O que nos ensina o “tour” de Mário de Andrade e Madame Penteado em Rondônia

Escritor modernista escreveu o primeiro livro sobre turismo e retratou sua aventura na Amazônia

Mário de Andrade (1893/1945), artista pleno, gestor e pesquisar da cultura nacional, sobretudo a do Brasil profundo. Admiro-o pelo que produziu como intelectual, pelo seu olhar de vanguarda e, também, pela sua personalidade “fora da casinha”. De quebra, a determinação que empreendeu para que os governos se comprometessem com a arte (utopia?): nos anos 1930, criou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo.

Poeta em tempo permanente, Mário de Andrade beirava a excentricidade por suas ideias inovadoras e, às vezes, transgressoras marcadas pelo caráter espirituoso e aventureiro. Assim, a vida o conduziu a mentor da Semana de Arte Moderna de 22. Ressignificação das artes ocorrida entre 13 e 18 de fevereiro no Theatro Municipal de São Paulo, no ano do centenário da Independência do Brasil que pedia uma nova estética para o país da aristocracia fundiária.

Andrade veio a Rondônia, em 1927. À época, a área do atual estado nortista não existia, na verdade. Suas terras estavam compreendidas entre Mato Grosso e Amazonas [o território do Guaporé, origem de RO, só foi criado em 1943]. Chegou a Porto Velho, cidade no sul do Amazonas, em 5 de julho de 27 e anotou sobre o exato momento em que ouviu, emocionado, o apito vindo da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM):

Andrade e a samaúma em Santo Antônio, município anexado a Porto Velho em 1945 – Foto: Reprodução

“Na recepção, quando ainda estava atracando, eis que de repente escutei um apito de trem, que saudade! Meu coração ficou pequenininho. Também faz mais de dois meses que não escuto esse tenor sublime”.

Mário sendo Mário, um tanto “bipolar” às vezes. Em Guajará-Mirim [fronteira do Brasil com a Bolívia], então no Mato Grosso, fez questão de demonstrar antipatia para que logo o deixassem descansar. Recusou presentes, não quis dormir em casa particular e passou a noite em um vagão de trem. Disse que — pasme — tomou banho com cachaça. Na manhã seguinte, 13 de julho de 1927, aceitou um banho extra na casa do engenheiro da EFMM e lá dormiu “feito pedra”. E seguiu fazendo fotos e anotando tudo — inclusive que o chefe da alfândega na fronteira Brasil-Bolívia “era um contrabandista”.

Veem-se pelos seus assentamentos o sarcasmo e a impessoalidade com que tratava “autoridades” que o abordavam nas longas viagens, com rapapés desnecessários que ele dispensava. Preferiu ficar atento às conversas e comportamentos dos caboclos a bordo do trem percorrendo 366 km de Guajará-Mirim a Porto Velho [“um bem-estar geral que se resolve em cantoria”], além das milhares de distâncias em barcos a vapor pelos rios da região.

Também discorreu com alegria sobre o carro de aluguel que tomou para trafegar a primeira rodovia interestadual que aqui houve, a Mato Grosso-Amazonas; uma estrada que não passava de 7 km de poeira ligando Porto Velho-AM a Santo Antônio do Rio Madeira-MT, numa viagem de 20 minutos “com cheiro antigo de capim-gordura”. Hoje, essa antiga rodovia compõe-se da avenida Rogério Weber e da Estrada de Santo Antônio. 

Foi o escritor observando o prosaico n’onde morava a magia aos olhos do bardo pesquisador: as moradias às margens da ferrovia, as quadrinhas declamadas e as cantigas de domínio público durante a viagem de trem. Ah, e as gírias! Chamou-lhe especial atenção “catega” [vem de categoria] que definia quem detinha o poder econômico na região; o rico era “o catega”.

Depois de uma série de visitas e passeios, provando da comida, da bebida, dos usos e costumes, dos sons e dos vícios, das inquietudes que apoquentam a alma… Mário de Andrade deixou Porto Velho dia 16 de julho. Só aportou em São Paulo dia 15 de agosto. Uma viagem longa e que “mexeu” profundamente com o ‘animus’ do autor. Para sempre.

Legendas: A carta de Mário de Andrade ao poeta imortal Álvaro Moreyra – Fotos: Ito Walter

Marco turístico 

Fui dos primeiros, em Rondônia, a referir-me à sua obra “O turista aprendiz” — pioneiro livro do gênero no Brasil, de 1927, fruto da experiência de Andrade na Amazônia, incluindo a atual Rondônia, dentre outros estados vizinhos, até o Peru. E passei a citá-lo em guias e materiais promocionais no segmento turístico. Logo, a história ganhou corpo e o interesse de tantos — felizmente!

