Água de 12 lagos da Amazônia já está mais quente que em 2023, quando 330 botos morreram

Dados inéditos de uma nova plataforma desenvolvida pelo WWF-Brasil e pelo MapBiomas mostram ainda que a temperatura da água em todos os 23 locais monitorados até agora está maior que a média dos últimos 5 anos.

Foto: Adriano Gambarini/WWF-Brasil

Com a seca extrema castigando a Amazônia pelo segundo ano consecutivo, órgãos dos governos estaduais e federal têm evidenciado que os principais rios do bioma estão descendo a níveis baixíssimos, com graves impactos ambientais, sociais e econômicos. Agora, dados inéditos de uma plataforma desenvolvida pelo WWF Brasil e pelo MapBiomas, que monitora 23 lagos dos mais de 60 existentes na Bacia Amazônica com a mesma hidrogeomorfologia, revelam também que as águas dos lagos conectados a esses rios estão atingindo temperaturas mais altas, o que representa um grave risco para a fauna aquática, em especial para os botos.

Todos os 23 lagos monitorados pela ferramenta estão com a temperatura acima da média acumulada dos últimos cinco anos para o mês de agosto.

“Esses lagos também acumulam de 5 a 9 meses com temperaturas médias acima do observado em 2023, ressaltando o estresse fisiológico acumulado pela sucessiva exposição a altas temperaturas e baixos níveis de água”.

A necessidade de monitorar a temperatura dos lagos amazônicos surgiu a partir de setembro de 2023, quando o bioma também enfrentava uma seca extrema e 330 botos das espécies cor-de-rosa (Inia geoffrensis) e tucuxi (Sotalia fluviatilis) morreram nos lagos Tefé e Coari, ambos conectados ao rio Solimões, no interior do Amazonas.

De acordo com o Instituto Mamirauá, já foi confirmado que a morte dos botos em 2023 foi causada pela alta temperatura da água, que chegou a 40 graus na ocasião. A plataforma também permite monitorar a área coberta por água nos lagos, já que a redução da quantidade está diretamente ligada ao aquecimento. A grande preocupação dos pesquisadores neste momento é que os níveis dos principais rios estão muito abaixo do normal em 2024.

No dia 30 de agosto, o Solimões atingiu a cota de 94 centímetros negativos, a mais baixa já registrada pelo Serviço Geológico Brasileiro (SGB) em toda a série histórica do monitoramento, iniciada em 1989. O recorde anterior era de 86 centímetros negativos, em 2010. A situação continuou se agravando e, no dia 20 de setembro, a cota chegou a 206 centímetros negativos.

Foto: Adriano Gambarini/WWF-Brasil

“No ano passado, quando ocorreu a tragédia com os botos, não tínhamos dados sobre as variações de disponibilidade e temperatura da água dos lagos. A nova ferramenta nos permitirá monitorar esses 23 lagos, que foram identificados como vulneráveis, para acompanhar as variações, a partir da comparação da temperatura e disponibilidade de água em diferentes anos, a fim de gerar alertas para orientar ações emergenciais em campo”, explica Helga.

De acordo com os resultados obtidos até agora pela plataforma, o aumento da temperatura em relação à média dos últimos cinco anos chega a 1,5 °C em locais como o Lago do Rei, no rio Amazonas. Mas o dado mais impactante foram os 12 lagos que estão ainda mais quentes que em 2023, com uma diferença que chega a 0,86 °C no Lago Calado, próximo a Manacapuru (AM).

“Esse aumento pode parecer pequeno em termos de magnitude de temperatura, mas antecipa um alerta de risco de ocorrência de mortalidade de botos, uma vez que as temperaturas do ar também estão altas e a qualidade, devido às queimadas, também atinge níveis críticos”, declara a pesquisadora.

Lago Tefé mais quente que em 2023

De acordo com Juliano Schirmbeck, coordenador técnico do MapBiomas Água, a plataforma obtém dados a partir de duas fontes de sensoriamento remoto: o sensor Modis, do satélite Terra, e o sensor TIRS, do satélite LandSat, que passa com menos frequência. Combinando as duas fontes, é possível contar a história das variações nas temperaturas médias dos lagos.

“O LandSat tem uma alta resolução espacial, isto é, cada pixel da imagem equivale a uma área de 30 metros. Mas ele só passa sobre a região uma vez a cada 16 dias. Já o Modis tem uma resolução espacial menor e cada pixel equivale a um quilômetro. Porém, sua resolução temporal é bem mais alta: ele passa todos os dias. Quando juntamos os dois, obtemos de fato uma ferramenta de monitoramento robusta”, destaca.

A equipe está trabalhando com um histórico de cinco anos de dados de temperaturas com base no sensor Modis.

