Espécies do topo da cadeia, os botos-vermelhos são importantes reguladores da biota nos rios amazônicos e indicadores ambientais de potenciais zoonoses.
“A gente cerca primeiro eles, coloca uma rede dentro da outra e puxa pra beira, bem devagar. Só que tem que tirar um por um, pra eles não se machucarem”, diz Antônio de Oliveira, morador da Vila Alencar, na RDS Mamirauá, vizinha à RDS Amanã. A gente traz até chegar em terra, mete a maca. Aí amarra o bico dele com uma fita, para não morder, e leva até a balança, onde o pessoal vai trabalhar com eles na área.”
detalhando como fazia a captura.
Não se tratava, contudo, de uma pesca predatória – um dos fatores que colocam o boto-vermelho (Inia geoffrensis) em perigo de extinção, conforme a classificação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade e da União Internacional para a Conservação da Natureza. Moradores da RDS Amanã, os pescadores estavam ali para auxiliar um amplo estudo sobre saúde e comportamento desta espécie amazônica, popularmente conhecida como boto-cor-de-rosa.
A expedição para o Lago Amanã aconteceu em dezembro passado, organizada pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM) e pela ONG WWF-Brasil. Em oito dias, a equipe capturou 20 botos-vermelhos, dos quais coletou amostras para analisar o estado de saúde. Em cinco deles, instalou radiotransmissores a fim de acompanhar o deslocamento da espécie pelas águas amazônicas – lacunas científicas ressaltadas por um artigo recente.
Uma vez capturado o boto-vermelho, os pescadores o traziam para a beira do lago e o transferiam para uma grande maca. Em seguida, carregavam o animal, que chega a medir 2,5 metros e pesar 200 quilos, para uma tenda onde os cientistas aguardavam, preparados para uma bateria de coletas, medições e exames que durava cerca de 20 minutos.
“Tentávamos fazer tudo no período mais curto possível, para o animal não ficar tanto tempo sob estresse, uma vez fora d’água, nós tínhamos toda uma estrutura. O animal era mantido ali, umedecido constantemente para a pele não ressecar, e trabalhava a equipe inteira ao mesmo tempo.”
conta Miriam Marmontel, líder do Grupo de Pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá, e coordenadora da expedição.
Enquanto os pescadores imobilizavam o boto, pesquisadores coletavam sangue para exames de hematologia, bioquímica, análise dos níveis de mercúrio e selênio e testes virológicos para detectar enfermidades como leptospirose, toxoplasmose e brucelose. Outros colhiam amostras de swab dos orifícios nasal, genital e anal e de qualquer lesão aparente. Mediam, ainda, o comprimento e as circunferências do animal, além da pesagem. Durante o trabalho, monitoravam a respiração e a temperatura do rosto, da nadadeira e do dorso dos botos, para identificar eventual anormalidade no animal. Antes da soltura, a equipe instalou radiotransmissores, equipamento similar a um prendedor, na nadadeira dorsal dos mamíferos.
Lesões misteriosas
Os botos-vermelhos habitam rios amazônicos em sete países: Brasil, Bolívia, Colômbia, Peru, Venezuela, Equador e Guiana. Na porção brasileira, distribuem-se pelas bacias dos rios Amazonas, Branco, Negro, Madeira, Tapajós e Xingu. Como grandes mamíferos aquáticos, eles são os primeiros afetados por eventuais problemas no ambiente, observa Marmontel. Se demonstram fragilidades ou doenças, servem de alerta para os humanos em relação ao risco de zoonoses, por exemplo.
“Topo de cadeia e piscívoro, o boto-vermelho basicamente controla as populações de peixes e captura animais mais debilitados. De certa forma, limpa o ambiente para todo o resto da biota. Já tentamos nos adiantar ao conhecer mais da saúde deles para, caso aconteça alguma tragédia, estarmos prontos para intervir.”
explica Marmontel.
Na Reserva Amanã, os botos-vermelhos vivem em uma região de baixa presença humana, livre de impactos comuns à espécie na Amazônia Legal, como barragens hidrelétricas e garimpos. Porém, esta área protegida não está imune a distúrbios oriundos de seu entorno – caso da poluição da água, do desmatamento e da contaminação por mercúrio.
