O adeus a Patrícia Civelli, uma guardiã da memória de Rondon

Patrícia Civelli era produtora cultural e herdeira de um vasto legado histórico da família pioneira do cinema brasileiro

Patrícia Civelli, uma guardiã da memória de Rondon. Foto: Reprodução

Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com

Na tarde deste sábado, 12, o Rio de Janeiro despediu-se de uma de suas figuras mais dedicadas à preservação da história do cinema nacional: Patrícia Civelli, produtora cultural, curadora e incansável articuladora. Após uma internação de cerca de uma semana, vítima de um mal súbito, Patrícia ficou inconsciente e foi parar na UTI. Ela partiu discretamente — como quem deixa a cena não sem antes garantir – como nos velhos tempos – que os rolos de filme estejam rebobinados e prontos para a próxima exibição.

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Patrícia Civelli era diretora da empresa Memória Civelli, responsável por projetos que extrapolavam o fazer cinematográfico. Um deles, o documentário O Rio da Dúvida, dirigido por Joel Pizzini, foi rodado entre 2017 e 2018 em Rondônia e é testemunho da inquietude criativa que Patrícia cultivava. Outra obra que ela ajudou a desenvolveu e que tem impacto duradouro, é o Memorial Rondon, espaço inaugurado em 2015 em Porto Velho, onde mais de 400 peças expostas narram a expansão telegráfica e a ocupação amazônica sob a tutela do militar Cândido Mariano da Silva Rondon.

Patrícia Civelli
O casal Mário César e Patrícia Civelli. Foto: Reprodução

Legado em movimento

Viúva há dois anos e dois meses do roteirista Mário César Cabral, com quem dividiu sonhos e realizações ao longo de décadas, Patrícia Civelli era mais que uma herdeira: era uma continuadora. Filha do cineasta ítalo-brasileiro Mario Civelli (1923–1993), detentor dos direitos sobre as imagens de Rondon cedidos pelo próprio marechal, Patrícia preservou e ampliou esse acervo com paixão arqueológica e olhar cinematográfico.

Não se contentou com os vestígios herdados. Prosseguiu pesquisando em arquivos e aproximou-se dos familiares de Rondon, colecionou documentos, fotografias, obras de arte e registros que formam hoje uma das coleções mais valiosas sobre a história brasileira longe das capitais — um Brasil de florestas, estradas remotas e traços indígenas.

Cinemas nas veias

Patrícia viveu num lar onde o cinema não era apenas arte: era destino. Além do pai cineasta, a mãe Pola Vartuk (1927–1990) foi uma crítica respeitada, com passagem por veículos como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Uma tia paterna, Carla Civelli (1921–1977), foi atriz, diretora e cinegrafista, mulher múltipla em uma época de poucas possibilidades para tantas facetas.

Do acervo de mais de 30 filmes do pai – 17 deles são brasileiros, produzidos entre 1948 e 1968 – , Patrícia assegurou recursos de patrocínio institucional e apoio privado, numa luta contra o esquecimento e a decomposição das velhas películas. Para ela, restaurar os longas-metragens era quase um ato político — devolver ao país a memória filmada de quem o construiu com esforço e coragem.

A despedida

Com a morte de Patrícia Civelli, encerra-se um capítulo singular da interseção entre memória histórica e linguagem cinematográfica. Produtora cultural e articuladora incansável, ela foi uma figura de convergência — entre o rigor técnico e a sensibilidade afetiva, entre os arquivos empoeirados e os olhares contemporâneos.

Patrícia Civelli morreu no Rio de Janeiro. Foto: Reprodução

Sua atuação transcendeu o universo do audiovisual. Com uma rede extensa de colaboradores, envolveu dezenas de profissionais em empreitadas que iam do resgate de filmes à reconstituição de ambientes históricos por meio de maquetes, cenografia e curadoria documental. Com seu marido e equipe, ela reuniu, restaurou e revitalizou fotografias, manuscritos, mapas e registros que, sem sua intervenção, teriam sido tragados pelo esquecimento.

Patrícia não apenas preservou: interpretou e reconectou o passado à contemporaneidade. Seu legado material — filmes recuperados, arquivos organizados, projetos museológicos, exposições, palestras e conferências — é precioso. Mas é sua metodologia generosa, seu olhar profundo e sua capacidade de mobilizar memórias coletivas que se tornam ainda mais urgentes em tempos de desmemória institucional.

Deixa saudade e reverência. Mas deixa, principalmente, caminhos abertos — pistas concretas para que outros sigam o fio da memória. Afinal, como ela dizia com convicção, “memória não é o que passou; é o que insiste em continuar.”

Sobre o autor

Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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