Foto: Adriano Gambarini/WWF-Brasil

No lago Tefé, por exemplo, onde morreram 209 botos em 2023, as temperaturas estão 0,8 °C acima da média dos últimos cinco anos e 0,2 °C acima de 2023, de acordo com os dados obtidos pela plataforma. “O problema é que ainda temos pela frente mais dois meses de estação seca na Amazônia e esses números são um indício de que no auge do calor, entre setembro e outubro, teremos temperaturas bem acima das registradas no ano passado”, diz Schirmbeck.

Alertas para a ação em campo

Mariana Paschoalini Frias, analista de conservação sênior do WWF-Brasil que também participou do desenvolvimento da plataforma, lembra que um dos propósitos da ferramenta é complementar o monitoramento dos botos que é feito continuamente, desde a crise de 2023, por uma força-tarefa liderada pelo Instituto Mamirauá e pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Além disso, a ideia é ampliar o uso da plataforma para áreas ainda não monitoradas e sem qualquer tipo de
informação precedente, pois isso ajudará a dar escala ao problema e mensurar o nível de resposta necessária.

“O Instituto Mamirauá e o ICMBio têm o protagonismo nesse grupo de resposta à emergência que se dedica ao monitoramento, estudo e resgate dos botos. O objetivo do monitoramento por sensoriamento remoto feito pela plataforma é fornecer dados que permitam emitir alertas para equipes que direcionam as ações em campo”, declara Mariana. “Assim como para que outros tomadores de decisão em níveis estadual e nacional possam estruturar ações coordenadas”.

Segundo ela, embora as mortes em massa de botos tenham sido registradas apenas nos lagos Tefé e Coari, uma análise feita pelos pesquisadores do Instituto Mamirauá identificou um total de 23 lagos onde há presença de botos e que foram considerados áreas vulneráveis ao superaquecimento da água.

Sempre que os satélites detectarem um aumento importante na temperatura da água de um desses lagos, um alerta será disparado para que as equipes possam se deslocar para um local específico e colocar em ação o protocolo de emergência -sob comando do ICMBio. “Esses alertas são essenciais para que tenhamos tempo hábil para agir”, diz Mariana.

Temperaturas podem subir rapidamente

Com o baixíssimo nível atual do Médio Rio Solimões, as temperaturas tendem a subir perigosamente nas próximas semanas, conforme uma análise feita pelo Instituto Mamirauá com dados coletados até o dia 2 de setembro.

De acordo com Ayan Fleischmann, coordenador do Grupo de Geociências do Instituto Mamirauá, esses dados foram obtidos a partir de sensores automáticos instalados em dois flutuantes no lago Tefé – que medem a temperatura a cada 10 minutos em diversas profundidades – e um monitoramento mensal em 24 pontos do lago.

“O nível do lago Tefé está em 6,35 metros, cerca de 1,6 metro acima do mínimo atingido no dia 23 de outubro de 2023. Quando a cota está abaixo de 7 metros, vemos que a água começa a ganhar calor muito rapidamente durante o dia. Já identificamos que o lago começou a esquentar nas últimas semanas. No dia 25 de agosto, alcançou 33 graus em toda sua profundidade – a maior temperatura do ano”, afirma Fleischmann.

O superaquecimento dos lagos amazônicos é resultado da combinação de vários fatores, como a redução da quantidade de água, excesso de radiação solar e água excessivamente turva, que facilita a difusão de calor no lago, segundo o pesquisador.

“Nos últimos dias choveu muito, o que resultou em um cenário mais favorável. Com isso, a temperatura ainda não chegou aos 40 graus, que é o limiar perigoso para os mamíferos aquáticos, mas estamos preocupados com as próximas semanas. No ano passado, observamos que 3 a 6 dias de sol intenso são suficientes para uma elevação rápida da temperatura, transformando o lago em uma verdadeira armadilha para os botos”, explica Fleischmann.

Mas o risco não se restringe apenas ao aumento da temperatura na água. “Com o stress hídrico – baixo volume e extensão do lago, os botos ficam mais vulneráveis e expostos a conflitos com pescadores e outras interações antrópicas negativas”, alerta a oceanógrafa Miriam Marmontel, líder do grupo de pesquisa em Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Mamirauá. “Na última semana, no Lago Tefé, ao menos uma morte de boto ou tucuxi foi registrada por dia, resultante de interação desses animais com atividades de pesca, navegação e retaliação direta”, completa.

A plataforma desenvolvida pelo WWF-Brasil e pelo MapBiomas é aberta para consulta e pode ser acessada
por cientistas, estudiosos do tema e instituições interessadas AQUI.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo WWF-Brasil, por Fábio de Castro

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