Sorino Yanomami recebe imagem de José Allamano neste domingo (20), dia em que o padre foi canonizado. Foto: Maria da Silva/Arquivo pessoal
Quem vê Sorino Yanomami hoje em dia, trabalhando na lavoura, plantando, colhendo e até caçando junto com indígenas da comunidade em Catrimani, na Terra Yanomami, não imagina que a sua sobrevivência é resultado do que o Vaticano reconheceu como um ‘milagre’ do padre José Allamano.
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Em fevereiro de 1996, à época com cerca de 40 anos, Sorino foi atacado por uma onça, que lhe arrancou parte da cabeça. Desacreditado pela equipe médica, sobreviveu após ser cuidado por missionárias que pediram sua recuperação em orações ao então padre José Allamano.
Sorino, hoje com cerca de 68 anos (o povo Yanomami não costuma contar idades e anos), vive sem sequelas do ataque.
O Grupo Rede Amazônica, conversou com uma das missionárias que socorreu Sorino após o ataque. A portuguesa Maria da Silva, de 77 anos, estava em Boa Vista e foi responsável por receber e acompanhar Sorino no hospital depois do ataque na comunidade Catrimani.
O indígena não fala português e vive numa região de difícil acesso na Terra Yanomami. Mesmo com as barreiras linguísticas, Maria encontra com Sorino sempre que possível. Ela reencontrou com ele em fevereiro deste ano, 28 anos após o ataque da onça.
“Ele é casado, tem esposa, mas não tem filhos. Mora na maloca comunitária, junto com outros parentes, com a irmã e a cunhada. Eles trabalham com agricultura e sempre cuidaram muito bem da roça. A roça dele era muito bonita. Além disso, também vive da pesca e da caça, mesmo após o acidente”, contou a missionária.
Allamano nasceu em 21 de janeiro de 1851 em Castelnuovo D’Asti, Itália e morreu em fevereiro de 1926. Embora nunca tenha pisado em Roraima, o milagre foi atribuído a José Allamano por conta das preces das missionárias da Consolata – congregação fundada por ele que socorreu o indígena e o transportou para o hospital em Boa Vista.
No dia em que Allamano foi canonizado, Sorino ganhou uma imagem do padre que, por conta da sua cura, agora é santo.
Ataque da onça e ‘milagre’
Sorino caçava na floresta quando se deparou com uma onça que estava com filhotes. O ataque aconteceu por trás, arrancou o couro cabeludo e abriu o crânio do indígena expondo ‘grande parte do cérebro’, segundo testemunhas.
O grupo de caçadores Yanomami tentou socorrê-lo e, devido à gravidade dos ferimentos, pediu ajuda às religiosas que estavam nas proximidades em missão da igreja. Sorino foi socorrido pelas enfermeiras Felicita Muthoni, que é queniana, Maria Silva, e Rosáuria, que faziam parte da congregação de Missionários da Consolata, onde eram conhecidas como Irmãs Missionárias da Consolata.
Felicita notou que Sorino estava com parte da massa cerebral fora da cabeça — desprendida do restante. Ela chegou a lavar a parte que estava para fora e empurrou para dentro da cabeça novamente e enrolou com uma camisa.
“Sorino sempre falou, sempre andou, sempre ficou acordado depois do ataque”, relembra a missionária.
Após os primeiros socorros, as enfermeiras ligaram solicitando ajuda e pedindo para levar o indígena ao hospital em Boa Vista, mas a Terra Yanomami é um local que só pode ser acessado de avião. O veículo foi enviado na tarde daquele dia. Já em Boa Vista, o indígena foi atendido pela equipe médica, que chegou a avaliar não haver chances de sobrevivência sem graves sequelas devido ao dano no cérebro causado pelo ataque. Foi em Boa Vista que Maria da Silva teve contato com a história de Sorino.
Durante todo o processo que começou no ataque da onça e durou três meses até o retorno de Sorino à comunidade as missionárias, incluindo a irmã Maria, oravam e pediam para Allamano que intercedesse pela cura do indígena acreditando que o milagre seria possível.
Sorino foi atacado pela onça no dia 7 de fevereiro de 1996 data que coincidiu com o início da novena dedicada a Allamano pratica católica que consiste em rezar uma série de orações durante nove dias. Para Maria, o milagre começou logo após o ataque, já que Sorino não desmaiou mesmo com parte do cérebro arrancado e teve forças para afugentar a onça.
“Tudo o que vivi nesse milagre é motivo de profunda gratidão. Mesmo com todos dizendo que ele iria morrer, eu sentia uma certeza profunda de que ele sobreviveria. Foi uma experiência de fé muito intensa. Eu rezava todos os dias pedindo pela cura. Quando as pessoas diziam que ele não tinha chance, eu respondia com convicção: ‘Ele não vai morrer!'”, relembrou a missionária em entrevista ao Grupo Rede Amazônica.
