Manoel Urbano da Encarnação: o explorador do Rio Purus

Manoel Urbano da Encarnação faleceu aos 92 anos de idade, no dia 12 de junho de 1897, na cidade de Manaus, vítima de varíola.

As expedições de homens destemidos, para a exploração de seringais da nossa região, deram-se por volta do ano 1861, chefiadas por Manoel Urbano da Encarnação e João Gabriel de Melo, próximo à foz do Rio Chanbuiaco, no alto Rio Purus, em território peruano. Enquanto Manoel Urbano da Encarnação explorou os seringais do Rio Purus, João Gabriel de Melo explorava os rios Acre e Iaco, além de seus afluentes.
Manoel Urbano da Encarnação. (Foto:Acervo Abrahim Baze)

Da jornada tomaram parte, no Rio Iaco, os cearenses Francisco Barbosa, Augusto Escócio e Benjamin Duarte Ponte Franco, no Rio Macauã, Custódio Miguel dos Anjos e José Procópio. Já no Rio Caaté, João da Costa Gadelha e Manoel Trindade Corrêa. Nos idos de 1878, intensificou-se o povoamento desses rios, com a vinda de novos nordestinos, fugindo da seca e com isto incrementando a exploração de importantes riquezas regionais.

Foi através do Decreto Federal n. 5.188 de 07 de abril de 1904, que organizou o território do Acre em três departamentos autônomos, o Departamento do Auto Purus recebeu a nomeação do seu primeiro Prefeito Departamental, General Siqueira de Menezes, que deveria estabelecer a sede administrativa. Em 09 de julho do mesmo ano, o General parte de Manaus com destino ao Acre e, em 24 de setembro após setenta e quatro dias de viagem, atravessou a linha Cunha Gomes, aportando a margem esquerda do Rio Iaco, em terras do Seringal Santa Fé, logo escolhidas para a localização da futura sede do Departamento. No dia seguinte, 25 de setembro às 8h da manhã, instalou o Governo e o berço da cidade Sena Madureira, dando-lhe este nome em homenagem ao afeto e admiração que consagrava ao Coronel Antônio Sena Madureira, militar que havia participado da Guerra do Paraguai.


Rua Manoel Urbano, atualmente. (Foto: Reprodução Google)



Elevado à categoria de vila com a denominação de Sena Madureira, por ato do Prefeito, de 25 de setembro de 1904, elevado à condição de sede no antigo distrito de departamento do Auto Purus, pelo Decreto Federal n. 5.188, de 07 de abril de 1904. Elevada à condição de cidade pela Resolução do Prefeito Decreto n. 03 de 01 de julho de 1912, constituído por cinco distritos: Sena Madureira, São Bento, Iracoma, Granja e Mercês. (Fonte: Confederação Nacional de Municípios, https://www.cnm.org.br)

Manoel Urbano da Encarnação foi desses bravos pioneiros na navegação dos rios, Acre, Purus e mais tarde Juruá. Em 1860 realizou uma expedição que durou nove meses procurando uma junção, entre os rios Purus e Madeira. Seu trajeto o levou as terras bolivianas, trazendo nessa viagem alguns fosseis (SAURIAN, MOSSASAURO), que encontrou pelo caminho. Em seu relatório descreveu várias tribos indígenas, calculando cinco mil almas ao longo do percurso.

A ocupação das terras acrianas por brasileiros teve início em 1861, quando Manoel Urbano da Encarnação penetrou na Bacia do Rio Acre, viajando por vinte dias até a nascente.

Nomeado diretor parcial dos índios em 1861 era responsável pela área que ia desde o lado Jacaré, no Rio Tapauá: acima da Maloca Capana em diante. A incorporação dos povos indígenas aos quadros da força de trabalho da Província era uma questão chave, no qual Urbano ganhou notoriedade como interlocutor.

Em 1874, Manoel Urbano fundou o povoado de Canutama, como um seringal hoje município do Amazonas e recebeu a patente de Tenente-coronel do Governo Brasileiro, por ser responsável pelos índios Paraná – Pixuna.

