Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo. Foto: Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo
Por Osíris M. Araújo da Silva – osirisasilva@gmail.com
Avolumaram-se defensores do movimento “sem anistia”, refrão entoado e estampado por alguns foliões do carnaval deste ano. A malta intransigente, dogmática, fanática e radical assim agem provavelmente por desconhecer a história republicana durante a qual em diversos momentos “anistias” têm sido concedidas a adversários no Brasil. Basicamente, a anistia expressa sobretudo em um “goodwill”, um ato de boa vontade, um vamos começar de novo, unindo antagonistas e atuais detentores do poder em busca da construção de um país econômica, social e politicamente justo e progressista. Única condição, assim comprova a história da humanidade, para sustentação e êxito do desenvolvimento de uma nação, seja ela de que origem for. A China moderna e o Vietnã, penso eu, são os exemplos mais contundentes da premissa segundo a qual, inimigos a parte, acima de tudo o bem estar da sociedade.
Como nos dias correntes, a Lei da Anistia do regime militar também provocou controvérsias ao conceder perdão todos os envolvidos em “crimes políticos ou conexos”, incluindo agentes da repressão que cometeram torturas, assassinatos e desaparecimentos de presos políticos até 1979, ou de terroristas que assaltaram bancos, sequestraram embaixadores, assassinaram companheiros e “inimigos” da ditadura do proletariado que, apoiados pela União Soviética pretendiam impor ao povo brasileiro. No afã de formar, ao lado de Cuba a grande frente de transformação da América Latina num quintal do regime comunista, mesmo que já claudicante nas suas origens, tanto na China de Mao Tse-tung quanto na URSS. A União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que existiu de 1922 a 1991 período em que vigorou a Revolução bolchevique de 1917, e transformou a monarquia da Rússia em uma república socialista.
A anistia de 1979
Em síntese, necessário se torna, nesse momento conturbado em que o país perde o rumo por ausência de lideranças políticas autênticas e responsáveis refletir sobre os 46 anos da Lei da Anistia (Lei 6.683, de 1979) – ampla, geral e irrestrita -, sua importância na história recente do Brasil e o papel que ainda desempenha no processo de construção democrática. Discuti-la abertamente e sem reserva foi a proposta de audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos (CDH) na terça-feira, 27 de agosto de 2024. O debate foi requerido pelo presidente do colegiado, senador Paulo Paim (PT-RS), a partir de sugestão de entidades de classe, sindicatos e organizações da sociedade civil que cobram a apuração dos crimes cometidos pelo regime militar contra opositores políticos, assim como a responsabilização de quem os cometeu.
A Lei da Anistia, promulgada em plena ditadura militar, em 1979, teve como objetivo principal conceder perdão aos perseguidos políticos durante o regime autoritário. Com sua aprovação, foram libertados mais de 100 presos políticos, e cerca de 2 mil exilados puderam voltar para o Brasil — explicou Paim. Entre os beneficiados, destacou o senador, estavam personalidades de grande relevância para a história e a cultura brasileira, como o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho; o jornalista Fernando Gabeira, os intelectuais Darcy Ribeiro e Paulo Freire, os governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, o ex-vereador Antônio Losada.
A anistia de Vargas (1945)
A Anistia de 1979, não foi a única concedida no Brasil. A história assim o comprova. Um pouco antes desse período havia beneficiado inimigos abertos da ditadura Vargas, restabelecendo o regime republicano e a democracia no país. No dia 18 de abril de 1945, o decreto-lei da anistia assinado por Getúlio Vargas permitiu a libertação dos últimos 600 presos políticos da ditadura do Estado Novo. A decisão garantia anistia geral para todos os condenados por crimes políticos praticados a partir de 16 de julho de 1934, data da promulgação da Constituição de 1934. Isso implicou na libertação tanto de comunistas, presos desde a Intentona Comunista de 1935, quanto dos camisas verde, encarcerados desde 1938 por conta do Levante Integralista. Entre os libertados, estavam os comunistas que se elegeriam parlamentares, como o senador Luiz Carlos Prestes, os deputados federais Carlos Marighella e Gregório Bezerra e o vereador Agildo Barata, pai do ex-humorista Agildo Ribeiro. Presos há quase dez anos, com exceção de Marighella, detido em 1939. A anistia de 1945 também foi resultado das manifestações democráticas e populares inspiradas na luta contra o autoritarismo.
