Foto: Rickardo Marques/Acervo Rede Amazônica AM

Influenciado pelos portugueses durante o processo de colonização, o Carnaval chega na região amazônica no auge do ciclo da borracha, período conhecido como Belle Époque. Em Manaus, com o passar das décadas, esta manifestação popular se transformou e, nos dias de hoje, é um acontecimento democrático que abrange todos os tipos de público.
Dos carnavais de clube, como os que aconteciam em meados da década de 50 no Atlético Rio Negro, às apresentações das escolas de Samba no Sambódromo, um estilo se consolida até hoje: os blocos e bandas de rua.
Uma das mais tradicionais da capital amazonense é a Banda Independente da Confraria do Armando, ou, como é popularmente conhecida há décadas, a Banda da BICA, criada no icônico Bar do Armando, no Centro da cidade. O bar foi criado pelo português Armando Dias Soares, que se mudou para Manaus na década de 50.
Com temas e marchinhas carnavalescas novas todos os anos, a BICA integra, desde 1986, o Carnaval de rua de Manaus. Hoje, com quase 40 anos de história, a empresária Ana Cláudia Soeiro, filha do saudoso Armando e hoje proprietária do estabelecimento, conta que a BICA se reinventa todos os anos.
“A gente mantém o costume de ser um carnaval tradicional. Com o passar dos anos, houveram modificações, mas sem retirar a essência da BICA. A gente começou a colocar um axézinho, que antigamente não tocava de jeito nenhum, um boi-bumbá, porque sabemos que o público gosta, mas no máximo três músicas. Carnaval é carnaval. A BICA tem uma tradição de marchinhas com metais e até os bonecos gigantes. Todos os anos temos um tema e uma marchinha escolhida por votação, o que nos diferencia dos demais”, pontuou.
A tradição dos bonecões
Assim como a banda da BICA foi criada a partir de uma reunião entre clientes no bar, a história da inclusão dos bonecos no estilo dos que já existiam em Olinda (Pernambuco) no Carnaval de Manaus tem relação com um cliente especial, como explica Soeiro:
“Tínhamos um cliente no bar chamado Paulo. E ele fazia os bonecos com aquela técnica daquela de massa de papelão. Ele começou, fez muitos bonecos para a BICA, mas muitos se perderam, outros foram furtados e hoje em dia a gente tem quatro bonecos. Mas estamos saindo no Carnaval só com dois, porque não encontro uma pessoa especializada para restaurar essas preciosidades”, revelou.

A história dos Bonecos de Olinda
Antes de seguir com a história dos bonecos usados pela BICA é importante trazer o contexto histórico. A tradição vem de além-mar.
Eles são bonecos gigantes populares no Brasil principalmente na cidade de Olinda, Pernambuco, e usados em eventos como o Carnaval. São comumente feitos de tecido, isopor, papel, madeira, fibra de vidro e alumínio, e anualmente ganham novos rostos, homenageando ou satirizando personalidades de destaque naquele período. Tal como aconteceu com a atriz Fernanda Torres em 2025, em função de sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Mas, como dito acima, eles surgiram na Europa e em Portugal por volta da Idade Média e era usados em procissões em forma de santos católicos. Já em Pernambuco ganharam novos ares na cidade de Belém do São Francisco, por meio de um padre que levou ao conhecimento de seus discípulos esta tradição europeia. Assim, foi neste cidade que surgiu o primeiro boneco gigante do Brasil, em 1919, o Zé Pereira.
E os bonecos de Manaus?
O cliente do Bar do Armando que sugeriu a inclusão de um boneco gigante nos festejos da banda foi o paraibano Paulo de Tarso, conhecido como Paulo Mamulengo, que por mais de quatro décadas, confeccionou bonecos para o carnaval e em meados dos anos 90 tentou esculpir o maior judas do mundo – que não chegou a entrar no Livro dos Recordes (Guiness Book). Assim, em 1995, o primeiro boneco da BICA fazia sua aparição no carnaval amazonense.

