Real e Benemérita Sociedade Portuguesa Beneficente do Amazonas: a crise com o Governo Provincial

*Por Abrahim Baze – literatura@amazonsat.com.br

Esta resolução justa, por todos os títulos de caráter irrevogável e não se sabe se premeditada contra pretensão manifesta, veio provocar séria crise entre a diretoria e o Presidente da Província, conforme se pode verificar de teor das Atas das sessões de 23 e 25 de agosto de 1888:

“O Senhor Presidente traz ao conhecimento de seus colegas o pedido que lhe fora feito pelo Exmo. Sr. Presidente da Província para ser cedido às cantoras Savio e Kalas o salão acabado de edificar para servir de enfermaria, a fim destas artistas darem ali os seus concertos: O Sr. Presidente declara mais que expusera a S. Exa. Sr. Presidente da Província não poder ser atendido, o que muito sentia por ter esta diretoria deliberado em sua reunião de 20 de junho não ceder mais o referido salão para atos de interesse particular, mas, tendo o Exmo., Sr. Presidente da Província insistido para ser atendido, pede o Sr. Presidente para que ele e os seus colegas da Diretoria deliberassem em sentido favorável a sua pretensão. O Sr. Presidente trazendo ao conhecimento de seus colegas essa ocorrência, pede para que se delibere sobre o caso. A Diretoria resolve manter a deliberação já citada, o que é comunicado a Sr. Exa. o Sr. Presidente da Província“.

Largo da Uruguaiana, 1873. Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Altiva decisão do colegiado que não temeu nem tremeu diante da pretensão da autoridade governamental que tentou forçar a Entidade a quebrar a disciplina para satisfazer a exibição de duas artistas, que criaram um problema de estado, por simples questão de capricho. Naturalmente que se fosse para outra finalidade puramente governamental a diretoria não vacilaria em abrir exceção que deixaria de ser exceção por assumir o caráter de interesse público e não particular – o caso do espetáculo das suas artistas oficialmente apadrinhadas – caráter vetado pela diretoria.

Mas a inconformação e reação do governo foram imediatas. Um ofício, intimidativo é enviado imediatamente à sociedade para que ela diante da ameaça acabasse cedendo o salão hospitalar para as artistas. Mas a altivez dos membros da diretoria se manifesta unanimamente com a convicção de que todos estavam no pleno uso dos seus direitos de propriedade, dos quais não abdicaram um só instante, conforme se pode inferir da Ata da sessão de 25 de agosto.

“Reunião extraordinária. Presidente B. A. de Oliveira Braga, às 15h , reunida a diretoria, o Sr. Presidente lê um ofício do Exmo. Sr. Presidente da Província em o qual intima esta sociedade a apresentar na secretaria do governo no prazo de 48 horas, o título definitivo do terreno que ocupa a sociedade a praça do General Osório, tendo esta diretoria a ciência de que S Exa. o Sr. Presidente da Província houvera interpretado como lhe conviera a confirmação da recusa do seu pedido que havia tomado o caráter de uma exigência autoritária, julgou esta diretoria e julgou bem que a intimação era um violento desforço sem qualificação. Deliberou pois esta diretoria dirigir-se a S. Exa. e nos termos mais respeitosos, orientando-se de que em oportunidade legal apresentaria os documentos que comprovariam a posse do referido terreno onde já tem esta sociedade edificado parte do prédio que há de servir de hospital, datando esta posse desde 1874, a qual tem sido mansa e pacificamente e sem contestação alguma”.

Embora no decorrer da sessão os participantes, sobretudo, o presidente se manifestassem com energia e certa revolta em torno do “ultimatum”, que foi considerado uma exigência autoritária e um violento desforço sem classificação, em sua resposta ao referido ultimatum foram superiormente morigerados e continentes em seu justificado descontentamento ante imposição tão arbitrária não responderem ao Presidente da Província nos seguintes termos:

Em 25 de agosto de 1888, o Exmo Sr. com respeito e acatamento devido a alta autoridade de que V. E. se acha investido nesta província cumpre a diretoria da Sociedade Portuguesa Beneficente o dever de acusar o recebimento do ofício de V. Exa de 24 do corrente em que se exige a apresentação na secretaria do governo e dentro do prazo de 48 horas do título definitivo de concessão do terreno que a Sociedade Portuguesa Beneficente ocupa à praça General Osório.

Avenida Sete de Setembro, esquina com avenida Eduardo Ribeiro. Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Em resposta, esta diretoria confirma mais uma vez o respeito e acatamento alegado, cientificando a V. Exa que dada a oportunidade legal esta apresentaria ao poder competente os seus documentos, em virtude das quais, mansa, pacificamente e sem contestação desde 1874 está de posse do referido terreno onde já tem edificado do prédio destinado ao hospital. Reiteramos a V. Exa os nossos protestos de nossa respeitosa consideração. Deus guarde a V. Exa.

