Amizade com Nietzsche e a Madeira-Mamoré: o austríaco que chorava a própria morte

O excêntrico Julius Pinkas foi um dos engenheiros que lutaram para implantar a ferrovia na Selva Amazônica.

Julius Pinkas visitava o próprio túmulo. Foto: Reprodução/Acervo pessoal

Por Júlio Olivar – julioolivar@hotmail.com

A Guerra do Pacífico (1879–1883) deixou a Bolívia isolada, sem acesso ao Oceano Pacífico e com o desafio de redefinir suas rotas comerciais. Foi aí que os majestosos rios Madeira e Mamoré surgiram como a nova esperança de conexão ao Atlântico, e o Brasil viu uma oportunidade estratégica de estreitar laços com o vizinho. Assim, nascia o ousado e quase utópico projeto da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Em janeiro de 1883, uma comissão brasileira começou a traçar os primeiros planos para a ferrovia que prometia ligar Santo Antônio do Rio Madeira a Guajará-Mirim. Na linha de frente, o engenheiro Carlos Alberto Morsing, acompanhado pelo engenheiro austro-brasileiro Julius Pinkas Strauss, uma figura que, ao longo do tempo, provaria ser muito mais que um simples técnico: um excêntrico, um poeta e um espírito inquieto.

Cinco meses após assumir as operações, Morsing, debilitado pela saúde frágil, cedeu o comando a Pinkas. Este, por sua vez, trouxe uma visão única ao trabalho em Santo Antônio. Onde muitos viam um “inferno verde”, Pinkas enxergava uma natureza de beleza selvagem e avassaladora. Suas crônicas fogem ao modelo formal vigente e transportam o leitor para um cenário poético:

“Desapareça o navio que durante algumas horas empresta ruído e movimento a este porto de Santo Antônio o viajante achar-se-á no meio de uma natureza de aspecto mais selvagem que jamais sua fantasia pode ter desejado. Diante de si ruge a cachoeira, desprendendo faíscas de luz na corrida precipitada de suas águas revoltas, blocos de dimensões colossais, semeados pelos canais e nas margens das ilhas, rodeiam e limitam o seu horizonte. A floresta, tendo como guardas da sua originalidade as colossais sumaúmas, erguendo altaneiras suas cúpulas verdejantes, acima delas, como se vedando ao curioso os encantos e segredos, atrás do véu espesso que lhe forma a vegetação densa e impenetrável da margem”.

Mas nem poesia resistia às adversidades do lugar. Com sua saúde também comprometida, Pinkas foi forçado a retornar ao Rio de Janeiro, então capital do Império Brasileiro, em outubro de 1883. Ainda assim, sua paixão pela ferrovia e pela Amazônia o trouxe de volta em 1884, até que, em um golpe orçamentário, o projeto foi suspenso.

Foto: Reprodução/Acervo pessoal

A tentativa frustrada de domar a selva amazônica foi apenas uma das aventuras de Julius Pinkas. O engenheiro era um verdadeiro cidadão do mundo: atravessou o Atlântico inúmeras vezes, lutou pela consolidação da Prússia ao lado de um pálido soldado de artilharia de quem se tornou grande amigo. Seu nome: Friedrich Nietsche, um dos mais relevantes filósofos do mundo.

Nos anos 1900, estabeleceu-se no Chile, em Antofagasta, uma cidade portuária às margens do deserto de Atacama.

Em Antofagasta, a excentricidade de Pinkas alcançou novos patamares. Elegante até em ambientes de obra, limpava as mãos com lenços de seda e os deixava para os operários, que disputavam a peça suja como troféu. Fazia questão de ser recebido com um tapete de veludo vermelho ao sair de sua carruagem. Foi também ali que promoveu a estreia do pianista prodígio chileno Claudio Arrau León, abrindo as portas do palacete onde morava para o povo aplaudir o jovem talento das ruas.

Julius Pinkas, que construiu um jazigo para si mesmo e chorava saudades antecipadas da própria ausência, partiu deste mundo em 1927. Para um homem transbordando de vida, era inconcebível um futuro onde sua presença não iluminasse os dias. No Dia de Finados, ele passeava pelo cemitério como quem visitava um amigo querido, lamentando uma perda ainda não consumada. Sua última pergunta não apenas ecoa como um epitáfio imortal, mas também ressoa como um desafio ao próprio cosmos: ‘O que será do mundo sem mim?’

Sobre o autor

Júlio Olivar é jornalista e escritor, mora em Rondônia, tem livros publicados nos campos da biografia, história e poesia. É membro da Academia Rondoniense de Letras. Apaixonado pela Amazônia e pela memória nacional.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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