Apesar do ambiente protegido, os pesquisadores se depararam com algo inesperado na região. “A maioria dos botos tinha algum tipo de machucado na pele. Encontramos um com lesão feia nos olhos; estava cego e com uma mandíbula quebrada”, exemplifica Marmontel. “Foi muito marcante ter encontrado essa quantidade de lesões em uma população que, aparentemente, deveria ser saudável, por estarem em um local bastante prístino.” Entre as hipóteses para as lesões, dizem os pesquisadores, estão a briga com outros animais, como jacarés, o conflito com pescadores locais – algumas feridas pareciam de arpão – e infecções fúngicas.
Antônio de Oliveira, mais conhecido como “Peixe-Boi”, tem 58 anos e trabalha há três décadas como assistente de Marmontel, com expedições por rios da Amazônia brasileira, peruana e equatoriana. Ele também ficou impressionado com a quantidade de animais machucados, “tudo feio, cheio de cicatriz”. “Aquele que devia ser até cego tinha umas verrugas no olho, tipo um tumor. A gente nunca tinha visto boto daquele jeito, não.”
Os materiais coletados estão sendo analisados e os resultados completos devem sair em cerca de seis meses, mas há algumas constatações preliminares. Ainda na expedição, hemogramas e exames bioquímicos identificaram parâmetros normais para os botos-vermelhos. Na análise das amostras de swab, não encontraram as bactérias Brucella nem Campylobacter – responsáveis por brucelose e gastroenterite aguda, respectivamente, que também podem acometer humanos –, mas exames de PCR fornecerão resultados mais precisos. Em uma amostra de fezes encontraram um parasita e um oocisto – agente infeccioso causador da toxoplasmose –, ainda sob investigação.
A presença de mercúrio não é tão frequente na RDS Amanã, em contraste com a população de botos-vermelhos que os pesquisadores encontraram em expedições ao Rio Tapajós. Mas amostras foram coletadas para avaliar os níveis desse metal no sangue e na pele dos que foram capturados em dezembro. Segundo Marmontel, ainda não se sabe o que altas concentrações nesses golfinhos amazônicos significam, de fato, para a saúde da espécie.
“Os mamíferos aquáticos têm no corpo o selênio, substância que contrabalança os efeitos do mercúrio”, avalia Marmontel. “Estamos começando a fazer estudos em nível sub-celular, para ver o que pode estar acontecendo com os sistemas, se tem alguma alteração. Espero que esse seja o grande pulo do gato da expedição.”
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Já o monitoramento dos botos-vermelhos por meio dos radiotransmissores pode durar até seis meses, em virtude da bateria. Quando o boto sobe à superfície, o sinal é capturado via satélite. Assim, os pesquisadores conseguem identificar os tipos de ambiente que o animal visita, seus habitats mais comuns e os recursos pesqueiros de determinadas áreas. Entender os locais preferenciais da espécie permite criar ou reforçar estratégias de proteção, especialmente no caso de cria e manutenção dos filhotes.
“Eles continuam transitando naquela região onde já sabíamos da abundância grande. É o encontro de cursos d’água, uma área onde a água branca [barrenta] entra em algum momento do ano e fertiliza a região, então tem bastante peixe. À medida que a água sobe, vamos ver se eles saem, por exemplo, em direção ao Rio Japurá ou à Reserva Mamirauá.”
conta Marmontel.
Uma nova expedição à RDS Amanã está programada para o segundo semestre de 2023. “É interessante capturar os animais, segui-los com o rastreamento satelital e depois repetir para entender um pouco da ecologia do bicho e que mecanismos podemos usar para reduzir o conflito entre botos e pessoas, principalmente pescadores”, considera Oliveira.
“Um dos botos emite quase o dobro de sinais do que os outros. Vamos olhar as características, para saber se era o animal que estava com problema respiratório e, por isso, tem que subir mais vezes para respirar”
destaca Marcelo Oliveira, especialista em conservação do WWF-Brasil e coordenador da Iniciativa Botos da América do Sul (Sardi, na sigla em inglês).