Concentrada, Maria Marly das Chagas prepara um balaio, os dedos trançando com habilidade e esmero as talas do cauaçu. Aos poucos, o objeto vai ganhando forma e cor com o amarelo da fibra natural e o vermelho extraído da planta do crajiru. Na sequência, vêm cestos, peneiras, tupés, paneiros, jogos de mesa, tudo confeccionado em ritmo constante para responder à procura de um mercado que se encantou com o artesanato amazônico. Há 16 anos, esse é o trabalho de Marly e de um grupo de mulheres ribeirinhas organizadas no Teçume D´Amazônia. A história dessas artesãs foi contada pela antropóloga do Instituto Mamirauá, Marilia de Jesus Silva Sousa, em sua recente tese de doutorado.
Mestras do cauaçu
Especialista em Antropologia Rural, Marilia acompanha e incentiva o Teçume D´Amazônia desde a criação do grupo, em 2001. De acordo com a pesquisadora, uma das marcas que diferencia o trabalho das artesãs é o manejo cuidadoso dos recursos florestais usados na confecção dos produtos. O Teçume D´Amazônia é um empreendimento formado por um coletivo de mulheres artesãs que desenvolve suas atividades no coração de uma das maiores áreas protegidas da América do Sul: a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, com seus mais de 2 milhões de hectares de biodiversidade, no estado do Amazonas.
“Moradoras de uma unidade de conservação, as mulheres conhecem muito bem o ciclo natural de crescimento e maturação das plantas e são cautelosas na forma de extraí-las, quando esses recursos estão aptos para serem usados”, afirma. A fibra do cauaçu (Calathea lutea), que cresce em grande porte nas restingas altas em volta das comunidades, é a principal matéria-prima para as criações das artesãs. Desde a retirada na mata até os detalhes finais das peças, o trabalho é predominantemente feminino.
“Tudo é feito por nós. A gente vai na área de várzea, tira o talo, o cauaçu. Chega em casa, raspa, tira talinha por talinha, tira o ‘bucho’, que a gente chama, aí o que for para tingir a gente separa o que vai ser tingido ou não. Toda a tinta a gente tira da natureza: o crajiru pra fazer o vermelho, o açafrão pro amarelo e o anil pro azul. O crajiru com o anil fica uma cor muito linda, cor de açaí”, explica Marly, uma das líderes do grupo, com a experiência de quem lida com o ofício há mais de uma década. Hoje uma verdadeira mestra no artesanato de cauaçu, ela lembra que o começo do grupo não foi nada fácil.
Manejando recursos naturais e conflitos de gênero
Na época, a organização era chamada Grupo de Mulheres do Setor Coraci e, na raiz, estava a ideia de fortalecer o espaço das mulheres na vida das comunidades. O Instituto Mamirauá, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), incentivou a iniciativa e até hoje presta assessoria técnica ao grupo.
“Junto com a formação do grupo visando a participação social, tinha uma proposta de geração de renda. E o artesanato foi uma alternativa de renda apontada pelas mulheres”, conta a pesquisadora Marilia Sousa. “A dinâmica sempre foi a de produzir artesanato e para produzir elas se reuniam, se planejavam, isso foi criando para as mulheres o exercício de envolvimento com um tipo de organização, o que levou também a elas terem a percepção da importância delas na organização maior, seja na Reserva Amanã, na associação, era também importante elas estarem participando”.
O artesanato proporcionava então grandes mudanças na dinâmica daquelas comunidades ribeirinhas na Amazônia, o que não foi conquistado sem conflitos, especialmente na relação com homens, que tiveram que se adaptar ao novo papel das mulheres, para além do perfil tradicional de mãe, dona de casa e esposa. “Nessa época, a gente era supercarregada de filhos. A que tinha menos, tinha 8 crianças. Tinha artesã que era mãe, esposa, estudava e trabalhava com artesanato. E tinha dia que ela não sabia o que fazia, não sabia por onde começar”, recorda Marly Chagas.
Com o artesanato, a liberdade
A antropóloga do Instituto Mamirauá avalia que o ofício de artesã construiu um novo projeto de vida para as mulheres do Teçume da Amazônia. “Se antes o tempo dessas mulheres estava dedicado exclusivamente às atividades agrícolas, às atividades domésticas, a cuidar do filho, em casa, com marido, elas tiveram que criar um outro espaço delas, para produzir artesanato. Mas, não era só produzir, era planejar, discutir, criar todo um sistema de atuação de um coletivo feminino”.
A pesquisadora afirma que a autonomia financeira vinda da produção e venda de artesanato fortaleceu ainda mais o grupo. “Foi esse ponto que trouxe o restante das conquistas, o prestígio social, as pessoas passaram a ouvi-las mais. Elas passaram a ter um ponto de vista, além de reflexivo, muito questionador, em relação às mulheres. Elas costumam dizer: com o artesanato, a gente ganhou liberdade”.
Com os ganhos de uma das primeiras vendas de artesanato, as mulheres compraram uma máquina de lavar e caixa d’agua para uso coletivo. Com os novos utensílios, se viram livres das caminhadas quase que diárias ao rio para coletar água e lavar a roupa, atividades cansativas e que tomavam muito tempo. “Esse momento foi muito emblemático, porque foi uma forma delas gerenciarem melhor o tempo e de ter poder de decisão e gerenciamento do orçamento doméstico, vindo de uma atividade que elas mesmo desenvolvem. Tudo isso dá a elas um novo lugar”, considera Marilia Sousa.
“Agora a gente olha a realidade das mulheres com outros olhos, vê que as mulheres têm uma liberdade. Nós vamos nas feiras de artesanato e as pessoas nos respeitam. Então, a gente se acha mais liberta, mais elogiada”, conta a artesã Marly Chagas.
Sucesso nos negócios
Há 10 anos, o grupo de artesãs do Teçume D´Amazônia recebeu a consultoria do Serviço de Apoio às Pequenas e Microempresas (Sebrae) Amazonas por meio de uma parceria com o Programa de Artesanato do Instituto Mamirauá, visando a melhoria da qualidade dos produtos voltados para o mercado, na gestão do empreendimento, participação em feiras e eventos nacionais de artesanato. Desde lá, as vendas cresceram.
“Trabalhamos com 12 tipos de grafismos. Esses trançados já existiam pelas antigas, mas se chamavam de outra forma. Nós fizemos oficinas e decidimos batizar com outros nomes, de bichos e plantas da Amazônia. Esse é o aracu, esse é o embuá, esse é orquídea, ali o ‘jiboia’ e o jacaré”, mostra Marly, ao exibir os trançados que fazem a fama e o sucesso de Teçume D´Amazônia, inclusive fora da região. “Graças a Deus a gente conseguiu. A dificuldade maior é comunicação, mas agora a internet chegou lá. E o nosso trabalho, a gente não vende só aqui no Amazonas, já foi até para os Estados Unidos, sempre tem feira em São Paulo, no Rio de Janeiro”.