Getúlio já era presidente quando, com o apoio do comando das Forças Armadas, conduziu o golpe de Estado em novembro de 1937. Com a medida, cancelou as eleições presidenciais, fechou o Congresso, aumentou a repressão, censurou a imprensa e perseguiu a oposição. O ano de 1945 apontava para mudanças. Mas Getúlio Vargas resistia. Nesse contexto, a abertura política era necessária. Assim, o presidente tomou a frente, estabelecendo relações com a União Soviética; pôs fim à censura à imprensa e convocou eleições para dezembro de 1945.
Por seu turno, os “camisas verdes”, constituidos por membros movimento Integralismo Brasileiro, foi uma ideologia política de extrema-direita de caráter nacionalista e fascista, desenvolvida pelo escritor brasileiro Plínio Salgado no início da década de 1930 e que se agregou, a princípio, na Sociedade de Estudos Políticos, e, a partir da publicação do Manifesto de Outubro de 1932, na Ação Integralista Brasileira (AIB). Em seus quase cem anos de história, o Integralismo atravessou diversas fases e ciclos, refletindo as transformações políticas, sociais e culturais do Brasil.
Fundado em 1932 por Plínio Salgado, o movimento inspirou-se nas ideologias fascistas da Europa, adaptando-as ao contexto brasileiro. Durante a década de 1930, o Integralismo ganhou considerável influência, alcançando seu auge em 1937. O movimento adotava como símbolo a letra grega Sigma (Σ), em uma bandeira de fundo azul, e defendia pautas como o nacionalismo, o patriotismo, o espiritualismo, a democracia orgânica corporativista e da civilização cristã.
O Pacto de Moncloa, o acordo que tirou a Espanha da miséria
O Brasil vive um momento crucial de sua história. Infelizmente as notícias não são boas. São muito ruins, na verdade. Fundamentalmente em relação à conjuntura social, política e econômica. Sociólogos e cientistas políticos descrevem este momento marcado por acentuado divisionismo interno, estado de clivagem social, termo empregado nas Ciências Sociais para se referir ao processo de fragmentação ou divisão das classes sociais existentes. Processo que leva a confrontos motivados especialmente por dissensões religiosas, ideológicas, étnicas, sociais, econômicas e culturais.
Independentemente do sentido, o Brasil está de forma tão radicalmente dividido que só uma agenda política de governabilidade, no padrão do espanhol Pacto de Moncloa, poderá aliviar as tensões. E com efeito resolver os mais diversificados e graves problemas que sufocam o país, como a ilegitimidade de alguns setores dos poderes da República, a corrupção desenfreada, o baixo crescimento da economia, a insegurança institucional, o alto índice de desemprego, a violência extremada, a queda no padrão educacional, da saúde pública, da segurança, do transporte, do saneamento básico.
O Pacto de Moncloa (originário do Palácio de la Moncloa, sede do governo espanhol, em Madri, onde foi assinado), refere-se a um marco da redemocratização da Espanha. Pôs fim a um dos mais difíceis momentos da história política nacional que se seguiu à morte do ditador fascista Francisco Franco, em 1975. Integrante do golpe de Estado de julho de 1936 contra o governo da Segunda República, o qual deu início à Guerra Civil Espanhola (1936-1939, Franco, com apoio do nazismo alemão de Hitler e do fascismo italiano de Mussolini, governou com “puños de hierro” o país ibérico entre 1938 e 1973.