Município de Manoel Urbano, no Acre. (Foto:Divulgação/Governo do Acre)

O mundo de Manoel Urbano da Encarnação: indígenas, regatões, migrantes e fugitivos no avanço rumo ao oeste amazônico no século XI

ANTONIO ALEXANDRE ISÍDIO CARDOSO*

Em novembro de 1865, William James, membro da Expedição Thayer, encontrou Manoel Urbano da Encarnação na Província do Amazonas, e assim o descreveu: “um cafuzo bem apessoado, com mais sangue negro do que índio, de mais ou menos uns 60 anos, vestido em um terno brilhante de alpaca preta” (MACHADO, 2010:149). O jovem viajante não conhecia o homem que o acompanharia em suas explorações pelo Solimões, um “negro velho” que lhe parecia a princípio “rígido e estranho”. Mas, com o desenrolar da viagem, o tempo e a convivência foram desatando nós de alteridade, e ao fim de alguns dias, já presente no sítio de seu anfitrião “de cor”, James chegaria à conclusão que o velho Urbano era “talhado para ser amigo de qualquer homem que exista, não importando quão elevados seu berço & dote” (MACHADO, 2010:158).

Não era a primeira vez que Urbano recebia elogios de um viajante estrangeiro. Em 1864, ao lado de William Chandless, correspondente da Royal Geographical Society de Londres, singrou o rio Purus em busca de um canal de ligação com o Madeira, de modo a evitar seu trecho encachoeirado (para assim possibilitar a livre navegação entre o Amazonas/Mato Grosso/Bolívia). Mesmo que a tentativa não tenha logrado êxito, Chandless registrou em seu relatório a admiração para com o companheiro de viagem, classificando-o como “um mulato de pouca instrução, mas que sabia usar a grande e natural inteligência” (CHANDLESS, 1866:86).

Ao lado dessas definições, era corrente outra nomenclatura dada por alguns povos indígenas ao famoso explorador do Purus. Chamado de “Tapauna Catú”, cujo significado é “preto bom”, Urbano evidenciava seu protagonismo diante das ações de contato com os habitantes da floresta (CASTELLO BRANCO, 1947:166). Os significados desse papel asseguravam-lhe, segundo Aureliano Cândido Tavares Bastos, a posição de “homem audaz que inspira(va) confiança por seu zelo, conhecimento dos logares(sic) e trato com o gentio daquelas regiões” (BASTOS, 1866:324).

O Cafuzo, mulato ou preto Manoel Urbano da Encarnação, também era chamado em algumas ocasiões de cidadão, quando citado nos Relatórios de Presidentes de Província do Amazonas. Esse foi o caso do ano de 1861, quando Manoel Clementino Carneiro da Cunha fazia alusão aos esforços oficiais do levantamento de informações sobre os “costumes, inclinações, e disposições” para a vida “civilizada” dos indígenas encontrados por Urbano em suas viagens ao interior (CUNHA, 1861:40).

Pode-se afirmar que o painel acima esboçado de marcadores sociais definidores de cor/raça e a classificação de Urbano como cidadão, emprestam a sua trajetória uma complexidade ímpar1. Sabe-se que sua notoriedade ante os viajantes estrangeiros advinha de seu prestígio com as autoridades locais, que o indicavam como guia e informante, devido a sua larga experiência como Prático de Embarcações. Mas, e com relação aos povos indígenas, como se deu seu estreitamento de relações e intimidade de contatos? E acoplada à referida questão, como e por que ele teria arrebanhado tanto conhecimento e experiência no trato com os povos do interior e na navegação dos altos rios?

No sentido de pensar tais questões é interessante voltar ao relato do jovem viajante da expedição Thayer. James descreveu em seu diário, para além da estranheza ou cordialidade para com seu companheiro de viagem, outros aspectos da vida naqueles tempos. Disse ele que, a certa altura, amigando-se cada vez mais com Urbano, fora convidado a acompanhar seu interlocutor em negócios empreendidos pelo interior, mas especificamente no rio Purus, para onde transportariam “grande carga de mercadorias americanas, roupas, facas &c” (MACHADO, 2010: 152-153), que seriam trocadas por drogas da floresta. Estes teriam sido os planos do “velho de cor” para o estrangeiro, que poderia conhecer melhor os mundos do interior amazônico e suas possibilidades comerciais.

A atividade de Urbano, nesse sentido, fazia parte das trocas de pequeno trato, baseadas no retalho, conhecida na floresta como comércio de regatão. No século XIX, os regatões eram muitas vezes os primeiros a entrar em contato com as populações indígenas de áreas ainda inexploradas, sendo espécies de pontas de lança do reconhecimento dos vários canais que interligam as bacias dos rios (assim como suas populações). Estes homens acompanhavam e participavam da frente de expansão rumo ao oeste amazônico, quando o Estado, sob a batuta da recém-criada Província do Amazonas (implementada em 1852), buscava conhecer e dar a conhecer o território e suas potencialidades econômicas.

