O obituário que eu não queria escrever 

Um texto absurdo foi o meu primeiro contato com um dos maiores nomes da literatura no Amazonas, graças ao qual escrevi meu primeiro artigo científico.

Foto: Divulgação/SEC AM

Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com

Em 2014, eu ainda buscava me achar no curso de Letras – Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas.

Já era um escritor de Fantasia na época, e me decepcionava bastante com o fato de não encontrar nada parecido com Tolkien ou Gaiman ao longo das disciplinas, até que, na matéria de Literatura Amazonense, conheci um conceito diferente, o insólito, que basicamente se trata da estranheza, elemento nativo do reino da Fantasia, mas ocorrendo em situações do cotidiano.

Foi quando li “A Caligrafia de Deus” (1994), um dos contos de um tal de Márcio Souza, que falava sobre o fuzilamento de um golpista vindo de uma comunidade do interior e de uma mulher indígena que decidiu trocar todos os dentes da boca por porcelana e que, de alguma forma, se relacionava com os primórdios do bairro Japiim, em Manaus, e com uma crítica severa ao modelo adotado pela Zona Franca de Manaus. Esse texto absurdo foi o meu primeiro contato com um dos maiores nomes da literatura no Amazonas, graças ao qual escrevi meu primeiro artigo científico e pude participar do meu primeiro evento acadêmico fora do estado.

Mas não seria, claro, meu último contato com Márcio Souza, que alcançou fama nacional com a adaptação de suas obras pela Rede Global, e mesmo internacional, com sua obra traduzida ao redor do mundo.

Então diretor da Biblioteca Pública do Estado, cargo que exerceu até seu falecimento, Márcio aceitou o convite que nós, autores do Coletivo Visagem, fizemos a ele para abrir a programação da II Feira Literária do Amazonas (FLAMA) em 2023, na qual compartilhou parte de sua extensa trajetória literária com a propriedade de quem viu um segmento artístico se formar e participou ativamente de sua progressão.

Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

Ouvir Souza falando sobre sua experiência enquanto escritor foi uma verdadeira aula de história compartilhada por todos que estiveram na abertura da FLAMA, como ouvir um gigante falando sobre o início dos tempos, quando a própria estrada para os escritores da região estava ainda a ser pavimentada.

Em sua obra, vemos a construção do estado do Amazonas e da história moderna do Norte do país, seja no épico histórico “Galvez – Imperador do Acre” (1976) – talvez sua obra mais famosa – quanto na ficcionalização da construção da estrada Madeira-Mamoré em “Mad Maria” (1980). Jornalista que era, procurou relatar em seus romances a interseção entre fato e ficção, incorporando a história do estado a uma produção literária potente, imortal.

Nesse sentido, qualquer escritor amazonense deve uma moeda de prata ao túmulo de Márcio Souza por ter mantido abertas as portas destrancadas pelo Clube da Madrugada, pela qual hoje também procuramos passar à História. E não apenas os profissionais da Literatura, mas também os do teatro, que até hoje reencenam peças dramatúrgicas como “O sapo Tarô-Bequê” e a ousada “A Paixão de Ajuricaba”, obra escrita por Souza que celebra um dos maiores exemplos da resistência indígena contra a colonização portuguesa.

Era engraçado conversar com o autor, pois os assuntos mais banais se tornavam um passeio em suas memórias, e inevitável observar como muitas delas se confundiam com o próprio percurso da literatura no Amazonas, relato de quem não estava apenas presente enquanto essa história era escrita, mas escreveu uns parágrafos também, deixando uma contribuição inestimável a quem um dia pretende pegar caneta e papel e se aventurar a narrar o que quer que seja.

Foto: Jan Santos/Acervo pessoal

Seu legado é um desafio para os próximos escritores, afinal, não nos enxergamos parte da história até que o passado se consolide como tal e vejamos nosso papel em sua construção. Será que Márcio se via dessa forma? Será que percebia seu papel enquanto um dos agentes da literatura em um dos estados onde tal arte ainda luta para ser reconhecida? Será que sabia o quanto lamentaríamos sua partida no dia 12 de agosto de 2024, data que entrou para a história local tanto quanto os textos que deixou para a posteridade?

Como todo artista, imagino que ele via a morte não como o ponto final, mas como a culminância de seu trabalho, o momento pelo qual atravessou as portas da História e entrou à companhia de tantos outros, pois é no momento da morte que podemos, verdadeiramente, testar o potencial que o trabalho tem de derrotá-la.

É de fato um desafio trilhar as pegadas gigantes de um nome como Márcio Souza, mas também é a melhor forma de manter esse legado vivo, desafio assumido por qualquer romancista, contista, poeta ou dramaturgista que ouse escrever no Amazonas, pois nossos textos são velas no memorial de tamanho artista.

Que as Musas do rio Negro o inspirem em seu descanso eterno.

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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