Conflitos causados pela mineração na Amazônia Legal são mapeados por pesquisas

A Amazônia Legal, composta por nove estados brasileiros, foi a região com mais disputas, concentrando 46,3% das ocorrências.

A corrida pela exploração dos chamados minerais críticos à transição energética acentua os conflitos socioambientais existentes no setor mineral brasileiro. Esses elementos naturais são necessários para o desenvolvimento de uma economia de baixo carbono e a produção de componentes utilizados na fabricação de baterias, veículos elétricos, painéis solares, turbinas eólicas, entre outros itens. Além disso, eles também são aplicados majoritariamente em atividades não relacionadas com a transição energética. 

No total, 101 mil pessoas em 15 estados foram impactadas pela extração de minerais da transição, que desencadeou 380 confrontos no país entre 2020 e 2023. A Amazônia Legal, composta por nove estados brasileiros, foi a região com mais disputas, concentrando 46,3% das ocorrências. Na avaliação individual por unidade da federação, Pará e Minas Gerais agruparam 66,7% dos embates. Os dados foram mapeados em estudo publicado em agosto pelo Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, iniciativa composta por pesquisadores de instituições de todo o país, movimentos sociais e organizações não governamentais (ONG).

Outro levantamento elaborado pelo mesmo observatório em 2023 indica que, desde 2020, as atividades de extração legal e ilegal de todo o setor mineral têm ocasionado de 850 a 950 conflitos e afetado cerca de 1 milhão de pessoas por ano. O documento também mostra que Minas Gerais (37,5%), Pará (12%) e Alagoas (10,1%) concentraram em 2022 a maior parcela de pessoas atingidas por esses embates.

Um dos autores das pesquisas, o geógrafo Luiz Jardim Wanderley, da Universidade Federal Fluminense (UFF), esclarece que são considerados conflitos as reações dos atingidos pelos impactos socioambientais e pelas situações de violência, que incluem trabalho em condições análogas à escravidão, estupros, acidentes, ameaças, tentativas de assassinato e mortes. 

“Durante a pandemia, o setor mineral registrou inúmeras violações trabalhistas por não ter adotado políticas eficientes para preservar a saúde de funcionários”, comenta. O “Relatório anual do Conselho Internacional de Mineração e Metais” indica que, no Brasil, 43 funcionários de empresas associadas à entidade morreram em razão de acidentes de trabalho, em 2021. Em 2019 e 2020, os números foram 287 e 44, respectivamente.

Wanderley explica que, para entrar nos mapeamentos, o conflito precisa ter suscitado reações na população, entre elas processos judiciais, manifestações, cartas de repúdio ou denúncias em jornais. 

“Quando o embate não causa essa resposta, não entra em nossa contagem”, informa. Para fazer os levantamentos, os estudos analisaram dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que desde 1985 registra conflitos agrários, e do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), ambos órgãos da Igreja Católica. Também se valeram de dados sobre esse tipo de ocorrência registrados em documentos de ONGs, denúncias de movimentos sociais, notícias veiculadas pela imprensa, entre outros meios.

No estudo sobre minerais necessários à transição energética, foram abarcados conflitos envolvendo 31 elementos, entre eles alumínio, bário, boro, cádmio, cobalto, cobre, lítio, manganês, nióbio e níquel. De acordo com informações da Agência Nacional de Mineração (ANM), de 2013 a 2022, o valor da extração desses minerais passou de R$ 27,7 bilhões para R$ 38,6 bilhões, resultando em um crescimento real (descontada a inflação) de 39%. No mesmo período, os números correspondentes para o setor mineral como um todo subiram de R$ 243 bilhões para R$ 266 bilhões em valores deflacionados, o que representa um crescimento de 9,3%.

Os conflitos identificados nesse levantamento podem se sobrepor. O tipo mais prevalente abarca disputas pelo uso da terra, que abrangeram 59,2% das ocorrências, seguidos de embates relativos a acesso à água (39,4%), problemas de saúde (16,4%) e questões trabalhistas (12,4%), explica Wanderley. O cobre e a bauxita foram os minerais utilizados na produção de componentes necessários à transição energética que provocaram mais danos, com 25,3% das ocorrências cada um. Ao mesmo tempo, esses elementos apresentaram uma valorização de mercado entre 2020 e 2023. 

Foto: Alessandro Falco/Bloomberg via Getty Images

Barcarena (PA), Canaã dos Carajás (PA) e Craíbas (AL) ocupam os três primeiros lugares da lista de cidades com maior número de disputas envolvendo a mineração associada a elementos importantes para equipamentos da transição energética. 

Em Barcarena, predomina a extração e o processamento de bauxita, utilizada para a obtenção de alumínio. Em 2018, a população local denunciou o vazamento de rejeitos de uma barragem, que contaminou rios e igarapés. Já em Canaã dos Carajás, a principal atividade de mineração é a extração de minério de ferro e cobre, que tem causado o deslocamento de comunidades locais. 

“A situação gera conflitos relacionados à perda da terra e impacta os modos de vida de comunidades, sobretudo indígenas e ribeirinhas”, diz Palheta. A cidade é também palco de embates trabalhistas associados às mineradoras. Na região está o maior projeto de extração de minério de ferro da história da Vale, com capacidade de produção de 120 milhões de toneladas anuais.

Palheta desenvolve estudo em quatro cidades paraenses que abrigam projetos de mineração: além de Canaã dos Carajás e Barcarena, Parauapebas e Paragominas. De acordo com ele, os municípios com maior Produto Interno Bruto (PIB) per capita do Brasil, frequentemente, abarcam localidades com grandes empreendimentos industriais ou extrativos, como é o caso de Parauapebas. 

“No entanto, a exemplo do que ocorre com outras cidades com essas características, Parauapebas é marcada por situações de pobreza, o que inclui falta de saneamento básico”, relata.

Segundo ele, isso ocorre em razão da falta de transparência sobre o uso dos recursos provenientes da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), receita patrimonial cobrada sobre os ganhos obtidos com a atividade. “Os recursos obtidos com a CFEM só podem ser investidos nas áreas da saúde e de educação, mas faltam mecanismos de controle para identificar onde de fato o dinheiro é gasto”, afirma o geógrafo. 

De acordo com os relatórios produzidos pelo Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M) está abaixo da média nacional em 27 dos 50 municípios mais minerados do Brasil. Em relação ao Índice de Gini, que mede desigualdades, 34 dessas 50 cidades têm indicadores piores do que o 14º país mais desigual do mundo, a República do Congo.

Segundo a organização, os grupos mais afetados pela exploração de minerais associados à transição energética são pequenos proprietários rurais (envolvidos em 23,9% das ocorrências), trabalhadores das empresas de mineração (12,1%) e indígenas (9,8%). Do outro lado, mineradoras internacionais (46,3%) e nacionais de médio porte (33,6%) foram as principais organizações implicadas nos embates. 

Foto: Nelson Almeida/AFP via Getty Imagens

A observação é corroborada pela economista Beatriz Macchione Saes, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Com pesquisas sobre a relação entre desenvolvimento econômico, mineração e os conflitos deflagrados pela atividade, ela traz como exemplo a situação do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

Desde 1991, a região conta com projetos de exploração de lítio, metal utilizado em equipamentos como baterias de carros elétricos, mas há cada vez mais mineradoras interessadas em atuar com a atividade. “No momento, quatro companhias tentam aprovar iniciativas para explorar lítio na região e a eventual chegada delas pode acirrar os conflitos com as comunidades locais”, avalia.

Estudioso das corporações do setor mineral, o engenheiro de produção Bruno Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), explica que, após a década de 1990, essas empresas passaram a adotar práticas para mitigar impactos socioambientais. De acordo com o pesquisador, até 1989, por exemplo, as mineradoras que atuavam em Oriximiná, no Pará, jogavam os rejeitos diretamente nos rios, em um procedimento que, naquela época, era aceito pelo Estado brasileiro. “Até hoje, essas empresas tentam reparar os danos resultantes da atividade”, diz. 

