O risco da hegemonia de qualquer maioria

Se este é o quadro, como lidar com ele?  

Na época, não se falava em bullying e ninguém se sentia culpado por fazer alguém sofrer, simplesmente porque era diferente. As crianças e adolescentes podiam direcionar toda a sua criatividade e maldade em troca de diversão, às custas do coleguinha. Ao fazerem isso, ganhavam também popularidade, o que era um incentivo a mais para a “saudável prática”.

Christiano era gordinho, usava óculos grossos e era ruim de bola e de briga. Quatro ingredientes que faziam dele um alvo preferencial da turma. Era o segundo ano do que se chamava, na época de ginásio, o equivaleria hoje a uma parte do fundamental. Teríamos ainda três anos com a mesma turma no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Christiano teria uma longa jornada pela frente, assim como todos os tipos de apelidos e situações constrangedoras. Foi o que aconteceu, até que ele foi incorporado por uma nova maioria opressora, a dos flamenguistas.  

Foto: Imagem do Freepik

Eram os anos 70. Brasil tricampeão do mundo, a pátria de chuteiras, o melhor do universo naquilo que importava. A política era oprimida e vivíamos o “milagre brasileiro”. O “complexo de vira-latas” (termo cunhado por Nelson Rodrigues) ficou para trás e o futebol ganhou importância ainda maior do que já tinha até então. Na turma, a maioria absoluta torcia pelo Flamengo. Christiano estava do lado certo. De saco de pancadas do grupo, tornou-se, ele mesmo, um opressor. Havia uma nova minoria, e como vascaíno, eu fazia parte dela. Posso garantir que a troca de lado, dos que faziam as maldades para os que sofriam as maldades, não foi nada agradável.

Hoje, as minorias ganharam força e a diversidade é a palavra da vez. Leis foram criadas contra a discriminação de sexo e de raça. A arte está tendo que se adaptar e é difícil acreditar que há bem pouco tempo fazíamos um tipo de humor que ridicularizava abertamente com estereótipos, os negros, os homossexuais, os judeus, os portugueses e os gordos, para ficar nos exemplos mais gritantes. Muitos sofrimentos desnecessários são evitados com isso, o que é louvável. Pelo menos algumas minorias, as mais representativas, estão “protegidas”.

A questão, no entanto, é mais ampla. O problema não é o tipo de minoria, mas a opressão que é criada cada vez que alguma forma de hegemonia é estabelecida. Vale para todas elas, inclusive para as mais bem-intencionadas.

Um grupo pode ser predominantemente constituído por homens, mas também as mulheres podem ser a maioria (participo, por exemplo, de um grupo profissional em que sou o único homem). Neste caso, os homens se tornam minoria, e podem também ser discriminados. Há grupos predominantemente formados por adeptos de uma determinada religião, e como ficam os seguidores de outras, ou de nenhuma? Há os grupos majoritariamente de direita ou de esquerda. Os formados por pessoas mais jovens do que velhos e vice-versa. Em todos os lugares, formam-se maiorias e minorias. Em todos eles, há o risco da discriminação e da opressão.

Uma vez fui questionado por uma jovem: “você é homem, branco, tem curso superior, classe média…você nunca foi discriminado”. Embora compreenda que outras pessoas têm mais chances de serem discriminadas (e algumas são de verdade), não concordo com a ideia de que sofrer discriminação é exclusividade deste ou daquele grupo. Aceitar isto seria em si uma contradição, uma forma de discriminação. Somos todos potencialmente vítimas de algum tipo de hegemonia, e isto é bom pois coloca a todos nós no mesmo barco, vulneráveis.

Se este é o quadro, como lidar com ele? Penso que há pelo menos dois caminhos. De um lado, é prestarmos atenção a toda e qualquer situação em que formos maioria, estando atentos para que ela não se transforme em algum tipo de hegemonia opressora. De outro lado, termos coragem para nos posicionar quando estivermos nas condições mais frágeis, não apenas em defesa de nós mesmos, mas de qualquer minoria, mesmo que não seja entre as mais populares. Penso que hoje o Christiano concordaria com isso, mesmo sendo da maioria flamenguista.

Julio Sampaio (PCC, ICF)

Idealizador do MCI – Mentoring Coaching Institute

Diretor da Resultado Consultoria, Mentoring e Coaching

Autor do Livro: Felicidade, Pessoas e Empresas (Editora Ponto Vital), dentre outros

Texto publicado no Portal Amazôna e no https://mcinstitute.com.br/blog/

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