O vale amazônico à época estava no centro de várias discussões, inclusive em âmbito internacional. Projetos de colonização, impasses sobre o monopólio da abertura da navegação da bacia, críticas ao aproveitamento rarefeito dos recursos naturais, tudo isso exercia pressão sobre o Império, que tencionava acelerar e efetivar seu controle sobre o território. Em geral, a Amazônia era associada à imagem de um “deserto” edênico, ainda não tocado pela energia promissora que adviria da exploração de suas riquezas. Nesse sentido, a nova Província do Amazonas entrava em cena já com a responsabilidade de garantir o aproveitamento e o controle sobre a sua imensa porção territorial.

Em 1862, por exemplo, o Presidente da Província enviou para o rio Purus o Engenheiro Militar João Martins da Silva Coutinho, incumbido de fazer um levantamento criterioso, tomando nota de suas populações, entre outros aspectos. Coutinho, que ainda não conhecia seu itinerário, teve em Urbano uma figura de confiança, seu maior guia no deslocamento e no trabalho de reconhecimento do rio. Além de acompanhá-lo na longa viagem, Urbano serviu-lhe de mediador no diálogo e levantamento de informações junto aos donos de feitorias, indígenas e comerciantes, que conformavam algumas das peças do cenário a ser decifrado. O empreendimento tinha um interesse bastante claro, qual seja, conhecer para melhor controlar e disciplinar a situação de fronteira2 .

Logo nas primeiras páginas do relatório do engenheiro existe alusão ao importante papel de Manoel Urbano, pois este prestou-lhe “relevantes serviços” () sendo na opinião de Coutinho o maior conhecedor do rio Purus e possuidor de grande influência entre os índios (COUTINHO,1862:02). Foi feito nessa ocasião um estudo do curso do rio até a localidade conhecida como Hyutanahan, que seria alguns anos depois, com o crescimento da Companhia Fluvial do Alto Amazonas, a última parada dos vapores que ajudariam a levar milhares de migrantes para diversas localidades do rio. Foram esboçadas ainda no testemunho, ricas informações sobre os mundos do trabalho da floresta oitocentista, onde figuravam feitorias, explorações diversas, e a descrição das habitações de alguns moradores. Destacam-se nesse arrolamento alguns gêneros extrativistas, como salsa, castanha, cacau e borracha, assim como os roçados de mandioca, que eram à base do circuito econômico camponês do interior, bastante conhecido pelo interlocutor de Coutinho.

Assim como Urbano, vários outros sujeitos tinham contatos estreitos com os povos indígenas e demais habitantes do interior. Essas referências podem ser encontradas também no relato do engenheiro, que ao situar as várias localidades de exploração, destacou algumas iniciativas consideradas benfazejas aos olhos oficiais. Como no caso sítio de Francisco José Rodrigues de Souza, próximo ao canal do Berury, onde viviam quatro famílias Mura atuando na exploração da salsa, ou ainda como na feitoria de João Gabriel de Carvalho e Mello, com grandes seringais e cacoais, nas proximidades da foz do Jacaré, vizinha a uma maloca Paumari. Estes homens estavam posicionados dentro da teia de relações que incluía negociações com a população do interior, que nem sempre eram amenas. Fugas, deserções, tráfico de gêneros de subsistência e mercadorias, entre outros fatores, faziam parte do cotidiano das relações entre os donos de explorações e os habitantes dos altos rios.

No que se refere ao contato com indígenas, Manoel Urbano teve um papel de destaque no trabalho com os povos do Purus, principalmente a partir dos seus contatos com a Diretoria de Índios, instituição que garantia a particulares o direito de também “catequizar” as comunidades (tendo como finalidade sua incorporação ao contingente de trabalhadores do território). Urbano atuou como informante em suas várias viagens, sendo nomeado em 1854 Encarregado dos trabalhos de reconhecimento dirigidos pela Diretoria dos Índios no Amazonas. Uma de suas tarefas era relatar o itinerário de contatos com os variados povos, a fim de facilitar a entrada dos agentes oficiais (e também de outros exploradores e migrantes), como pode ser analisado através de uma de suas cartas enviadas ao Presidente da Província do Amazonas, Herculano Ferreira Penna.