Nos anos 2000, as corporações criaram barragens para conter os rejeitos e, atualmente, é possível empilhar os resíduos a seco, utilizando sistemas de filtragem. “Porém, mesmo com a redução dos impactos, não há como escapar de efeitos socioambientais negativos”, afirma. Milanez conta que algumas mineradoras reconhecem o problema e, inclusive, abandonaram o uso do termo “mineração sustentável”. “Atualmente, o conceito mais utilizado pelo setor é o de ‘mineração responsável’. 

Por meio dele, as companhias reconhecem que os impactos negativos são inerentes à sua atividade, mas sustentam que é possível adotar estratégias de redução de danos”, relata o pesquisador.

Em declaração enviada por e-mail, o Grupo Hydro, multinacional produtora de alumínio, destaca que as atividades de empresas que recebem seus investimentos no país são monitoradas e auditadas, com o compromisso ‘de serem boas vizinhanças às comunidades’. Uma delas é a Mineração Paragominas, no Pará, que adotou uma técnica capaz de devolver os rejeitos inertes da mineração de bauxita às áreas já exploradas. 

Essa metodologia, afirma a empresa, permite reconstruir a topografia original do terreno e reduzir o risco de erosão, minimizando os impactos ambientais. Por sua vez, a Anglo American, multinacional focada na exploração de minerais como diamante, mercúrio, cobre e níquel, informa, por e-mail, que em 2019 criou um plano para melhorar os sistemas de educação e saúde das comunidades que recebem suas operações no país.

Para Saes, da Unifesp, o momento conhecido como o boom das comodities, entre 2000 e 2014, foi marcado por um acirramento na incidência de conflitos do tipo no país. Naquele período, o Brasil registrou um aumento acentuado na demanda por bens primários e matérias-primas, incluindo minerais. 

Nas primeiras décadas do século XXI, o país registrou dois de seus maiores desastres ambientais causados pela extração de minério de ferro. Em 2015, o rompimento da barragem da empresa Samarco (controlada pela Vale e pela mineradora anglo-australiana BHP Billiton) na região de Mariana (MG) matou 19 pessoas e liberou por volta de 39 milhões de metros cúbicos de lama tóxica, que atingiu o leito do rio Doce e diversas comunidades em Minas Gerais e no Espírito Santo ao longo de mais de 600 quilômetros (km).

Segundo o Atlas do problema mineral brasileiro, publicado em 2023, o grupo constituído pela Samarco, Vale e BHP Billiton foi o que causou a maior quantidade de conflitos no campo entre 2004 e 2020, com um total de 462 ocorrências nesse período.

Já em 2019, o colapso de uma barragem da Vale em Brumadinho (MG) matou cerca de 270 pessoas e contaminou a bacia do rio Paraopeba, que se estende por 510 km. Em comunicado enviado por e-mail, a Vale esclareceu que estão previstos R$ 37,7 bilhões para reparação dos danos do desastre – 70% desse total já foi aplicado. A companhia afirma que, desde o começo de 2023, tem criado mecanismos para escutar as demandas das populações atingidas.

Em Mariana, o processo de reparação estabelecido pela Samarco destinou R$ 37 bilhões para ações de reparação e compensação de danos decorrentes do rompimento da barragem. Do total, R$ 17,48 bilhões foram em indenizações e auxílio financeiro emergencial. A empresa informa, em comunicado enviado por e-mail, que 85% dos casos de reassentamento das comunidades impactadas foram concluídos. 

Foto: Victor Moriyama/Bloomberg via Getty Images

Apesar dos acordos, as vítimas seguem buscando reparação na Justiça inglesa, na medida em que uma das controladoras da Samarco, a BHP, tem procedência anglo-australiana. Em 2023, um escritório de advocacia em Londres entrou com um pedido de indenização de R$ 230 bilhões para 700 mil vítimas do desastre.

