Quinta do Mestre e da Sereia, em Alter do Chão, no Pará. Foto: Rony Aires para a Prefeitura Municipal de Santarém
Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com
Com a passagem do Sairé de 2025, lembrei de minha própria viagem a Alter do Chão, uma vila vizinha ao município de Santarém (PA), terra indígena borari, a quem não estiver familiarizado. Acontece que eu ouvi muito sobre o lugar, considerado por muitos um paraíso no coração do Norte brasileiro.
Acontece que Alter não é um Éden, mas um território encantado.
Não uso encantado como um adjetivo, mas o aproximo do terreno da encantaria, uma cosmovisão que aproxima as potências da natureza do ser humano, suspendendo a noção de que somos superiores a qualquer forma de vida. Tudo tem potência, da planta sob nossos pés até as criaturas da floresta: a compreensão do que é “humano” é mais vasta, mais ampla, e abrange muito mais do que pessoas.
Nesse sentido, tudo é feito da mesma matéria, e sendo feitos da mesma matéria, tudo é compartilhado em um único organismo que permite intercâmbios entre os elementos que o compõem, inclusive entre suas formas.
Não há muito o que amarrar em palavras.
Andar pela orla de Alter é perceber-se um filho pródigo, alguém distante que esqueceu do solo que o pariu, e que, de alguma forma, busca voltar, seja num banho de rio, seja na comunhão com a terra por meio de um tacacá ou, como experimentei, de um jeito encantado de contar histórias.
Às margens do rio, sereias existem, e mesmo quem nelas não acredite, sabe ali que são reais.
Não acredito em ninguém que encare as águas escuras de um rio nortista e não sinta que, se encarar fixamente, não sinta nada olhando de volta.
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Não acredito que estejamos tão consumidos pelo mundo capitalista que não haja em nós espaço para o mistério, especialmente para os filhos e filhas do Norte, cujo cordão umbilical não se corta.
As luzes da racionalidade, em algum momento, precisam se apagar para que a noite mostre que o universo é grande demais para nossas mentes tão pequenas.
A noite ensina humildade, nos lembra que não há diferentes do peixe charutinho que comemos ou da terra que nos come.
Em uma noite muito específica, essa lição é dada.
Falo da Quinta do Mestre e da Sereia, um momento semanal nas ruas de Alter que reúne turistas, locais, artistas, adultos, crianças e encantados em uma noite sagrada, onde uma história encantada é contada. É uma cerimônia de preservação do carimbó, ritmo paraense ecoado pelos Mestres dessa sonoridade e pelas Sereias que, com pés bem humanos e saias rodadas multicoloridas, levantam a poeira que mistura, em meio às canções, a terra e o ar. Não à toa, o carimbó é patrimônio cultural e artístico imaterial do estado do Pará, celebrado pela união desses contadores de histórias que juntos, mantêm viva a memória de um cortejo ancestral.

Não sou do time que acredita que Literatura é a arte da escrita. Acredito que é a arte da Palavra, e do contar de histórias que, organizadas em sentenças e proclamadas com o coração, se transformam em um outro tipo de experiência.
Ou, como senti ali, em encantaria.
Trata-se de uma festa, a primeira forma de ritual, em que o carimbó dá o ritmo ao passar das horas. Enquanto escrevo isso, percebo que nenhuma frase posta aqui faz jus ao momento, pois é uma daquelas situações em que o tempo e razão não pautam uma linguagem coerente, porque não é um momento para coerência.
É uma linguagem do corpo, uma experiência para se viver no momento presente, não para ser resgatada em crônica diretamente do passado. Eu tento, mas com a certeza de que vou falhar.
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O carimbó transforma o corpo em água, num gingado quase instintivo que a prática com certeza refina em técnica. Mas a Quinta do Mestre não é sobre técnica, é um convite aos presentes partilharem do que aquela terra oferece. Não uso “oferecer” como uma espécie de produto, mas como um momento de contato com uma percussão terrosa, uma sonoridade aérea, e canções que fazem arder o coração.
Todos ali dançam, todos ali suam, e por um breve momento, o fim do mundo parece um conto distante.
É uma história de corpo e música, que, por meio de canções tradicionais de Carimbó, reencenam o encontro dos Mestres da música com suas Sereias, encarnadas em cada pessoa com coragem o bastante para vestir uma das saias multicoloridas e descalçar os pés.
O compasso dos passos cria sua própria música, não juntando o sagrado e o profano em um único momento, o que seria cristão demais. O que temos ali é a prova de que o profano é o próprio sagrado, reprimido por tanto tempo que esquece que é também um parágrafo de uma história maior, uma que todos ali se juntam para contar.
As Sereias dançam, como se recém-saídas da própria água, e o instrumento dos Mestres convocam os Botos, que com elas desenham círculos no ar. Quem é Boto e quem é gente?
A resposta é bem simples: não importa.

Ali, uma história não é só contada, mas é vivida no encontro da canção com a dança, da narrativa com a noite. À beira do encontro do rio Tapajós com o lago Verde, tudo se encontra, tudo se perde. Tudo se acha.
Eis o que para mim configura um mistério sagrado: ele não é feito para ser racionalizado, e escrever é também botar ordem.
Não é meu desejo ordenar nada, pois no início dos tempos, tudo era uma coisa só. Carne da mesma carne, água da mesma água, uma palavra contida em outra, pois eram a mesma.
Como nenhuma cerimônia dispensa de benção, um banho de cheiro é aspergido entre os presentes, selando o encontro com a terra enquanto a atmosfera é temperada por aquilo que dedos tão cuidadosamente maceraram. É o cheiro da terra, e, depois, é de todos os que tomaram parte na festa sagrada.
Conforme a noite morre e a lua se resguarda na água, o encanto perdura, esperando a próxima quinta-feira para ser reencenado.
Passeando pela orla, vendo as efígies de muiraquitã que se estendem de uma ponta a outra, me perguntei se não é esse ritual que sustenta os pilares do lugar, que mantém as forças da razão e do tempo tão distantes, que mantém a encantaria viva.
Alter é uma terra indígena, e a Quinta do Mestre é uma celebração que nos lembra o quão desnecessária é a religião (provavelmente do latim, religar) se nunca nos separarmos da terra.
Ali, toda quinta-feira é recontada uma história sagrada. Mal posso esperar para ouvi-la de novo.
Sobre o autor
Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista
