A sustentabilidade é um mito

Não é incomum constatarmos desastres climáticos nos últimos anos e pressionados pela crescente ameaça de um colapso ambiental, nos vemos diante de uma encruzilhada...

Por Jan Santos – jan.fne@gmail.com

Falar sobre crise climática é algo extremamente inquietante, ainda que necessário. A perspectiva de que o mundo caminha inevitavelmente para o fim é massificada pelos meios de comunicação, inclusive pelas mídias que constituem nosso entretenimento. Não é incomum constatarmos desastres climáticos nos últimos anos, talvez o tornado no Paraná sendo o exemplo mais recente, e pressionados pela crescente ameaça de um colapso ambiental, nos vemos diante de uma encruzilhada: ou olhamos diretamente para o abismo, a opção mais aflitiva… ou viramos o rosto.

Virar o rosto é a medida universal para nos livrarmos de tudo que é desconfortável. É a forma de nos eximir de responsabilidade, afinal, não podemos nos preocupar com algo que não conhecemos.

Há forças neste mundo que se beneficiam imensamente da nossa escolha de virarmos o rosto, pois é no ponto cego que está o que realmente importa. O advento das redes sociais, nesse contexto, não foi um fenômeno orgânico, impulsionado pelo fluxo natural da vontade do ser humano de virar rosto: é uma estratégia para que tenhamos o espaço perfeito para esquecer do mundo real, mesmo que, engajados em debates de cunho social, sejamos levados a acreditar que fazemos parte de algo maior que nós mesmos, e tudo isso do conforto de casa.

O metaverso se tornou a força que pauta nossas ações, ao passo que nos afasta do chão que pisamos, do ar que respiramos, da paisagem sobre a qual descansamos nossa visão. Não se trata de uma planície virtual onde as pessoas compram lotes imaginários, mas de uma maneira de ocuparmos o mundo sem dele nos ocuparmos. Fomos absorvidos pela realidade virtual, de modo que nem virar o rosto se torna necessário, basta baixá-lo para a tela imediata.

Eis o cenário perfeito para que a exploração que nos acomete nos tempos modernos se perpetue: somos Neo na Matrix, alheios à mecânica do universo que absorve nossa vitalidade em prol de um status quo tão acima de nós que mal vemos que o sustentamos. Naturalmente, um sistema tão consolidado precisa de recursos, e aí que entra o desastre climático, pois nem a natureza escapa desse parasitismo.

Leia também: Quinta do Mestre e o ato sagrado de contar histórias

Ilustração de @desenhantonio._

Qualquer um que já tenha se disposto a encarar o abismo já esbarrou em uma leitura fundamental: Ideias para adiar o fim do mundo (2019), de Ailton Krenak, um nome de peso no que diz respeito às filosofias indígenas. Qualquer um que queira explorar possibilidades de atravessar esse abismo já esbarrou com o discurso que ele fez durante A Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, antes da redemocratização do país. Qualquer um que supere o desconforto e passe a entender verdades difíceis já se deparou com a entrevista em que ele afirma que indígenas e não-indígenas estão em guerra, e nunca pararam.

Em Ideias, Krenak aponta que a sustentabilidade é um mito, e a COP30, a Conferência entre as Partes realizada pela Organização das Nações Unidas para discutir a soluções para a crise climática, que acontece em Belém no momento em que redijo este texto, é a prova viva disso.

🌱💻 Saiba mais sobre a COP30 aqui

A sustentabilidade é uma mentalidade que procura conciliar as necessidades de consumo do mundo capitalista com a ilusão de que a natureza é capaz de supri-las. Acontece que consumimos demais, mais do que a natureza é capaz de suprir, e a parte engraçada é que nem é uma necessidade, é uma busca constante por luxo:

Estar com aquela turma me fez refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Fomos, durante muito tempo, embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso — enquanto seu lobo não vem —, fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza.

O texto de Krenak é absurdamente popular, mas me assusta sentir que ele mal é lido. Digo isso porque não há brechas para interpretações dúbias no texto do filósofo: não se pode sonhar com um futuro possível enquanto tudo o que pensarmos for consumo. O lucro não tem lugar em um mundo que respeita o tempo, e Krenak não é metafórico ao dizer que nosso distanciamento da natureza é o principal responsável pelo fim do mundo, uma vez que passamos a nos separar dela para enxergá-la exclusivamente como recurso.

