Escolas do povo Baniwa resgatam saberes tradicionais e incorporam inovação

Indígenas Baniwa criaram unidades de ensino próprias, pautadas pela ideia de “educar pela pesquisa”, com autonomia e pensamento crítico.

Escola Pamaali: estudantes do ensino médio e professores indígenas em atividade de pesquisa. Foto: Antônio Fernandes Góes Neto/USP

Os Baniwa são um povo indígena que vive na região das fronteiras entre o Brasil, a Colômbia e a Venezuela, tendo como epicentro de sua distribuição geográfica o rio Içana, um dos tributários do Negro. Sua população em 2025 é estimada em cerca de 20 mil pessoas, distribuídas por várias aldeias e também por centros urbanos, como São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos.

Nos ambientes mais bem informados das grandes metrópoles brasileiras, os Baniwa são conhecidos principalmente por seu requintado artesanato, pela produção da pimenta jiquitaia, muito apreciada em gastronomia, e pela atuação cultural de alguns de seus integrantes, como o artista plástico Denilson Baniwa e o antropólogo, filósofo, professor universitário e ativista Gersem Baniwa, da Universidade de Brasília (UnB).

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Como aconteceu com outros povos indígenas, os contatos dos Baniwa com a sociedade envolvente foram marcados pela extrema violência colonial, pela exploração econômica e por tentativas de apagamento cultural praticadas por missionários católicos (salesianos) e evangélicos.

Mas uma experiência educacional iniciada no final dos anos 1980 converteu-se em um instrumento de resgate cultural e inovação social. Um estudo recente, conduzido por Antônio Fernandes Góes Neto, investigou como as escolas indígenas plurilíngues baniwa e koripako (que falam um dialeto da língua baniwa e vivem na Colômbia e no Alto Içana, no Brasil) e as organizações comunitárias presentes no território baniwa articulam currículo, projetos de cadeias de valor e saberes tradicionais, promovendo a permanência estudantil, a obtenção de renda e a governança local. Os resultados foram apresentados em capítulo do livro Equalizing the three pillars of sustainability.

Doutor pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), Góes Neto é atualmente professor visitante na Universidad Andina Simón Bolívar, no Equador. Sua pesquisa de campo foi apoiada pela FAPESP por meio do projeto “Educação escolar indígena: saberes aprendidos e inovação”, coordenado pelo professor Elie Ghanem.

“Chamamos de ‘paradigma irresponsável’ da escolarização aquela lógica de internatos e vigilância moral, que afastava jovens de suas famílias e interditava conhecimentos indígenas. Nossa pesquisa mostra como as escolas indígenas baniwa e koripako, hoje, são vetores para a reapropriação do território, da língua e da economia pelas comunidades”, diz Góes Neto.

A virada começou com o movimento associativista indígena do final da década de 1980 e da década de 1990, em meio à crise do garimpo e à mobilização por direitos territoriais. Surgiram, nessa época, entidades como a Organização Indígena da Bacia do Içana (Oibi), a Associação dos Professores Indígenas do Alto Rio Negro (Apiarn), a Associação das Comunidades Indígenas de Putyra Kapuamo (ACIPK) [Putyra Kapuamo significa “Ilha das flores” na língua yẽgatu], que convergiram na formação da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn).

Representando 23 povos do Alto e Médio Rio Negro (Baniwa, Tukano, Desana, Baré, Tariana, entre outros), a Foirn, com sede em São Gabriel da Cachoeira, é hoje uma das organizações indígenas mais importantes do Brasil, atuando em defesa de direitos territoriais, educação, saúde, valorização das línguas e culturas e fortalecimento político das associações de base.

Com a homologação de terras e a criação do Território Etnoeducacional do Rio Negro (Decreto 6.861/2009), emergiu uma escola de base territorial, com gestão e docentes escolhidos pela comunidade. “As associações e as escolas tornaram-se espaços de manobra para preservar e fortalecer os saberes, ao mesmo tempo em que criam alternativas econômicas para que o ato de estudar não afaste os jovens das comunidades. A radiofonia comunitária, implantada com assessoria do Instituto Socioambiental [ISA], foi peça-chave na coordenação entre as associações e escolas”, informa o pesquisador.

O estudo foca a comunidade Cabari, na microrregião Aí Waturá, no município de São Gabriel da Cachoeira, onde a escola municipal homônima, gerida pela ACIPK, organiza currículo e projetos a partir da noção de kupixá (roça ou floresta) e de temas geradores levantados pela própria comunidade (plantas úteis, pesca, cerâmica, resíduos, saúde, história local etc.). O modelo é baseado em escolas-piloto do rio Içana, como a Escola Indígena Baniwa e Coripaco Pamáali e, mais recentemente, a Escola Baniwa Eeno Hiepole.

“A sala de aula tem fluxo com o território. Os alunos trilham, roçam, pescam, entrevistam os mais velhos, registram seus achados em línguas como baniwa, koripako ou yẽgatu e os apresentam à comunidade. Isso vira material didático. É a escola que constrói seus recursos de apoio por meio da pesquisa”, relata Góes Neto.

A ideia de “educar pela pesquisa” está alicerçada na obra do sociólogo Pedro Demo, professor emérito da UnB e ex-presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), um autor referencial no campo da educação. Demo vê a pesquisa como princípio educativo por excelência, mobilizando aluno e professor, com base em critérios como autonomia e pensamento crítico. Sua abordagem foi profundamente absorvida pelos programas de Magistério Indígena no fim dos anos 1990 e início dos 2000.