Ana Cláudia ressalta que os bonecos representam um dos grandes diferenciais da Banda da BICA:
“Eu acho que os bonecos representam o Carnaval, na sua mais pura essência, o Carnaval nordestino de Olinda. A BICA, quando foi criada, foi com base do Cordão da Bola Preta, do Rio de Janeiro. Quem idealizou a BICA foi pensando nos carnavais do Rio de Janeiro e também no carnaval do nordeste, especificamente de Olinda. E esse é o nosso diferencial”.
Outra característica tradicional da BICA é a criação das marchinhas exclusivas, que ironizam, criticam ou ressaltam algum acontecimento social, político ou econômico. Elas são escolhidas anualmente entre os participantes da Confraria. Neste ano, o tema foi ‘Imposto no de um, imposto no de outro. Quebra essa castanha’, para ironizar as notícias falsas sobre a taxação do pix.
Quem eles representam?
Segundo o poeta e escritor Simão Pessoa a banda deveria possuir 10 bonecos: Armando, Deocleciano (Deco), Petrolina, Frei Fulgêncio, Leomar Salignac, Celeste Pereira, Lourdes Soeiro, Antônio Paula Graça, Nestor Nascimento e Alberto Aleixo. Porém, somente Armando, Dona Lourdes, Petrolina e Deco tem resistido ao tempo. São eles que ficam no Bar do Armando.
Armando, é claro, é o português que fez com que toda essa tradição carnavalesca existisse. Dona Lourdes era sua esposa. Petrolina era uma frequentadora da Igreja de São Sebastião que também marcava presença no bar, considerada rainha do carnaval da BICA. E Deco era o jornalista Deocleciano Bentes, que foi presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Amazonas (Sjpam).

Tradição e modernidade
O historiador e jornalista Abrahim Baze comenta que, apesar dos carnavais de rua tradicionais – como é o caso da BICA – manterem as essências dos carnavais do Nordeste e Sudeste, algumas adaptações foram incorporadas com o passar do tempo, como a inclusão do Carnaboi, que promove o ritmo das toadas dos bois de Parintins, Caprichoso e Garantido.
“O Carnaboi nada mais é que a inserção das toadas de boi no Carnaval. Você vai no evento para ouvir boi e não marchinhas. Mas o Carnaboi segue a influência do Carnaval. O boi não é só um ritmo musical, é a música, a cultura, é toda a identidade de um povo”, comentou Baze.
E Ana Cláudia completa:
“Aquela ideia de que só se escuta boi no período do Festival já foi desmentida há muito tempo. Existem pessoas que absorvem e vivem tão intensamente o boi, que consomem o ano inteiro”.
Como empresária, a herdeira do Bar do Armando diz que os bonecos, as marchinhas e as sátiras vão continuar fazendo parte da tradição da BICA, porém, aliadas à inovação.
“Se você ficar preso só à tradição, você muitas vezes perde a renovação. Para se perpetuar no tempo precisa de renovação, então se você não faz um trabalho de renovação ele fica ali sendo cultuado, adorado só pelos antigos, só que os antigos um dia se vão e se você não renova o público. Se você não inova, se você não conquista novos adeptos e a tradição começa a morrer”, finalizou.
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Carnaval Amazônico
O Carnaval Amazônico é um projeto realizado pela Fundação Rede Amazônica, correalizado pelo Grupo Rede Amazônica, com o apoio da Associação Amazonense de Desenvolvimento Cultural (AADC), Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Amazonas, Governo do Amazonas e Prefeitura de Parintins.
O projeto visa resgatar a importância histórica das tradicionais bandas e blocos de Carnaval de Manaus, unindo tradição, cultura e entretenimento, levando a Amazônia para o público de toda a Região Norte. Campanhas educativas e socioambientais também fazem parte do projeto.