Comunidades onde moram mais de 2 mil indígenas ficam no município de Cantá e estão encobertas pela fumaça. Roraima registra mais de 4 mil focos de calor desde o início do ano, cerca de 28% de todos os focos de incêndio no Brasil.
As comunidades indígenas Tabalascada e Canauanim, que ficam no município do Cantá, a 26km de Boa Vista, em Roraima, sofrem com os reflexos da estiagem e dos incêndios florestais. Nas comunidades, moram mais de 2 mil indígenas e a vegetação foi completamente destruída pelo fogo.
Na comunidade Tabalascada há muita fumaça densa e as duas escolas, uma estadual e outra municipal, fecharam os portões e não há previsão de retorno – tudo isso para evitar a exposição à tanta fumaça. São cerca de 300 alunos, da educação infantil ao ensino médio, sem aulas. A situação é semelhante em Canauanim, segundo a professora Greyce Rocha.
“Tiveram que paralisar as aulas também por conta da fumaça. Os alunos não conseguiram ficar dentro de sala, a comunidade toda, o Centro, tava tudo tomado por fumaça, então não tinha condições da gente ficar dentro de sala com os alunos. Nós estamos com uma base de 25 alunos por sala, então não tem condições de gente ficar em sala de aula com essa fumaça. As crianças sofrem, os adolescentes sofrem, não tem ventilador”, afirmou a professora Greyce Rocha.
Roraima continua sendo consumido pelas chamas um mês após quebrar um recorde histórico e ser o estado brasileiro com o maior número focos de calor. A seca severa, que aumenta as possibilidades de incêndio, reduziu a vazão dos principais rios e levou 14 dos 15 municípios a decretarem emergência, dentre eles, Cantá, um dos com mais focos de calor em março.
– Seca severa: a temporada de chuvas veio menor do que o esperado neste ano, reflexo do fenômeno El Niño. A situação climática deve se estender até abril, quando voltará a chover com um pouco mais de regularidade.
– Queimadas: nesta época do ano, é comum que produtores façam incêndios para a limpeza de áreas de plantio e pasto. Apesar da suspensão das licenças ambientais para a prática, há casos de registros de incêndios criminosos, segundo especialistas.
No que se refere a focos de incêndios, 15 terras indígenas localizadas no estado estão entre os 30 territórios com mais focos de calor no Brasil. Veja abaixo as áreas mais atingidas pelo fogo:
Terra Indígena Raposa do Sol (Nordeste de Roraima): 287.523 hectares atingidos e 262 focos;
Terra Indígena São Marcos (Nordeste de Roraima): 154.55 hectares atingidos e 81 focos;
Terra Indígena Yanomami (entre os estados do Amazonas e Roraima): 34.662 hectares atingidos e 388 focos.
Na comunidade indígena Tabalascada há uma Unidade Básica de Saúde. Mas muitas mães preferem usar os conhecimentos tradicionais indígenas, com plantas que vem da floresta, para tratar as crianças que sofrem com os efeitos da fumaça. O problema é que parte dessas plantas também foi engolida pelo fogo.
“Tenho um filho de quatro anos que passou mal da fumaça, mais à noite, às vezes falta de ar, começou de novo a tosse e a gripe. A gente tá fazendo de tudo, como aqui é uma comunidade, a gente sabe que tem remédio caseiro, medicinal, a gente faz também. Isso foi bem triste, né, porque a maioria da plantação, como por exemplo, a Salva do Campo, dá no lavrado e a gente encontrou tudo queimado”,
relatou Yasmin Silveira, dona de casa.
Piores meses
O estado concentra 28% de todos os focos de incêndio registrados no Brasil, desde o início deste ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
Foram 4.047 focos de calor até 30 de março. São 3,4 mil casos a mais do que o registrado durante os três primeiros meses do ano passado.
Com uma extensão de 224,3 mil km², o estado já teve 10,7 mil km² consumidos pelo fogo neste ano, sendo 48% da área está localizada em terras indígenas, segundo os mais recentes dados do Monitor do Fogo, plataforma do MapBiomas, que monitora a extensão territorial afetada por queimadas.
Se somadas as áreas devastadas, o fogo em Roraima corresponde a 54% de toda a área queimada no Brasil em 2024, ou seja, foram 1.980.043 hectares afetados, o equivalente a área de cerca de 1,9 milhão de campos de futebol.
De acordo com a diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do MapBiomas Fogo, Ane Alencar, o aumento de incêndios florestais já é considerado “absurdo” se comparado com os casos registrados desde o início do monitoramento, em 2019.
“Isso tudo nos levar a crer que esse aumento se deu principalmente por conta das condições climáticas que foram muito adversas, muito atípicas no final de 2023 e agora no início de 2024”, explicou.
Na análise de focos de calor, foram 1.378 em todo o estado em março. Segundo o chefe do Programa Queimadas, do Inpe, Fabiano Morelli, os focos registrados são novos incêndios que, na maioria, é causado pela ação humana.