Leia também: Ativista luta pela educação dos povos indígenas no Amazonas

A diversidade sociolinguística é um traço marcante: no Baixo Içana predomina o yẽgatu; do Médio para cima, o baniwa; no Alto Içana, o koripako. A grafia proposta pelo linguista franco-brasileiro Henri Ramirez, nascido na Argélia e chamado pelas associações baniwa para assessorá-las décadas atrás, vem sendo ajustada por professores indígenas. E há demanda para reconhecimento do baniwa e do koripako como patrimônio linguístico, dentro do Diagnóstico Sociolinguístico da Língua e Comunidade Medzeniako (Baniwa-Koripako), uma colaboração da Foirn com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e no Projeto de Documentação Linguística Baniwa e Koripako do Endangered Languages Documentation Programme (ELDP).

O resgate dos saberes ancestrais é uma ênfase. Mas a incorporação crítica de novos saberes, capazes de subsidiar a inovação com vistas ao bem viver, é igualmente valorizada. Em Cabari e em muitas outras comunidades isso se dá em três frentes: produção de cestaria com motivos tradicionais; produção de pimenta jiquitaia, inclusive com parcerias, visando, por exemplo, a fabricação de cerveja artesanal com pimenta; e turismo étnico, integrando trilhas, leitura de paisagens e de plantas, culinária e narrativas.

“Na produção da pimenta, o desafio foi dominar todas as etapas do processo: cumprir normas sanitárias, padronizar as embalagens e vender com identidade própria. No turismo, a comunidade percebeu que essa atividade só se sustenta quando a escola melhora, com pesquisa e formação de docentes, que são os próprios gestores desse tipo de atividade econômica”, comenta Góes Neto.

Escolas do povo Baniwa resgatam saberes tradicionais e incorporam inovação
Maloca da Comunidade Assunção do Içana, onde está em curso um movimento de recuperação do xamanismo tradicional. Foto: Antônio Fernandes Góes Neto/USP

A espiritualidade ancestral e as práticas xamânicas foram fortemente estigmatizadas e demonizadas pelas missões católicas e evangélicas. Hoje, a grande maioria dos baniwa se define como cristã, em uma vertente ou na outra. Mas também nesse campo, especialmente delicado, há uma recuperação em curso. Ucuqui-Cachoeira é reconhecida como uma das comunidades católicas que mantiveram práticas xamânicas vivas, mesmo diante da forte pressão evangelizadora no século 20.

Segundo o antropólogo Robin Wright, Ucuqui-Cachoeira foi um dos principais centros de resistência e revitalização do xamanismo baniwa. Pajés dessa comunidade participaram de iniciativas como a Escola de Xamãs, projeto conduzido por Wright nos anos 1990, com o objetivo de registrar, fortalecer e transmitir saberes xamânicos.

Assunção do Içana é outro exemplo. Marcada por ter sido um dos grandes internatos salesianos da região, tornou-se, a despeito disso, um novo polo de fortalecimento do xamanismo. Reflexo da convivência histórica com não indígenas e casamento com mulheres do povo Baré, a maioria dos moradores não fala baniwa, mas yẽgatu, que foi uma língua franca amazônica, principalmente nos séculos 18 e 19.

Em 2022-2023, foi criada, em Assunção do Içana, a Escola Viva, um projeto comunitário com a finalidade de ensinar e difundir saberes tradicionais, incluindo o xamanismo e o desejo de voltar a falar a língua baniwa, considerando que ainda há alguns falantes dessa língua na comunidade. A liderança intelectual desse processo vem de pesquisadores e professores baniwa, como Francy Baniwa e Francisco Fontes Baniwa, autores do livro Umbigo do Mundo https://dantes.com.br/produto/umbigo-do-mundo/ (2023), que articula cosmologia baniwa e perspectivas femininas do povo baniwa.

“A maloca tradicional vem sendo reconstruída, como recinto cerimonial e centro de convivência. Mas há um consenso crescente de que escola é uma coisa e maloca é outra. A aula pode acontecer na maloca, ou em uma sala de alvenaria, palhoça, roça, porto ou trilha. O essencial é não diluir o tempo escolar e não reduzir a maloca à sala de aula”, sublinha Góes Neto.

O capítulo escrito pelo pesquisador e fruto de trabalho colaborativo entre a FE-USP e a Foirn, e de oficinas realizadas no período 2018-2020, sustenta que escolas indígenas superam o “paradigma irresponsável” dos internatos, escolas bíblicas e antigas escolas agrotécnicas, quando significam a vida local, mobilizam saberes do território e reduzem o êxodo das comunidades indígenas, ao articular currículo, língua, economia e gestão.

“Escola é laboratório de invenção: livros, jogos, mapas, vídeos, brinquedos, artesanato, desenho de cadeias de valor. Inovação, aqui, não é engenhoca; é agência coletiva para resolver problemas reais”, enfatiza Góes Neto. Atualmente, a FE-USP assessora as escolas Baniwa e Koripako em conjunto com a Universidade de Brasília (UnB) no Diagnóstico Sociolinguístico da Língua e Comunidade Medzeniako.

O texto Reassembling residual knowledge: an ethnographic overview of the Baniwa organizations in the northwest Amazon pode ser acessado em springerprofessional.de/en/reassembling-residual-knowledge-an-ethnographic-overview-of-the-/51328560.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Agência FAPESP, escrito por José Tadeu Arantes

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