentes propriedades de café, fazendas históricas, torrefações, cafeterias e cooperativas. Uma dessas expedições acontece anualmente em Rondônia, com visita à aldeia Lapetanha, na Terra Indígena Sete de setembro. Os participantes percorrem todas as etapas do cultivo e tratamento do café.

Foto: Walela Soepilema

A jornalista tem também um projeto social de formação de baristas indígenas, que já capacitou a jovem barista e cafeicultora Celesty Suruí. “Estamos trabalhando na educação de café para ela se tornar uma profissional respeitada, dar consultorias, cursos e participar de campeonatos. Acredito que esta é uma oportunidade de ressignificar o café para o povo Suruí: no lugar da ferida do genocídio, uma esperança para contar a história de superação e sobrevivência. E a Celesty decide ser barista nesse contexto”, comemora Kelly.

“Realmente foi uma decisão bem difícil que tomei porque tinha medo de receber críticas. Mas falar de um povo guerreiro e contar a nossa verdadeira história falou mais alto do que o medo”, conta Celesty sobre o que a motivou a representar os Suruí como barista. 

“Com o conhecimento que aprendi, hoje eu ensino as mulheres da minha comunidade a preparar cafés e a se aprofundarem para que o nosso trabalho possa ser valorizado da forma que merece”,

disse.

Engajando a juventude 

O cultivo do café é uma fonte significativa de renda para as comunidades Suruí. Desde o início da parceria com a 3 Corações, eles conseguem comercializar os grãos por um preço muito superior ao antigamente praticado. “Somos empreendedores, a maioria jovens, com vontade de contribuir com o desenvolvimento sustentável do nosso território”, diz Xener. “O café é importante porque dá visibilidade e esta repercussão tem trazido uma qualidade de vida maior para os produtores”. Xener revela ainda que estão estudando o mercado para construir uma marca própria.

Outra novidade é a abertura para o etnoturismo, uma alternativa de renda viável para fortalecer a economia das comunidades e proteger a biodiversidade, com a participação ativa dos indígenas. O espaço na aldeia Lapetanha oferece hospedagem, alimentação típica, degustação de cafés, atividades como dança, música, trilhas, banho de rio, além da apresentação da história, saberes, cultura, medicina, artesanato, grafismo, cerâmica e outros costumes Suruí.

Para Thamyres, o turismo vem para ajudar no fortalecimento da cultura tradicional e também na questão do pertencimento, sobretudo dos jovens. “Dentro do trabalho de estruturação do turismo no território, foi gratificante observar o envolvimento da juventude, que foge dessa premissa do ser indígena por medo do preconceito. Mas ao verem que os visitantes valorizam e respeitam a cultura Suruí, os jovens estão fortalecendo o orgulho de ser indígenas. A música que nunca aprenderam já buscam aprender. Nas atividades, são eles que recebem os turistas, contam a história, cantam, fazem os grafismos”, festeja a consultora, que contextualiza que a população de idosos está cada vez menor, daí a necessidade do engajamento da juventude.

Thamyres acredita ainda que a cultura é dinâmica e se transforma ao longo do tempo, conforme o envolvimento com o mundo externo às suas aldeias. Neste contexto, uma bem-vinda mudança foi a entrada de vez do café na alimentação dos Paiter Suruí.

“É algo que todo mundo toma muito no dia a dia, principalmente pelo seu poder energético”, conta Xener. Felizmente, as bebidas ancestrais não deixaram de ser consumidas, tais como os sucos de batata-doce, mandioca, milho, açaí e patauá (palmeira amazônica semelhante ao açaí) ou ainda de gongo, larva que vive no tronco de várias palmeiras, fonte de proteínas e carboidratos. A base da dieta é o que a floresta oferece em cada época do ano. “Não são iguais ao café, mas fornecem energia para o dia inteiro”, garante Xener.  

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Patricia Moll

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