“Todo o foco é a identificação de um incêndio que está acontecendo e o satélite visualiza ele por dia, então, cada foco cada dia é um foco novo […] E são vários motivos para se ter o fogo, mas sempre relacionado a um ser humano, que tomou a iniciativa de botar o fogo, natural, ele é raro”,
disse.
Para o chefe da Defesa Civil Estadual, coronel Cleudiomar Ferreira, um dos grandes desafios é a conscientização das pessoas sobre as queimadas, já que qualquer fagulha neste período do ano pode se tornar um incêndio de grandes proporções.
“É preciso ter uma repressão, para que as pessoas que fazem deliberadamente [as queimadas] tenham consciência de que isso é um crime ambiental e que estão provocando um dano muito grande. O desastre é evidente. Os danos são incalculáveis para os próprios produtores não só por questão ambiental”, afirmou.
As licenças ambientais para queimadas controladas foram suspensas em fevereiro, período em que os focos se multiplicaram, após 62 emissões. A técnica é usada por produtores rurais para a limpeza do solo e há previsão legal para isso, sob autorização do governo estadual.
“As pessoas estão queimando, o problema é que ninguém parou de queimar. As pessoas estão fazendo a queima clandestina, todos os incêndios desse período [são clandestinos] porque as queimadas estão proibidas”, afirma Cleudiomar.
A Defesa Civil ainda não tem calculado os impactos da estiagem deste ano em todo o estado e quantos foram os incêndios criminosos. Mas, segundo Ferreira, diariamente ele recebe relatos de produtores que perderam plantações inteiras para o fogo e mortes de animais por falta de água e de pasto.
Nos três primeiros meses do ano, o estado registrou o maior número de focos de calor no período, apesar da redução de 36% se comparado com os casos de fevereiro.
Para se ter uma noção do impacto, ainda estão em Roraima 7 das 10 cidades brasileiras com maior volume de pontos de fogo, segundo o Inpe. O estado divide o ranking com Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.
Muito fogo e pouca água: situação de emergência
A falta de chuva colocou 14 cidades, incluindo a capital, em situação de emergência. São elas: Amajari, Alto Alegre, Boa Vista, Cantá, Caracaraí, Caroebe, Iracema, Mucajaí, Pacaraima, Rorainópolis, Normandia, São João da Baliza, São Luiz e Uiramutã.
Com os decretos, estão autorizadas a adoção de medidas para a contratação de pessoal e a mobilização dos órgãos estaduais para atuarem na prevenção do desastre.
Bonfim, cidade na fronteira com a Guiana, ao Norte do estado, é o único município que está fora da lista. No entanto, a prefeitura, a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros realizam ações permanentes na região e os casos de incêndio estão sob controle
Roraima tem boa parte do território localizado no hemisfério Norte, por isso, atualmente está na estação seca, chamada de “verão amazônico” — o período vai de outubro a março. Os meses de dezembro e janeiro são os mais secos, com registro de poucas chuvas.
No entanto, os níveis dos rios são considerados baixos desde outubro de 2023, quando começava a estiagem severa, segundo a pesquisadora em geociência Jussara Cury, do Serviço Geológico do Brasil, que acompanha as bacias da Amazônia Ocidental.
“As [marcas] mínimas normalmente ocorrem em fevereiro do ano seguinte, assim, com as precipitações na região muito abaixo do normal desde janeiro do ano em curso, a vazante ficou acentuada e de certa forma prolongada pela ausência de chuvas no mês de março”.
Jussara Cury, do Serviço Geológico do Brasil
– O Rio Branco, principal rio de Roraima e corta a capital, atingiu a marca de 39 cm negativos, enfrentando segunda maior seca da história. A tendência é que o nível do rio baixe ainda mais. O cenário é de balsas e canoas na areia, pescadores à deriva sem ter como navegar e pessoas atravessando o rio pé.
– No interior, o rio Mucajaí secou e o serviço de distribuição de água foi comprometido em 70% da capacidade.
– Em Boa Vista, por exemplo, as chuvas têm ficado abaixo da média histórica: janeiro com 4,2 mm (14%) e fevereiro com 6,8 mm (21%), segundo o Inmet.
– Foram 42 dias sem chuvas e a três dias para o fim de março, choveu na capital. De acordo com meteorologista da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), Ramón Alves foram 26 mm de água na quinta-feira (28). O volume, no entanto, não chegou ao esperado, que era de 39,2 mm.
O pescador Fernando Silva Coelho, de 44 anos, disse que está preocupado com a situação já que tira o sustento do Rio Branco. “Muito triste. Muito triste mesmo. A gente fica até emotivo um pouco de ver o rio dessa forma. Porque a gente não quer que o rio fique assim. Mas é a mudança do clima. É assustador”, destacou.
‘Tocha de fogo’ e nuvem de fumaça
Um dos produtores que perdeu plantações foi o João Oliveira Filho, de 64 anos. Em entrevista ao g1, ele disse que desde de fevereiro trabalhava na propriedade rural onde vive, no Cantá, um dos municípios com mais focos de calor em março, construindo aceiros para evitar que o fogo chegasse até as áreas.