Aí teremos a comprovação da intrepidez daquele pugilo de lusos que se não abastardou diante da “exigência autoritária”, permanecendo sereno e altivo, em face de ameaças que dentro do direito cultivo pelas sãs consciências jamais poderiam receber a mínima justificativa. A sã consciência governamental deve ter aflorado a tempo, pois a crise não ultrapassou os limites da troca de correspondência acalorada, embora a requisição governamental do prédio para hospital dos alienados tenha ocorrido cerca de 4 anos depois deste incidente. Verifica-se pelos Anais que o Presidente da Província, protagonista desse “entrevero” chamava-se Joaquim Cardoso de Andrade, Bacharel, 38° presidente.

Vencida a crise, naturalmente contornada por elementos de alta influência e bom-senso, esta Entidade continuou mantendo a sala destinada à enfermaria, reservada à finura hospitalar, sem no entanto, montá-la e fazê-la funcionar por motivos ou de ordem financeira ou de ordem técnica.

A Construção do Pavilhão Central do Hospital no Largo da Uruguaiana

Embora sem funcionamento, a enfermaria já construída, a meta do hospital completo jamais se afastou da mira dos dirigentes da sociedade, cujo, dinâmico presidente, em sessão de 17 de fevereiro de 1891 propôs para que a presente diretoria durante o seu mandato empregasse todos os esforços para se edificar o corpo central do edifício da sociedade, em construção por ser de grande utilidade, tanto para o desenvolvimento da sociedade, como pelos socorros que poderia prestar visto que a edificação daquela parte já o hospital poderia funcionar, por isso, propondo para que desde já se tratasse de arranjar meios pecuniários por meio de quermesses e subscrições.

Esta manifestação, que foi integralmente transcrita como valioso documento, é mais um comprovante do não funcionamento do hospital até 1891, na praça Uruguaiana, estrada Epaminondas, ou praça General Osório, como eram conhecidas as circunjacências do atual Colégio D. Bosco e avenida Epaminondas e a praça General Osório.

Foi resolvido chamar-se por 15 dias concorrentes para proceder-se à continuação das obras Central do hospital, ficando o Sr. tesoureiro autorizado de fazer as despesas conforme as contas que lhe forem apresentadas e visadas pelo Sr. Presidente.

Jornal A CARIDADE, Manaós, domingo, 17 de dezembro de 1893. Foto: Abrahim Baze/Acervo pessoal

Foram entregues em 15 de junho de 1891 as plantas e o orçamento para a edificação do corpo central do hospital, para se mandar edificar por meio de concorrentes, conforme foi resolvido em sessão anterior.

As atas não revelam o nome do engenheiro que elaborou as plantas do corpo central do hospital. Há apenas referências ao desenhista, Sando Pereira.

O Sr. Presidente propôs para que se desse uma gratificação ao desenhista Sando Pereira, pela confecção das plantas e orçamento para construção do corpo central do hospital e outros trabalhos que fez anteriormente. Foi resolvido que, em vista do Sr. Sando Pereira não querer fazer preço aos seus trabalhos e atendendo-se a precária circunstância do mesmo Sr. resolveu-se dar-lhe a gratificação de duzentos mil reis.

Não se explica o silêncio em torno do nome do engenheiro e com que autoridade um desenhista, gratificado, com duzentos mil reis, faz o orçamento de tão alta responsabilidade e que exige indubitável habitação técnica e profissional.

As obras, talvez por carência financeira, não foram logo acatadas, pois adiaram várias vezes a decisão da concorrência. As doações pelo Rio Madeira, Rio Negro, Rio Purus, sempre eram feitas em favor do hospital, figurando em atas o recolhimento dessas ofertas, algumas bem liberais, pois alcançavam mais da vultuosa soma, para a época, de um conto de reis, naturalmente por portugueses espalhados nos barrancos no interior do estado.

Sobre o autor

Abrahim Baze é jornalista, graduado em História, especialista em ensino à distância pelo Centro Universitário UniSEB Interativo COC em Ribeirão Preto (SP). Cursou Atualização em Introdução à Museologia e Museugrafia pela Escola Brasileira de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas e recebeu o título de Notório Saber em História, conferido pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA). É âncora dos programas Literatura em Foco e Documentos da Amazônia, no canal Amazon Sat, e colunista na CBN Amazônia. É membro da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), com 40 livros publicados, sendo três na Europa.

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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