Krenak em seu discurso histórico durante a Assembleia Constituinte em 1987

A ideia de sustentabilidade parte desse princípio de que a natureza é um recurso a ser usado, mesmo que de forma “consciente”. Eis a questão: não somos superiores à natureza, não somos seres abençoados com o direito divino de explorá-la, a terra não é nossa herança. Quando nosso consumo é posto como prioridade, o tempo da terra, o nosso tempo, não é respeitado. Somos vítimas dessa fome que não enche barriga, por isso somos, com ela, consumidos.

Na ânsia por consumo, somos também devorados pelo mesmo sistema que come árvores, bebe rios e envenena o solo. Me arrisco a dizer que nenhum leitor deste texto se sente descansado, com a vida em ordem, despreocupado com a semana que vem, pois não vivemos mais o tempo. Nossa concepção de tempo está quebrada, sem estrutura, pois as telas não permitem mais o fim do expediente nem o foco no presente.

Falar de sustentabilidade é falar sobre a melhor forma de consumirmos sem que o solo ceda sob nossos pés, ou como afirma Davi Kopenawa, sem que o céu caia. O problema é que o solo está cedendo, o problema é que o céu já está caindo. Também nas palavras de Kopenawa, para salvarmos o planeta, o branco tem que nascer de novo.

Tendo a não ser muito otimista com relação aos resultados da COP, e mesmo Krenak, em entrevistas recentes, não parece estar. Afinal, não discutimos sobre a água consumida pelo agronegócio ou para resfriar os servidores de IA, um verdadeiro assassinato de rios e riachos. A permissão para a perfuração de poços de petróleo na Foz do Amazonas ainda está em vigor, não falamos sobre reforma agrária e a demarcação de terras indígenas, obrigação do Governo Federal desde que a constituição foi promulgada em 1988, não acontece sem que os próprios indígenas se coloquem na linha de frente, como foi o caso da manifestação majoritariamente Munduruku dos últimos dias.

As pautas que importam realmente não assumem a centralidade da discussão, e o sentimento é que a COP não deixe um legado significativo. O aspecto festivo da conferência é, mais uma vez, um ardil para termos o que olhar quando o rosto for virado, e as imagens de fim do mundo continuam pregadas como um apocalipse bíblico inescapável.  

A literatura de Krenak, no entanto, vê no uso consciente de imagens (não as que atordoam os sentidos humanos e roubam nossa esperança de um amanhã possível) uma estratégia para o combate à crise climática:

O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos.

[…]

Para algumas pessoas, a ideia de sonhar é abdicar da realidade, é renunciar ao sentido prático da vida. Porém, também podemos encontrar quem não veria sentido na vida se não fosse informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a inspiração e mesmo a resolução de questões práticas que não consegue discernir, cujas escolhas não consegue fazer fora do sonho, mas que ali estão abertas como possibilidades. Fiquei muito apaziguado comigo mesmo hoje à tarde, quando mais de uma colega das que falaram aqui trouxeram a referência a essa instituição do sonho não como uma experiência onírica, mas como uma disciplina relacionada à formação, à cosmovisão, à tradição de diferentes povos que têm no sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida, e a aplicação desse conhecimento na sua interação com o mundo e com as outras pessoas.

Gosto de pensar que nossa esperança está no sonho, em nossa capacidade de produzir imagens. As telas são confortáveis porque nos tiram a necessidade de fazê-lo, mas recuperar a autonomia sobre nossa própria mente talvez seja de fato a melhor ideia para adiar o fim do mundo. Sonhar é tornar o impossível, possível, e transformá-lo em ideia. Ideias levam a ações, e ações salvam o mundo.

📲 Confira o canal do Portal Amazônia no WhatsApp

Acredito que, posto dessa forma, temos uma metodologia indígena para adiar o fim do mundo, mas temos exemplos mais do que suficientes que atestam o desinteresse governamental em fazê-lo. Acontece que problemas enchem bolsos, soluções os esvaziam.

A literatura indígena é um verdadeiro atlas de tecnologias para salvar o mundo, mas como não são convenientes para os sistemas instaurados, não são interessantes para quem só pensa em lucro. Me agrada muito a fala da ministra Marina Silva sobre substituirmos a ideia de “desenvolvimento” por “envolvimento”, para que renovemos nosso pacto com a mãe-terra, mas enquanto os povos indígenas não liderarem a conversa sobre o clima e as empresas aprenderem seu papel secundário no debate, enquanto as enevas, alcoas e vales ainda tiverem seus lugares à mesa, essa ecologia realmente não passará de jardinagem.

Imagem: Reprodução

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Comissão de Direitos Humanos aprova criação da Política Nacional de Segurança dos Povos Indígenas

A proposta reafirma competências de vários órgãos de Estado relacionadas ao combate à violência contra os povos indígenas.

Leia também

Publicidade