Mas, no início desta semana, não teve jeito. O fogo chegou pelo ar, por faíscas de incêndio na região. E isso foi o suficiente para queimar o pomar de laranjas, de limão e de açaí que estava dando frutos.
“Ficamos até as 22h apagando fogo junto com os bombeiros, mas o fogo tomou conta e nós não conseguimos vencer o fogo. Foi um negócio absurdo”, contou.
A propriedade de João fica na região do Tatajuda, onde há ao menos 40 outras pequenas propriedades rurais impactadas pelas chamas.
“O fogo não é só no Tatajuba, é em todo o Cantá. O Cantá é uma tocha de fogo que se tornou uma coisa fora de controle, muito seco, muito vendo e chega uma hora que você não consegue controlar”.
As aulas no município também foram suspensas devido aos efeitos da nuvem cinzenta.
Sem ventilador ou ar-condicionado, as crianças da comunidade indígena Canauanim, onde vivem os povos Wapichana e Macuxi, também não conseguiam ficar dentro das escolas, invadidas pela fumaça.
“As crianças não estavam aguentando ficar dentro das salas. A escola está com estrutura precária, não tem ventilador, não tem central de ar, tem mal as janelas, portas, é bem complicado. As crianças não conseguiam ficar dentro das salas sem usar máscaras”, afirma a professora Greyce Rocha, de 36 anos.
Já na capital, com a mudança na direção do vento causada pela Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), os sensores que medem a qualidade do ar indicaram que a poluição atingiu 402 microgramas de partículas de poluição (PM 2.5) no fim da tarde do domingo (24).
Contexto: ZCIT é encontro de ventos na região do Equador. É dos principais sistemas meteorológicos causadores de chuva em parte das regiões Norte e Nordeste do Brasil, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet).
“Toda a fumaça é daqui de Roraima, com pouquíssimos focos da Guiana. Todo esse material fica não só em Roraima, mas também atinge a Venezuela”, disse o pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, Reinaldo Imbrózio.
O pesquisador do Instituto ainda reforça que para melhorar a qualidade do ar, é necessário conter os incêndios, tendo em vista que eles são os causadores da fumaça poluente.
“O nosso grave problema é conter esses incêndios florestais, conter esses incêndios nos lavrados, que isso é importantíssimo para a nossa saúde física”.
Amazônia em chamas
Com uma vegetação composta por florestas e savanas, Roraima integra o bioma da Amazônia, o mais atingido pelas chamas em 2024.
Segundo Ane Alencar, especialista do Ipam, tanto a floresta quanto o lavrado queimam em Roraima. No entanto, por ser mais baixa, aberta e seca, a vegetação do lavrado tem uma “adaptação” e é mais sensível ao fogo. Por isso, em uma condição de seca extrema, como é o caso de Roraima, a propagação das chamas é facilitada.
“O fogo ocorre de uma forma mais frequente do que ocorreria, por exemplo, em um ambiente de floresta úmida como é grande parte da Amazônia. Então, realmente é esperado que o lavrado queime um pouco mais. Em uma condição de seca extrema, esse ambiente vai ser muito mais impactado do que qualquer outro ambiente E é isso que a gente vê se repetindo no início de 2024, porque as condições de seca estão sendo muito extremas”,
disse.
O porta-voz do Greenpeace Rômulo Batista explicou ao g1 que os ventos em áreas de lavrado também contribuem para avanço do fogo.
“O lavrado é uma vegetação mais baixa, aberta e mais seca. Ela não é que nem uma floresta tropical, que é mais úmida, e isso facilita muito que o fogo se espalha rapidamente. É importante a gente nota que, além de tudo [isso], a gente tem a questão do vento. O vento quando está dentro da floresta ele tem como se fosse uma parede, mas no lavrado não. [No lavrado] ele vai empurrando esse fogo, que vai avançando rapidamente”.
Com uma vegetação de lavrado, a cidade de Normandia, ao Nordeste de Roraima, por exemplo, é a que mais teve área queimada no país desde o começo do ano. As chamas destruíram mais de 172 mil hectares, o que equivale cerca de 172 mil campos de futebol.
O pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Haron Xaud, explica que os impactos do fogo na savana são mais fáceis de reverter, tendo em vista que se trata de um ecossistema com flexibilidade de regeneração. Agora, se tratando da área de florestas, é mais preocupante.
“De uma forma geral, as nossas regiões de savana conseguem se manter como savanas. O que acontece em florestas e qual a nossa maior preocupação com esses mega incêndios? Esses ecossistemas não são adaptados ao fogo. Então quando esses fogos, esses incêndios não são de primeira vez, eles são já em algumas áreas de segunda e terceira vez, esses impactos não deixam que a floresta se recupere”.
*Por Yara Ramalho, Valéria Oliveira, Samantha Rufino e Caíque Rodrigues, do g1 Roraima, com a colaboração de Rânia Barros, Camila Costa e Marcelo Marques, da Rede Amazônica.