É fato a repercussão entre abnegados e acadêmicos da redescoberta de Mário de Andrade em solo rondoniense. Entretanto, perdura a apatia de outros tantos que dão de ombros para o significado antropológico das anotações e imagens feitas pelo mestre sobre a vida nestas paragens do poente, tão loucas quanto foram os “loucos anos 20” [fenômeno mundial].

No livro, Mário apresenta, também, fotografias de sua autoria — feitas numa Codaque [forma aportuguesada como ele escrevia Kodak] de caixote, mostrando o modo de vida na região ribeirinha e ferroviária que o paulistano percorreu de vapor e de maria-fumaça em companhia de Madame Penteado.

Ela, a mecenas Olivia Guedes Penteado (1862/1934), foi quem trouxe para o Brasil, pela primeira vez, obras do pintor espanhol Pablo Picasso (1881/1973) e foi grande amiga e patrocinadora de expoentes das artes no período. Aliás, o túmulo de Penteado, no Cemitério da Consolação, ostenta uma escultura de autoria do ítalo-brasileiro Victor Brecheret (1894/1955) — também ícone modernista incentivado pela madame da elite cafeeira paulista, “rainha enfarada e decerto meio maluca”, segundo a definição feita por Andrade.

Em tempo: a ideia da excursão a Rondônia foi da inquieta amiga do escritor, conforme ele relata em carta dirigida a Manuel Bandeira (1886/1968): “Dona Olivia fazia tempo que vinha planejando uma viagem pelo Amazonas adentro (…). Resolvi ceder mandando à merda essa vida de merda”.

Andrade e Olivia Penteado estiveram acompanhados por uma sobrinha dela, Margarida Guedes Nogueira (1908/1982) e pela filha única da pintora Tarsila do Amaral (1886/1963), Dulce do Amaral Pinto (1906/1966). Foi uma ousadia a viagem de um solteirão junto de três damas da alta sociedade brasileira aos confins da Selva. Não raro, o escritor já consagrado no Sudeste teve que explicar aos caboclos: “Não , não sou secretário da Madame Penteado”. Era, de fato, uma mulher que se impunha pela personalidade e apreço pela artes, além da fama de ser milionária e um tanto “doida” para os padrões machistas da época. Lutou bravamente pelo feminismo, inclusive financiando campanhas pelo direito da mulher votar e de ser votada.

Margarida, essa tinha então 19 anos de idade quando da jornada e torna-se-ia a primeira mulher a ocupar o cargo de Embaixadora do Brasil junto à Austrália e à Nova Zelândia. Passou pelas representações do Brasil em muitos países, sempre elevando a nossa cultura, assunto no qual acabou sendo referência. Inclusive, em 1954 fez parte da Comissão Organizadora da 3ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo.

Tudo está interligado. Rondônia está, também, intrincado nessa teia cultural da geopolítica. O modernista aclamado viu tudo que se passava no Vale do Madeira! E virou outro ser humano após sua saga amazonense ao escrever “Macunaíma”, sua obra-prima publicada em 1938, inspirada na vivência dessa viagem tropical.

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite”. 

A madame penteado em 4 de julho de 1927. No verso, Andrade brinca a lápis: “Nossa Senhora no Madeira” – Foto: Mário de Andrade/arquivo USP

Soft power 

Penso o turismo com olhar e foco na cultura, na preservação e na identidade. Por isso sempre batalhei pelos museus, memoriais, sítios arqueológicos e que tais que abarquem todas as áreas da sociedade! Há memória em tudo!

Consegui através de edital de chamamento público restaurar o museu “Casa de Rondon”, em Vilhena, que o governo ousou inaugurar mas não deu destino de imediato, por falta de planejamento e visão cabal da importância da memória. E foi empregado mais de meio milhão de reais na obra que está precisando, já, de reforma. Casa vazia vira morada de pombos e morcegos.

Tentei, inclusive, emplacar junto ao Governo do Estado o Museu de Gente — consistia em um espaço virtual com depoimentos de pessoas de todos os setores. Foi lançado o projeto e gravadas centenas de entrevistas pelo digna educadora Maria Nazaré Silva, além de incluir a função do diretor do mesmo no organograma do próprio governo.

Os governos mudam, e o que é essencial é deletado na visão pequena de administrador da fez que precisa, urgente, ser superada e substituída para a visão de Estadista, e que a última prevaleça. Nenhum atrativo é maior do que o conceito que passa pelo reconhecimento da diversidade e das histórias das pessoas, que ressignificam um lugar comum no universo. Mário de Andrade sabia disso!

O que mais se consome no mundo são histórias que viram poesia e prosa, que viram contemplações, viram aventuras, que viram o querer inserir-se = interatividade. Vide Hollywood! É puro jeito de os EUA verem o mundo e o influenciarem em tudo: da gastronomia a moda, passando por todos os segmentos da cultura. É o tal ‘soft power’. Todo o resto tem que ser consequência. Sem referência, sem história, sem informação sobre o meio, ninguém é nada porque não há receptivo turístico baseado no “não sei”. É preciso entender e colocar lupa na história, nas artes, na cultura para agregar valor ao tangível, que é, por si — sozinho e isolado — algo ordinário, vazio e sem alma. 