Participo a V.exª do rezulttado da minha diligencia, que cheguei a certa altura, no afluente denominado Pao-iny com a catechese dos Indígenas, fazendo ver os ditos a Ordem do Governo, vendo paragens suficientes na margem a fim de se aldearem, os demais juntos convidei para esta aldeia; não hove entre elles repugnancia alguma, de todas as malocas me dicerão que estavão –ilegível- para o dito fim, não cheguei a terça parte das tribus, a pressa cheguei a vinte e uma malocas. () Deos guarde a V.exª Aldea de Arimã 9 de junho de 1854 Manoel Urbano da Encarnação, Encarregado3

A aldeia de Arimã era uma espécie de base para as operações dos Encarregados que buscavam contatos com os habitantes do Purus, de modo a fazer valer a “Ordem do Governo”. Manoel Urbano trabalhou durante muitos anos nesse ofício, prestando serviços caros aos olhos do poder provincial, sendo nomeado Diretor Parcial dos índios em 1861, responsável pela área que ia “desde o lago jacaré e o rio Tapauá: e a cima da maloca Capana em diante.” 4 Vê-se que a incorporação dos povos indígenas aos quadros da força de trabalho da província era uma questão chave, na qual Urbano ganhou notoriedade como interlocutor.

Nesse sentido é possível afirmar que no “mundo” de Manoel Urbano da Encarnação estava em evidência um processo de interiorização dos interesses oficiais. Mas, para além dos rompantes de esquadrinhamento da floresta, que buscavam firmar as populações indígenas como reservas de mão de obra, havia, em contrapartida, a persistência de um modo de vida camponês desses povos, que acompanhavam as temporalidades dos rios e matas. Homens e mulheres tinham um calendário produtivo nômade, deslocando-se diversas vezes para organizarem suas atividades, em geral, com base em roçados na época da vazante, e na extração de drogas na época da cheia, que ajudavam a fomentar a base da sua produção de gêneros úteis à alimentação e aos demais usos e trocas. Em outras palavras, mesmo com os esforços dos Diretores de Índios, o trabalho de arregimentação e tentativa de sedentarização em aldeias ou missões nem sempre surtia o efeito desejado, pois sofria a resistência de um modo de vida sedimentado em saberes e costumes por vezes grandemente avessos aos interesses oficiais. Além disso, com o paulatino fortalecimento da presença dos regatões (efeito do avanço da frente de expansão), os produtos “tradicionais” passaram a entrar na roda mercantil, intercambiados com manufaturados, como tecidos, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho, enlatados, dentre outros, o que aumentava ainda mais a complexidade dos negócios em território fronteiriço.

Apesar desses encontros entre a economia indígena e as trocas comerciais causarem muitos conflitos (GOULART, 1968), por outro lado, também ajudaram a reconstituir, diante das novas demandas históricas (MINTZ, 2008), o modo de vida camponês dos habitantes do interior amazônico. Exemplos podem ser analisados através dos testemunhos da expedição de Coutinho e Urbano (1862), quando por várias vezes, os tripulantes ficaram surpresos (especialmente o Engenheiro Militar) diante das articulações de alguns habitantes do interior.

Entre os Mura, nesse sentido, havia uma liderança (Tuxaua) chamado Uauassú, que amealhara em seus negócios com os regatões 830$000 réis em moedas de cobre, utilizados na compra de roupas, ferramentas, entre outros bens manufaturados. Semelhante à referida liderança Mura, havia o Tuxaua Apucahan, do povo Paumari, que também empreendia seus negócios com os regatões, mas enganando-os diversas vezes. Ele adquiria preciosas “fazendas” e instrumentos de trabalho em troca de “tartarugas magras”, que não valiam quase nada, prejudicando os lucros dos comerciantes, que não conseguiam reaver suas mercadorias. O filho de Apucahan, um jovem de 25 anos contatado pela expedição na ocasião da ausência de seu pai (que estava doente e tinha ido buscar o auxílio de um pagé para tratar sua enfermidade), apresentou-se aos membros da expedição “de calça e camisa de riscado fino e chapéo á moda, mostrando-se muito satisfeito” com a visita dos citadinos (COUTINHO, 1862:72)

Tais arranjos, posturas e barganhas empreendidas pelos indígenas contrariavam muitas vezes os planos oficiais, e ainda eram acompanhados por outras reações aos ditames desejados da frente de expansão. Muitas eram as reclamações feitas por Diretores de Índios, relatando as fugas e deserções dos que não aceitavam as regras ditadas pelo Estado. A situação ganhava ainda mais ressonância quando os pedidos dos Presidentes de Província, que demandavam trabalhadores indígenas para obras públicas, eram negados pelos responsáveis dos aldeamentos do interior. Esse foi o caso de Francisco Antônio Rodrigues, que em 1854 era Diretor de Índios do rio Abacaxis, afluente do Madeira.