Com pesquisas sobre o desenvolvimento desse processo de reparação, a socióloga Raquel Oliveira, do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que ele tem gerado tensões internas entre as comunidades afetadas. Oliveira explica que antes do desastre muitas famílias compartilhavam os terrenos entre os seus parentes. Assim, avós, pais e filhos, por exemplo, construíam suas casas no mesmo sítio, mantido como terra de herdeiros.

Outro problema, segundo a antropóloga Gabriela de Paula Marcurio, que faz doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) com bolsa da FAPESP, é que as mineradoras implicadas nos desastres desconsideram perdas relevantes para as comunidades atingidas ao inventariar os danos causados por suas atividades. Entre elas, estão as alterações na forma de viver e o tempo gasto para gerenciar problemas ocasionados pelo rompimento da barragem, como a participação em reuniões.

No doutorado, Marcurio pesquisa a chegada de empresas para a exploração de minério de ferro, cobre e fosfato na região de Juazeiro, no sertão baiano, área de expansão da fronteira mineral. De acordo com ela, mesmo antes da instalação formal de uma mineradora no território, a população já começa a sentir seus impactos. 

“Pequenos agricultores têm reclamado da presença de drones e de pessoas que não fazem parte da comunidade circulando por suas propriedades sem consultá-los”, exemplifica.

Milanez, da UFJF, destaca que o subsolo do país é um bem da União e, por causa disso, as pessoas podem ser desapropriadas de suas casas para viabilizar projetos do setor. Além disso, de acordo com a ANM, quem consegue autorização para instalar uma mina em determinado lugar, conquista exclusividade para explorar o território em questão. “Esses aspectos fazem com que os conflitos, em muitas situações, ocorram em um contexto caracterizado pela desigualdade de poder”, comenta o engenheiro.

Com a meta de articular e disseminar estratégias para restringir ou proibir a mineração em determinadas áreas, um grupo de pesquisadores, movimentos sociais, comunidades locais e organizações não governamentais criou a plataforma Territórios Livres de Mineração (TLM), em 2022. O repositório traz informações sobre medidas elaboradas a partir de legislações municipais, plebiscitos e consultas populares que conseguiram frear projetos indesejados em áreas vulneráveis.

Foi o que aconteceu em Muriaé (MG), onde os moradores da cidade impediram a instalação de um projeto de exploração de bauxita no distrito de Belisário, no entorno do Parque Estadual Serra do Brigadeiro.

A reportagem acima foi publicada com o título “Territórios em disputa” na edição impressa nº 343, de setembro de 2024.

Projeto
A memória da Comissão Pastoral da Terra de Juazeiro diante da mineração no semiárido baiano (nº 23/02480-1); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Jorge Luiz Mattar Villela (UFSCar); Bolsista Gabriela de Paula Marcurio; Investimento R$ 342.357,84.

Artigos científicos
MAGNO, L. et alTerritórios corporativos da mineração: Barragens de rejeito, reconfiguração espacial e deslocamento compulsório em Minas Gerais. Revista NERA, 26 (66). 2023.
PALHETA, J. M. et alDinâmica territorial dos grandes projetos de mineração em Barcarena no estado do Pará, região Norte do Brasil. Contribuciones a las ciências sociales. 16(9). 2023.

Relatórios
Transição desigual: As violações da extração dos minerais para a transição energética no Brasil. Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil, 2024.
Conflitos da mineração no Brasil 2022: Relatório Anual. Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à MineraçãoObservatório dos Conflitos da Mineração no Brasil. 2023.
Atlas do problema mineral brasileiro. Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração.  Observatório dos Conflitos da Mineração no Brasil. 2023.

Livro
MARCURIO, G. P. A máquina do terror ‒ A luta das pessoas atingidas pelo desastre da Samarco em Mariana (no prelo).

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Revista Pesquisa Fapesp, por Christina Queiroz

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