O manuscrito de “O turista aprendiz” – Foto: Ito Walter

Falta atenção 

Uma medida simples que tomei, além do trabalho promocional: instalei uma placa de sinalização na Vila de Santo Antônio próximo ao Memorial Rondon — que, aliás, eu ajudei a fundar [com recursos de compensação ambiental] e o batizei com este nome em Porto Velho — para informar o público que ali estivera Mário de Andrade, o segundo escritor mais aclamado da História do Brasil, atrás apenas de Machado de Assis.

Merece Mário de Andrade uma estátua ou uma escultura com a estética de sua psique artística — modernista e ousada! — que o retrate nas barrancas do Rio Madeira ou “comendo léguas” como ele aludiu ao ato de “colocar a cara na estrada” — a arte de viajar, que é “criar passado outra vez”. Não existem visões mais poéticas e ricas sobre o turismo em Rondônia — e quiçá do Brasil — do que aquelas enunciadas pelo erudito visitante!

Todos precisam saber da sua presença entre nós. Incluindo, é lógico, as crianças escolares que ele tanto prezava a ponto de ter dado o ar da sua graça na escola Barão de Solimões, que ainda existe em Porto Velho, em detrimento de cerimônias com elogios jocosos que recusou a ridículas autoridades sem-futuro, que ele fez questão de não citar.

Em 2022 tive a honra de conhecer o livro original “O turista aprendiz”, manuscrito, com fotos e ilustrações de Mário de Andrade. Fez parte de uma exposição, em São Paulo, homenageando o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922.

E Rondônia o que fez, oficialmente, para lembrar a presença dele por aqui havia exatos 95 anos, em 2022? Respondo: NADA!

Será que, ao menos, eles têm cuidado da placa de sinalização — ou instalado outra, mais bonita — falando que Andrade pisou este chão?

Será que está preservado o Memorial de Santo Antônio fincada há seis anos — na extinta cidade onde Mário de Andrade pisou e posou para foto — anexo ao Memorial Rondon? Custei, do bolso, tudo que existe no espaço específico, uma sala ligada à exposição permanente “Rondon, Marechal da Paz”.

Se depender do administrador do Memorial Rondon [e do Memorial de Santo Antônio], Sargento Antero Ribeiro, sim, tudo está bem. Porque ele é competente e responsável. Mas tem ação que advém de vontade — e conhecimento — política! Não basta promover o que existe; é preciso dar manutenção, criar, aparelhar, ampliar a infraestrutra… e com qualidade! E ser inventivo na arte de contar e perpetuar histórias! 

No arquivo da USP

Para o mesmo livro “O turista aprendiz”, o modernista produziu cerca de 500 fotografias consideradas experimentais, hoje parte do acervo da USP. Mostram riquezas que só ele poderia ver naquele mundo; bruto, sim, mas também cheio de poesia, vocabulário e cantoria peculiares que ele foi anotando em seu diário e nas legendas das fotos.

Muitas fotografias, ele passou a distribuir — enviadas por carta pelos Correios — para os jornais do Sudeste como forma de dar lume à misteriosa Amazônia que despertava tanta curiosidade. Era o afã de Andrade esparzir seu olhar, seus experimentos. Não hesitava em gastar seu dinheiro — parco! — e com algum apoio da madame Penteado de riso “tão contundente quanto intrigante”.

Ao jornalista e poeta Álvaro Moreyra (1888/1964) — membro da Academia Brasileira de Letras, gaúcho estabelecido no Rio de Janeiro — o amigo Mário de Andrade escreveu uma carta (veja imagem) oferecendo suas “fotos lindas” ao “Paratodos” [jornal editado por Álvaro]. Propôs a publicação de uma página chamada “O turista aprendiz”, que se converteu no título do livro. 

Homenagem 

Para completar a homenagem ao clássico [é, o modernista tornou-se um tradicional, no melhor sentido] autor, estive em sua residência preservada — graças a Deus — ainda hoje no bairro Barra Funda. Também fui ao seu jazigo no Cemitério da Consolação, na capital paulista — ou “Pauliceia Desvairada”, como ele chamava a cidade e intitulou assim seu livro cuja publicação também completou o primeiro centenário no ano passado.

O mais paulistano dentre todos os de seu tempo, Mário também pode ser considerado um rondoniense comedor de léguas. Sabia? 

Sobre o autor

Às ordens em minhas redes sociais e no e-mail: julioolivar@hotmail.com . Todas às segundas-feiras no ar na Rádio CBN Amazônia às 13h20.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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