Tendo recebido a 11 do corrente a Portaria de V. Exª de 9 de Agosto ultimo, na qual me ordena V. Exª que com brevidade apresente seis índios ao Agente da Companhia de Navegação e Commercio do Amazonas para serem empregados nas obras que a mesma Companhia emprehendeu fazer na Freguesia de Serpa () não será possível satisfazer a determinação de V. Exª sem detrimento desta povoação (que perderia braços para os trabalhos da própria comunidade e de particulares, mexendo com os interesses dos exploradores – grifo meu), além do que ordenando-me essa presidência que não use de violência para com os índios, não sei como proceder sem rigor para que elles vão prestar serviços, aturados (sic) que sua índole não tolera que prestem e ainda fora de seus lares. () Deos guarde a V. Exª Abacaxis, 15 de Desembro de 1854 Francisco Antônio Rodrigues, Diretor 5

A mensagem do Diretor é clara quanto às tensões presentes no aldeamento, consubstanciadas nos métodos empregados para arregimentação dos índios ao trabalho, pois ao receber o conselho do Presidente no sentido de não usar de violência com os indígenas, Francisco Antônio Rodrigues assevera não saber outro caminho para alcançar o objetivo. Interessante notar a ressalva feita sobre a índole dos habitantes do Abacaxis, que não toleravam o trabalho, pior ainda longe de seus lares. Percebe-se, ainda, um tom grave no relato do Diretor, que mesmo sendo obrigado pela Portaria a fornecer os seis índios aos serviços pedidos pelo presidente, titubeava ante a perda de braços da própria aldeia, que seguramente estavam também sendo disputados entre particulares.

Manoel Urbano tinha “parte” nessas disputas. Várias são as referências de suas ações envolvendo o uso de mão de obra indígena pelo Purus, como no caso em que “reuniu grande número de Apurinã e Jubery e com elles fez extenso roçado nas barreiras de Huytanahan”, ou ainda na sua incursão na localidade de Arimã, “quando reuniu 600 Paumari e Jubery fazendoos descer da parte superior do rio para formar uma aldeia () onde fez um grande roçado e levantou uma capella” (COUTINHO, 1862:37). Essas atividades se conectavam com as ações de Urbano como comerciante de pequeno trato ligado ao projeto de assenhoramento da floresta. O “maior conhecedor do Purus” utilizava sua posição para legitimar seus negócios, pois ganhando notoriedade como interlocutor das expedições oficiais e da Diretoria de índios, fortalecia suas ações diante dos giros mercantis e do estabelecimento de feitorias no interior amazônico.

Esse cenário trata, portanto, de algumas das dimensões do trabalho compulsório na Amazônia do século XIX, quando indígenas eram “aldeados” e utilizados em obras públicas e trabalhos de particulares. Dessa maneira, é possível afirmar que o alargamento da devassa dos altos rios acelerava esse processo, que era acompanhado também pela agência dos povos indígenas, que não foram passivos diante das novas demandas.

Tudo leva a crer que, simultaneamente com as ações de cunho oficial, incursões de donos de feitorias e demais exploradores, existia a constituição de resistências diante do novo cenário, advindas da agência de um campesinato com base indígena. Estava em processo uma série de transformações que promoviam, além das tentativas de disciplinarização, encontros entre sujeitos heterogêneos, como indígenas, migrantes, regatões, fugitivos, entre outros. Estes aditavam na complexidade das reações, e engrossaram a diversidade dos arranjos estabelecidos entre os habitantes do interior, que tentavam cultivar um modo de vida onde as alternativas de sobrevivência e liberdade fossem maiores.