A Espanha de então se encontrava com sua economia combalida e tão dividida quanto o Brasil contemporâneo. O pacto de governabilidade, após duras negociações e ameaças de golpe de Estado, foi assinado em 25 de outubro de 1977. Tinha três grandes objetivos: político, o mais importante, econômico e social. Participaram das negociações o governo, todos os partidos políticos criados ou autorizados pelo plebiscito e pela nova constituição, os sindicatos influenciados por comunistas (organizações obreras) e socialistas (a União Geral dos Trabalhadores, a UGT) e a poderosa associação de empresários do país: Confederação Espanhola das Organizações Empresariais, a CEOE. Restaurada a Monarquia parlamentarista e fortalecida a democracia, a Espanha de hoje, com uma renda per capita em torno de US$ 34 mil, é uma das economias mais prósperas da Europa e do mundo, enquanto no Brasil se arrasta ao nível de US$ 2,10 mil.
Indicador que, no lugar de inócuos slogans populistas, deveria estar prioritariamente ocupando a mente dos brasileiros. Não é ocioso lembrar que nosso país, com visão patriótica, boa vontade, discernimento e honestidade política também poderá chegar a tal nível de entendimento e desempenho econômico. Basta, sobretudo, superar o divisionismo, o ódio, a intolerância, permitindo o início de novos tempos de paz, justiça social, equilíbrio fiscal, progresso e crescimento econômico.
O caso Rubens Paiva
Segundo fontes da Agência Senado, corria o ano de 1969 quando Rubens Paiva, deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962, cassado em 1964 pelo primeiro Ato Institucional, se autoexilou. Ao retornar ao Brasil, voltou a exercer a engenharia e cuidar de negócios, mas, na mesma linha de Frei Betto, manteve contato com exilados, na verdade atuavam como pombos correios levando e trazendo mensagens ou sacos de dinheiro para o movimento. Depois de uma visita a Santiago, para ajudar a exilada Helena Bocayuva Cunha, filha de seu amigo Bocayuva Cunha (também deputado cassado após o golpe), que fora implicada no sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick. Algum tempo depois, pessoas que traziam uma carta de Helena endereçada a Rubens foram presas pelos órgãos da repressão política. Os agentes descobriram por meio de informantes que Rubens Paiva, assim como Frei Betto, como relata em seu livro “Batismo de Sangue” e outros frades dominicanos eram na verdade contatos de “Adriano”, codinome de Carlos Alberto Muniz, militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e de Carlos Lamarca, na época o homem mais procurado do país.
Entre o dia de sua prisão (20 de janeiro de 1971,) e o seguinte, Rubens Paiva foi transferido da III Zona Aérea para o Destacamento de Operações Internas (DOI-CODI), no quartel da Polícia do Exército, onde teria sido novamente torturado. No caminho reclamava que não conseguia respirar, mas chegou consciente ao quartel.Foi interrogado e à noite outros prisioneiros ouviram-no pedir água a um carcereiro. De madrugada, o médico do DOI-CODI, Amílcar Lobo, foi chamado ao quartel e encontrou o prisioneiro nu, deitado numa cela no fundo do corredor com os olhos fechados, corpo marcado de pancadas e sinais de hemorragia interna.O médico aconselhou que levassem-no ao hospital, mas o major que lhe acompanhava achou melhor retê-lo. Segundo testemunho de Lobo, Paiva morreu por causa dos ferimentos sofridos em sessões de tortura.
Rubens como tantos outros que partiram para o confronto direto, a guerrilha, pagam o preço dos conflitos armados entre grupos organizados, como estados, governos, sociedades ou grupos paramilitares. Em tais circunstâncias, sem exceção: um lado vence, outro perde; uns morrem, outros sobrevivem.
Fonte dos dados: Agência Senado (2025) e a “História do Brasil”, de Boris Fausto.
Sobre o autor
Osíris M. Araújo da Silva é economista, escritor, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA) e da Associação Comercial do Amazonas (ACA).
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