Câmeras registram onça-pintada, anta, jaguatirica, tatu e outros animais que vivem em uma área de reserva legal no campus Novo Paraíso do Instituto Federal de Roraima (IFRR).
Você já se perguntou como o maior tatu do mundo se arruma para descansar? Ou como um veado-mateiro anda na floresta sem fazer barulho? E como uma onça-pintada caça sua presas? Foram com essas perguntas que pesquisadores do projeto ‘Roraima Silvestre’ decidiram observar a fauna na floresta amazônica por meio de câmeras instaladas em árvores. O resultado é um conjunto de registros inéditos da vida animal.
Foi montado um verdadeiro “Big Brother” na floresta. Com menos de um ano de atividade, o trabalho coleciona registros raros — e curiosos — de imponentes animais da Amazônia, como a onça-pintada, parda, tatu, jaguatirica, anta e até uma irara de pelo branco.
O trabalho é desenvolvido por 15 pesquisadores, entre professores e alunos, do curso de agronomia, no campus Novo Paraíso do Instituto Federal de Roraima (IFRR), em Caracaraí, Sul do Estado. A ideia é registrar a rotina da fauna natural da região, estudar os hábitos e incentivar a preservação dos bichos entre a comunidade. Tudo isso, instigando a curiosidade em torno dos flagrantes do grupo.
Ao todo, são dez câmeras instaladas no perímetro de 520 hectares da reversa legal do IFRR – o equivalente a mais de 500 campos de futebol. O chefe de campo e monitoramento do projeto, Gabriel Oliveira, de 35 anos, explica que o ponto-chave é a preservação ambiental.
“Pessoal sempre pergunta para a gente: ‘vocês são do curso de agronomia e tão fazendo um estudo de preservação, vocês não deveriam estar estudando produção agrícola?’ Só que a gente tem que conscientizar as pessoas que produção tem que vir com a preservação. Você tem que preservar para você produzir”,
disse.
Como em uma edição do famoso reality show, os bichos são flagrados em situações habituais das espécies. Ao todo, 19 espécies de mamíferos, 20 de aves e 6 de répteis já foram catalogadas por meio dos registros inéditos nos campos de pesquisas. Entre as capturas, estão:
‘Vida pulsante na natureza’
O IFRR campus Novo Paraíso fica localizado na BR-174, próximo à vila de mesmo nome, distante 249 km da capital de Roraima, Boa Vista (cerca de 3h de carro). A instituição atende alunos do municípios do interior, como São Luiz, Caracaraí e Rorainópolis, e oferece cursos técnicos integrados ao ensino médio, além das graduações como o curso de agronomia, responsável pelo ‘Roraima Silvestre’.
O trabalho feito pelo grupo é fundamental e “urgente” para a região, afirma o diretor-geral substituto do campus, Eliakin Cunha. Além disso, a curiosidade em torno do Roraima Silvestre trouxe visibilidade para as pesquisas realizadas no Novo Paraíso. Nas redes sociais, eles já contam com mais de 7 mil seguidores.
“Além de chamar a atenção para as raridades encontradas, o projeto destaca a importância do campus para a região de Roraima. Há muitas comunidades de pequenos produtores e agricultores na área que visitamos, mostrando uma vida pulsante tanto na natureza silvestre quanto entre as pessoas que produzem alimentos e os estudantes que frequentam o campus. Então, além da importância do projeto, traz visibilidade para esse campus tão importante para o estado”,
disse.
Cada membro do grupo de pesquisa tem uma função: há quem edita e organiza os registros, quem faz a divulgação e cuida das redes sociais, outros que vão a campo instalar as câmeras nas árvores. O Grupo Rede Amazônica acompanhou um dia de trabalho das equipes dentro da floresta e pôde ver a rotina de mapeamento dos espaços onde os registros são feitos.
Big Brother Animal
O “Big Brother Animal” se concentra na área de reserva do IFRR e parte de uma fazenda na região. Lá, todo o perímetro é explorado pelos pesquisadores. As câmeras são instaladas durante longas trilhas que levam até 6 horas de caminhada. Floresta adentro, tudo é pensado e estudado para não sair do controle das câmeras.
Para delimitar a área, placas informativa foram instaladas nos limites da floresta. O aviso destaca que a área é monitorada pelo projeto e é proibido caçar ou derrubar árvores. A placa finaliza com aquele que é o principal lema do projeto: “respeite a vida silvestre”.
As trilhas para instalar as câmeras são feitas a cada 15 dias. Este espaço de tempo foi definido para que a presença humana não afugente ou interfira na vida animal, afinal, este não é o objetivo do projeto.
As pistas da vida animal
No dia em que a reportagem acompanhou o trabalho dos pesquisadores foram 6 horas de caminhada na floresta instalando novas câmeras. Ao longo do caminho, as pistas de que a vida animal na região vai bem eram observadas por meio das fezes de antas, pegadas de porcos e rastros de felinos.
Com ajuda de bússolas, os pesquisadores escolheram os melhores lugares para instalar novas as câmeras, e as que que já estavam instaladas há 15 dias foram recolhidas.
Como Roraima passa por um período de seca, o igarapé que corta a reserva estava seco e, por isso, foi possível seguir os rastros deixados por onde corria a água. Tudo de forma silenciosa, para não espantar os animais que podem aparecer no caminho.
Coordenador do grupo, o doutor em ciências pela Universidade de São Paulo, Rafael de Sousa, explica que o trabalho traça uma espécie de mapa ecológico, o que contribui para a promoção da educação ambiental e a preservação da biodiversidade.