As possibilidades dessas elaborações certamente circulavam dentro da calha dos rios amazônicos, tanto que muitos eram os fugitivos (livre e escravos) que buscavam guarida nos altos rios. No avançar do século XIX, existem alguns registros nesse sentido, como os anotados pelo viajante Paul Marcoy, que nos lembra da existência de muitos “guerreiros foragidos” (desertores) no alto Solimões. “Encontradiços nos canais e igarapés do Amazonas onde a corte marcial não os alcança”, localidades onde “cultivam alguma mandioca e banana, caçam e pescam para prover sua mesa, negociam com os comerciantes do rio a salsaparrilha e o cacau que coletam nos bosques, e desses pequenos comércios compram pano de algodão () para enfeitar suas mulheres” (MARCOY, 2006:35) indígenas. O mesmo viajante conta que ao avançar na direção de Ega hospedou-se num “casebre”, onde viviam desertores “em paz e segurança com suas mulheres de narizes achatados”, e que ao despedir-se fora presenteado “com alguns abacaxis colhidos na horta” (MARCOY, 2006:107), para que não os denunciasse para as forças policiais.


Indícios semelhantes foram analisados por Eurípedes Funes (embora voltados especialmente para a problemática da escravidão), que estudou os mocambos do rio Trombetas também no século XIX. Espaços sociais que eram combatidos por incursões oficiais e denunciados pela imprensa, mas que resistiam, relacionando-se e trocando experiências na floresta com povos indígenas, fugitivos, desertores, e comercializando os excedentes de sua produção com regatões locais (FUNES, 1995).


No sentido de analisar tal cenário, que envolve trocas plurais entre adventícios e outros habitantes da floresta, é interessante destacar mais uma vez alguns detalhes que chamaram atenção de Urbano e Coutinho em suas incursões ao interior. Nesse caso, que dizem respeito à presença de “brancos” vivendo com os indígenas. Como foi obsevado numa aldeia Mura, que tinha entre os seus membros um filho da cidade de Silves, que já morava há muitos anos entre os índios, estando “completamente amoldado ao systema delles” (COUTINHO, 1962:66). Caso semelhante também apareceu nas proximidades da foz do rio Mary, onde foi preciso coletar lenha, bem próximo às malocas dos Catauixi. Para surpresa de todos, entre os ditos índios estava morando um homem chamado Daniel há mais de três anos. Este, segundo Coutinho, ao invés de tentar “aprimorar” a cultura indígena, de modo a aproximá-la da “civilização”, nada fazia para “melhorar” seus costumes. Em outras palavras, ao invés de trabalhar para transformar os hábitos tidos como “desregrados” e “inadequados”, o habitante “branco” estava seguindo o modo de vida dos membros das malocas.

Semelhante ao testemunho de Coutinho acima referido, podem ser apontados os comentários do maranhense Antônio Rodrigues Pereira Labre, dono de seringais e fundador de uma povoação que tornou-se o que hoje é o município de Labrea-AM. Em 1872 foi publicado um pequeno estudo de sua autoria, intitulado Rio Purus, onde ele discorre sobre a geografia da bacia, apresentando uma relação das localidades e dos hábitos de vários povos indígenas, contemplando ainda a situação dos trabalhadores na floresta. Labre tece uma forte crítica ao extrativismo e as formas de exploração relacionadas às suas atividades. No entanto, mesmo diante do tom grave de sua escrita, ele não deixa de salientar que o maior problema era a apreensão de hábitos de vida nômade por parte dos trabalhadores “brancos”, que possuíam “tendências bem pronunciadas para o estado selvagem” (LABRE, 1872:45). Assim, não seria inócuo inferir que havia uma interação entre migrantes e outros sujeitos que viviam na floresta, como os indígenas, e isso não somente através de um matiz conflituoso, mas também diante de uma possível tessitura de espaços de entendimento e troca.

Assim, é possível vislumbrar através do mundo de Manoel Urbano da Encarnação algumas nuances da frente de expansão rumo ao oeste amazônico no século XIX, que não deve ser entendida somente a partir do planejamento das políticas de Estado, especialmente quando analisadas na chave uníssona do confronto entre populações nativas e adventícias. Tendo em vista uma perspectiva diferente, a contrapelo, o processo aqui delineado almeja apresentar novos vieses, com base na leitura da agência dos que interagiam e (re)constituíam arranjos diversos diante das demandas oficiais e dos mundos do trabalho, ressignificando-os. A atenção às elaboradas ações de indígenas, migrantes, regatões, fugitivos e demais atores sociais envolvidos, ajuda a posicioná-los dentro do processo, como partícipes, politicamente situados, e não simplesmente como massa amorfa ou multidão irrefletida. Para tanto, por fim, é preciso entender e marcar suas diferenças, compreender suas especificidades historicamente, mas também estudar suas trocas em comum e desafios de alteridade.