Maria da Silva relembra que, no Hospital Geral de Roraima, a cirurgia durou cerca de quatro horas, e ele ficou na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). As irmãs se revezavam para cuidar dele. Durante o dia, uma delas o acompanhava, e, à noite, Maria assumia.
Sorino se alimentava por sonda e, sempre que podia, tentava arrancá-la. Por isso, as irmãs precisaram amarrá-lo para evitar que se machucasse ainda mais.
“Lembro que um dia, ao chegar ao hospital, o mau cheiro da cabeça dele era insuportável. A enfermeira precisou fazer uma limpeza profunda nas feridas. Eu me sentia impotente, vendo tanto sofrimento, mas continuava rezando pela cura dele. Coloquei uma medalha do nosso fundador [Allamano] debaixo do colchão e intensifiquei minhas orações”.
“Os médicos estavam certos de que ele ia morrer e diziam que não havia esperança, mas eu sentia, no fundo do coração, que ele iria sobreviver”, relembra a missionária portuguesa.
Para o médico neurocirurgião Mario Santacruz, que atendeu Sorino, não há explicação científica para esta recuperação do indígena, pois considerando a perda da substância cerebral, “ele teria um déficit muito grande com danos motores, paralisia e problemas intelectuais”.
Reconhecimento do milagre
Embora Allamano tenho sido canonizado no dia 20 deste mês, o milagre da cura de Sorino foi reconhecido pela Diocese de Roraima em 2021 em um processo chamado de “Tribunal da Causa Para Santos”. O processo envolve a coleta de provas, depoimentos de testemunhas e um depoimento de Sorino, juntamente com uma avaliação médica.
Na época, o tribunal que durou nove dias, foi composto por oito membros, incluindo Dom Mário Antônio da Silva, bispo diocesano de Roraima à época; Padre Lúcio Nicoletto, vigário geral da Diocese de Roraima; Padre Raimundo Vantuir Neto, chanceler da Cúria da Diocese de Roraima à época; Padre Michelangelo Piovano, missão da Consolata e notário; Elizabete Sales de Lucena Vida, secretária da Cúria diocesana; e o Dr. Augusto Affonso Botelho Neto, médico.
Após a conclusão das investigações, os documentos foram entregues ao Vaticano para a revisão e assinatura pelo Papa. O Vaticano reconheceu o “Milagre Amazônico” em setembro de 2023.
Sorino atualmente
Sorino hoje em dia é considerado um ancião na comunidade. Não tem filhos mas vive com a esposa. De acordo com Maria, eles não conversam muito pelas barreiras linguísticas mas ele sempre demonstra gratidão e felicidade pelo trabalho das missionárias e pela cura atribuída ao milagre.
“Quando o reencontrei, muitos anos depois, ele estava bem, vivendo sua vida na comunidade. Sorino não fala muito, mas sorri e demonstra gratidão. Certa vez, ele fez questão de mostrar aos outros Yanomami onde havia sido ferido, apontando para a cabeça enquanto contava o que aconteceu e apontando para a imagem de Allamano”.
Canonização de José Allamano
O papa Francisco proclamou 14 novos santos no último domingo 20 de outubro, durante a Missa na Praça de São Pedro. Entre eles, está o italiano José Allamano. Nascido em 21 de janeiro de 1851 em Castelnuovo D’Asti, Itália, foi um notável sacerdote católico que dedicou a vida ao serviço religioso e à expansão do trabalho missionário.
Allamano era reconhecido pelo trabalho missionário e fundou o Instituto Missões Consolata dos padres e irmãos em 1900, seguido pelo Instituto das Irmãs Missionárias da Consolata em 1910. Essas iniciativas expandiram o trabalho para várias regiões africanas e outros países ao redor do mundo como o território Yanomami. Allamano morreu em fevereiro de 1926.
Na apresentação da canonização de José Allamano no sábado 19 de outubro, na sala de imprensa do Vaticano, também estava presente Júlio Ye’kwana, presidente da Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduunme) e líder indígena do território Yanomami em Roraima.
Missão na Terra Yanomami
A Missão Catrimani com os missionários de Consolata na Terra Yanomami, que leva o nome do rio brasileiro ao oeste do estado de Roraima, foi criada pelo Concílio Vaticano II durante a década de 1960.
O bispo de Roraima e presidente da rede Eclesial Pan-Amazônica, dom Evaristo Spengler que está em Roma para acompanhar a canonização de Allamano destacou a importância da missão na crise sanitária vivida pelos Yanomami causada pela invasão do garimpo ilegal.
“Especificamente na Terra Yanomami, a missão não é de anúncio explícito do evangelho. Foi criada para o diálogo, valorização da cultura e do respeito à forma religiosa que o povo indígena vive, sem fazer proselitismo”, afirmou.
*Por Caíque Rodrigues, da Rede Amazônica RR