Ele explicou que os locais de instalação das armadilhas fotográficas são sempre em lugares estratégicos: próximo de poças d’água e onde há registros da passagem de animais, como fezes e pegadas, tudo no estilo “vamos nos separar e procurar pistas”.
Para ele e a equipe, registrar felinos como a onça-pintada é uma das maiores satisfações. Isso porque a presença desses felinos indica que há presas grandes e a cadeia alimentar está conforme o ecossistema. “Tudo se interliga na natureza”, destaca.
“A biodiversidade tem se mostrado bastante favorável. Temos encontrado uma grande variedade de espécies, desde animais de topo de cadeia, como a onça-pintada, até animais herbívoros importantes para a manutenção da biodiversidade da floresta, como a anta e a paca. Com a coleta desses dados, especialmente das imagens, elaboramos relatórios de pesquisa e artigos científicos, além de artigos técnicos”.
“Um dos principais objetivos é a popularização da ciência e da biodiversidade, principalmente através dos registros divulgados nas redes sociais. Não só para fora [do estado] mas principalmente para a comunidade local, incentivando a preservação”,
disse o coordenador do projeto.
Fazer estes registros não é uma tarefa fácil. A equipe caminha cerca de 7 quilômetros na floresta fechada, fazendo trilhas, desviando de obstáculos, se protegendo do sol e dos mosquitos. Tudo isso para conseguir catalogar o maior número de espécies.
A professora de educação física Yunã Passos, uma das colaboradoras do projeto, explica que tudo começou com a curiosidade e a vontade de pesquisar dos professores que foi abraçada pelos alunos.
Yunã é encarregada de passar as imagens para o computador. Este trabalho é feito lá mesmo, no meio da floresta, onde ela carrega na mochila um notebook para observar as imagens coletadas.
“A gente tinha simplesmente a curiosidade. Fazia algumas expedições na natureza e via que tinha algumas fezes de animais, frutos roídos, algumas pegadas. Nós percebemos que tinha algum bicho ali e a gente tinha curiosidade de saber, ‘que animal passa ali naquela região?’. A gente começou a comprar as câmeras, fazer uso de equipamentos de visão noturna, os binóculos e até mesmo o próprio celular. Foi algo que foi crescendo”,
disse, com alegria, a professora.
As câmeras são resistentes à água e conseguem captar até durante à noite. No momento em que são coletadas, elas mostram quantas vezes foram disparadas ao longo dos dias em que ficaram escondidas, o horário, dia e até a fase da lua em que o registro foi feito. Elas não ficam ligadas todo o momento, só capturam imagens se um animal aparecer.
Três alunos do nono semestre de agronomia são os responsáveis por pôr a “mão na massa”. Gabriel Oliveira é chefe de campo, enquanto Randeson Paiva, de 24 anos, e Arlan Pereira, de 22, rastreiam os lugares para instalação e os vestígios dos animais.
Randeson é filho de pequenos agricultores no município de Caracaraí. Acostumado com trilhas, tem habilidade em caminhar nas áreas de mata. Hoje, o aluno do IFRR utiliza essa habilidade em prol das pesquisas do “Roraima Silvestre”. Ele representa a história da maioria dos alunos do campus.
“Tem bastante desafios né. A gente tá usando perneiras por conta de cobras. A própria onça, que a gente tem que tomar um pouco de cuidado, para não ser atacado mas o sentimento é de gratidão. A gente sabe que é um projeto necessário aqui na nossa região por conta da caça predatória”.
“O sentimento é todo de gratidão por que a gente tá ensinando as pessoas, promovendo essa educação ambiental, e consequentemente preservando a biodiversidade que a gente tem aqui na nossa fauna”, disse o aluno.
Para se guiar dentro de uma área tão extensa de floresta, é necessário um GPS. Arlan fica responsável por acompanhar cada ponto. Foi ele que também ajudou na instalação de duas novas câmeras na região, em uma área ainda não explorada pelo projeto.
“Quando a gente vê uma grande ideia e vê que essa ideia está gerando resultados significativos e proporcionais, para nós, é algo gratificante. Muitas vezes a gente nem imaginaria tamanha repercussão, tamanha questão dos resultados que a gente vê na coleta de dados, é tudo muito bonito. Gosto muito de participar”, disse o responsável pela guia.
Roraima silvestre
O projeto foi idealizado em outubro de 2023, quando advogada Alexssandra Alves, que também é integrante da pesquisa, convidou Rafael de Sousa e os professores Polyanni Dallara e Yunã Lurie para conhecer a área de reserva legal do sítio dela, no Sul de Roraima. A região tem 80% de área conservada.
Durante as investigações territoriais, os pesquisadores encontraram uma grande variedade de aves, como a arara-canindé, arara-vermelha e diversos primatas na copa das árvores, como o Macaco-de-cheiro. Também perceberam a presença dos felinos e de outros animais, como a anta.
“Diante desse cenário, ficamos em êxtase com tamanha diversidade da fauna e flora daquela região e surgiu a ideia da criação do ‘Roraima Silvestre'”, afirmou Rafael. O trabalho foi vinculado aos programas de pesquisa do IFRR em 2023.
Atualmente, a base de pesquisa é constituída tanto pela área de reserva legal do sítio de Alexssandra, quanto pela área do campus Novo Paraíso do IFRR, também localizado em Caracaraí, ambas conectadas a corredores ecológicos, permitindo o fluxo de animais silvestres entre diferentes áreas.
O projeto é contínuo e deve seguir registrando imagens de animais. O grupo divulga as imagens captadas em uma página no Instagram.
*Por Caíque Rodrigues, Ailton Alves e Alessandro Leitão, do g1 Roraima e Rede Amazônica RR