Estrada Manoel Urbano (AM-070), que liga Manaus à Manacapuru, no Amazonas. (Foto:Divulgação/Seinfra-AM)

Seu nome perpetuado em vários momentos

Entre tantas homenagens perpetuadas em nome de Manoel Urbano da Encarnação temos o município no Estado do Acre. No bairro de Educandos Manoel Urbano como bem destacou Durango Duarte no seu Instituto Durango Duarte. A Rodovia Manoel Urbano também destacada por Durango Duarte no Instituto Durango Duarte. Estes fatos de extrema importância mantêm vivo o legado e o nome deste incansável descobridor dos nossos rios e de novas terras.

… Como escreveu Durango Duarte, a Rodovia Manoel Urbano espremida entre os rios Negro e Solimões, cortam uma região onde já existia um grande número de famílias de colonos brasileiros e japoneses que se dedicavam à agricultura de plantio de pimenta do reino. Com a construção da estrada AM – 3 para o escoamento da produção de pimenta e de fibra de juta, oriunda do município de Manacapuru, a região seria beneficiada.

O projeto de construção da estrada – Cacau-Pirêra/Manacapuru teve seu início em 1959, no Governo de Gilberto Mestrinho (1959-1963), quando foram realizados os primeiros estudos de exploração e reconhecimento do terreno.

No ano seguinte, um relatório produzido pelo então diretor do DER-AM, destacava: “Na AM-3, Manacapuru/Cacau-Pirêra foram realizados dois quilômetros de regularização em 1959; a estrada tem 10,5 km prontos, estando aberta até o km 20 a partir de Cacau Pirera; partindo de Manacapuru estão desmatados destocados 30 km. O total a ser construído era de 87 km, partindo de Cacau Pirera. Em 1961, estavam previstos os desmatamentos total e o prosseguimento das obras na frente do Cacau Pirera”. Os trabalhos, no entanto, seguiram em ritmo bastante lento.

Somente no governo de Arthur César Ferreira Reis (1964-1967), é que as obras da estrada tiveram reinicio e com prazo de entrega determinado para dezembro de 1965. Em junho de 1965, o governador dando continuidade ao seu Plano Bienal de Novas Rodovias, cujo, propósito era, promover um novo sistema de transporte e comunicação na região, anunciou que obra estaria concluída.

Naturalmente, a previsão gerou comentários céticos da opinião pública, que duvidava da capacidade do governo de cumprir com o prometido em período tão curto. Arthur Reis convocou Ney Santi, recém-empossado diretor do DER-AM, para coordenar os serviços necessários a “conclusão da Rodovia no tempo anunciado.

Uma proposta de abertura de crédito no valor de dois bilhões de cruzeiros, destinados a custear a obra, que não estava prevista para o corrente ano, foi assinada por Santi e enviada ao Conselho Rodoviário. O governo criou a Comissão Especial de Construção da Rodovia AM-3 e, designou o engenheiro Gerson Skrobot para presidir a comissão.

No dia 06 de outubro de 1965, foi publicado um decreto governamental que estabelecia normas para a construção da estrada Manacapuru/Cacau-Pirêra. A incumbência da comissão era executar as normas contidas no supradito decreto e imprimir um ritmo de celeridade para a conclusão da empreitada em data acertada para 31 de dezembro de 1965.

O ato normativo assinado pelo governador dispensava qualquer modalidade de licitação pública para a aquisição de materiais e equipamentos, desde que seus valores fossem inferiores a vinte milhões de cruzeiros. Além disso, somente as firmas cadastradas no DER-AM, seriam consultadas através de coleta de preços.

A encarregada pela obra foi a Firma Irmãos Prata S.A., que mobilizou um contingente de 180 trabalhadores e disponibilizou 25 máquinas possantes. Em apenas três meses, a empreiteira rasgou 87 km de selva, em tempo recorde. A empresa e os seus funcionários protagonizaram um evento de obstinação que ficou marcado na história da construção da AM-3.

No dia 30 de novembro de 1965, trinta dias antes do período previsto pela empresa, os tratores da firma enfrentaram as fortes chuvas que a todo custo tentaram impedir que alcançassem os 87 km da rodovia recém-aberta. Porém, o objetivo foi alcançado e comemorado pela população que, encarava como lenda, conversa fiada a criação da rodovia. Registra-se que a estrada, em seu percurso, é cortada pelos Paranás do Ariaú e Ubin, além do Lago do Miriti, o que exigiu significativa motivação de terra, para aterrar o trecho onde a estrada passaria.

O primeiro dos dois nomes à rodovia decorria do fato de Manacapuru ser um dos maiores produtores de juta do Amazonas – “estrada da juta”; o segundo, “estrada do abastecimento de Manaus”, porque permitiria o escoamento da produção agrícola existente – legumes, verduras, pimenta do reino – plantadas pela colônia japonesa radicada no Cacau-Pirêra e em Manacapuru.

Zeloso como fora durante a construção da AM-1 – Manaus/Itacoatiara, no dia 1 de dezembro de 1965, o governador Arthur Reis e sua caravana atravessaram a baía do rio Negro, saindo do “Roadway” para visitar o acampamento dos trabalhadores e verificar, in loco, o desmatamento que estava sendo realizado para a abertura da estrada. A comitiva, depois de percorrer toda a estrada até o município de Manacapuru, retornaria as 17h. Bastante satisfeito ficou Arthur Reis aos saber que a Irmãos Prata antecipou em trinta dias o término da ligação Cacau-Pirêra/Manacapuru.

Na manhã de 30 de dezembro de 1965, o governador Arthur Reis, acompanhado da comitiva composta pela primeira-dama Graziela Reis, seus três filhos, políticos, juízes, empresários e jornalistas, partiu do roadway da Manaus Harbour, em uma lancha do governo, em direção ao distrito de Cacau-Pirêra.

Após a travessia do rio Negro, Reis e sua caravana tiveram que enfrentar, além das péssimas condições dos trechos que formavam a estrada, a chuva que caia e deixava a estrada coberta de lama, resultante do inverno amazônico. Apesar dos transtornos, o governador e sua comitiva foram recompensados com uma calorosa recepção, proporcionada pela população de Manacapuru.

A inauguração da rodovia Manoel Urbano se deu no marco zero-quilômetro, na sede do município de Manacapuru, em frente ao Colégio de Nossa Senhora dom Perpetuo Socorro, onde Arthur Reis proferiu seu discurso.

O nome rodovia Manoel Urbano foi dado em homenagem ao amazônida, pioneiro da navegação dos rios Acre, Purus e Juruá que, no princípio da década de 1850, foi nomeado diretor de índios do Purus pela administração da Província do Amazonas. Sua missão era percorrer os rios que cortavam a região para averiguara a possibilidade de ligação entre os afluentes do Purus e os do Madeira, que, se confirmada, poderia dar origem a uma nova rota comercial desde o sul do continente americano.

Após longos anos de espera, somente em 2013 a rodovia Manoel Urbano, atual AM-070, teve suas obras de duplicação efetivada.

Manoel Urbano da Encarnação faleceu aos 92 anos de idade, no dia 12 de junho de 1897, na cidade de Manaus, vítima de varíola, pouco tempo depois de ter sido agraciado com uma pensão vitalícia pelo Governo do Estado do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro, por seus serviços prestados.

Governador Eduardo Ribeiro. (Foto:Reprodução/Rede Amazônica)


Carta sobre costumes e crenças dos Índios do Purús, dirigida a D. S. Ferreira Penna. Por Manoel Urbano da Encarnação.
 

(Fonte: Acervo Museu Emílio Goeldi)

Notas

Doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo e colaborador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI) da Universidade Federal do Amazonas.

1 Não será objeto do presente artigo uma discussão sobre os marcadores sociais de cor/raça. Salientamos, apesar disso, que temos ciência da importância da problemática, que será aprofundada na pesquisa que está em andamento. Por hora, será enfatizada uma reflexão sobre o mundo amazônico e a frente de expansão rumo ao oeste, tendo a trajetória de Manoel Urbano como “janela”, de onde analisaremos o processo em questão.

2 O sentido empregado para o conceito de Fronteira no presente artigo extrapola a ideia de simples linha divisória entre Estados/regiões, incluindo também as disputas dos projetos sociais na conformação da territorialidade. Entende-se, portanto, que para além das simples delimitações territoriais existem fronteiras de sentido, localizadas em meio aos conflitos entre projetos sociais que disputam o espaço, numa tentativa de satisfazer seus intentos (CARDOSO, 2011).

3 Arquivo Público do Amazonas. Livro da Diretoria de Índios, 1854 (manuscrito).

4 Laboratório de História da Imprensa do Amazonas (LHIA). Estrella do Amazonas, 16 de janeiro de 1861. (microfilmado)


5
Arquivo Público do Amazonas. Livro da Diretoria de Índios, 1854 (manuscrito).

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