Saiba quem foi Noel Nutels, o médico que lutou pelos indígenas na Amazônia Legal

Nutels foi um importante personagem da saúde pública brasileira cujo trabalho acadêmico e médico foi de extrema relevância para a sobrevivência de milhares de indígenas e é referência até hoje.

A partir da década de 70, com políticas expansionistas, os povos originários passaram a organizar seus próprios movimentos sociais. Passaram a dispensar porta-vozes e lutar para defender seus direitos.

Mas nem sempre foi assim. Desde a colonização nunca tiveram direitos garantidos pelos poderes da época. Só em meados do século XX algumas figuras importantes passaram a defender a causa indígenas. Um destes foi Noel Nutels.

Ele foi um personagem da saúde pública brasileira cujo trabalho acadêmico e médico foi de extrema relevância para a sobrevivência de milhares de indígenas e é referência até hoje, sendo homenageado, inclusive, como nome de uma das ruas mais famosas de Manaus (AM).

Foto: Reprodução/Fiocruz

Um imigrante 

Diferente do que muitos podem imaginar, Noel Nutels não era da Amazônia e nem sequer do Brasil. De família judaica, nasceu na cidade de Ananiev (na época Ucrânia, hoje Rússia) em abril de 1913. Expulso por perseguições à sua etnia, sua família se mudou para o Brasil em 1920.

De acordo com registros do Centro Cultural do Ministério da Saúde (CCMS):

“Sua família mudou-se para o Recife (PE) e pouco depois, para o interior de Alagoas (na cidade de São José da Laje), onde o futuro médico concluiu o ensino básico. Voltou para Pernambuco, em Garanhuns, para concluir sua formação escolar em um colégio católico e formou-se em Medicina em 1936, na Faculdade de Medicina do Recife, onde especializou-se em tuberculose, uma das doenças que mais vitimaram pessoas pobres no Brasil nesse período”.

Ida para a capital brasileira e imersão na Amazônia

Após formado, mudou-se para a então capital brasileira, Rio de Janeiro e, diferentemente de outros europeus que vinham para a América do Sul com o desejo de fazer fortunas, Noel Nutels tinha o sonho de trabalhar com saúde pública. Após algumas questões burocráticas (não era naturalizado brasileiro) que finalmente começa sua jornada pela Amazônia.

Em 1943, Nutels ingressou na Fundação Brasil Central (FBC), criada pelo então presidente Getúlio Vargas para desbravar os ‘interiores do Brasil’, da Serra do Roncador, Mato Grosso, ao rio Xingu, que se estende do Mato Grosso ao Pará, pertencentes à Amazônia Legal.

Foto: Acervo/Fiocruz

A expedição Roncador-Xingu abriu 1.500 quilômetros de trilhas, construiu 19 campos de pouso, instalou três bases operacionais e fixou mais de 40 núcleos de povoamento. Da expedição resultou, em 1946, a criação do Parque Indígena do Xingu, que foi oficializada em 1961.

Contato com os  povos indígenas 

Devido ao contato dos indígenas com a figura do ‘homem branco’ antes dessas idas, muitos deles ficaram debilitados por epidemia e pela alta mortalidade infantil. Médico da expedição, Nutels, impactado pela experiência, especializou-se na luta contra a tuberculose.

Foi assim que ele entrou no Serviço Natural de Tuberculose (SNT), do Ministério da Saúde e incentivou a criação de um serviço aéreo de atendimento médico às populações de territórios indígenas e áreas remotas da Amazônia Legal.

Foto: Reprodução/Fiocruz

A partir daí, nasceu, em 1956, o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA). O órgão era extremamente importante para saúde indígena e rural, pois realizava:

– levantamentos cadastrais;

– testes tuberculínicos;

– raio-x;

– campanhas de vacinação;

– extração de dentes;

– campanhas educativas e profilaxia de doenças.

Nutels foi diretor do SUSA até seu falecimento, em 1973. 

Educação Sanitária 

Em relação à campanhas educativas, Noel Nutels se destacou com os povos indígenas porque adotou abordagens lúdicas. Ao invés de tentar impor as pessoas em nome da ciência ou até mesmo do governo, ele buscava uma linguagem acessível a todos.

O médico chegou a financiar a edição de um livreto de cordel intitulado ‘A fera invisível ou o triste fim de uma trapezista que sofria do pulmão’, escrito pelo pernambucano João José da Silva. 

O autor recebeu do próprio médico instruções sobre a doença, que acometia principalmente os mais pobres. O cordel era acompanhado de shows de música para atrair a população. 

Médico cinegrafista

Além de médico e indigenista, ele também gostava de registrar as expedições. Grande parte delas foi filmada por ele em 34 filmes de 16 mm.

O material bruto, doado por sua filha à Cinemateca Brasileira, desde a década de 1990 está disponível para consulta no Departamento de Arquivo e Documentação da Casa Oswaldo Cruz (DAD/COC).  

Foto: Reprodução/Arquivo Nacional

No arquivo da COC também está preservado o único registro em áudio da voz de Nutels, transcrito pelos pesquisadores do departamento. É depoimento dele à Câmara dos Deputados em Brasília, durante a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos indígenas, em dezembro de 1968. Em um trecho ele questionava:

“A essa hora alguém está matando um índio. É a cobiça da terra, é a cobiça do subsolo, é a cobiça das riquezas naturais. É um vício de estrutura econômica. Enquanto terra for mercadoria e objeto de especulação vai se matar índio. A quem interessa o crime?”

Após sua morte, ganhou várias homenagens, dentre elas um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Entre Noel e os índios”. Confira: 


Após sua morte, ganhou várias homenagens, dentre elas um poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado “Entre Noel e os índios”. Confira:

Em Vila Rosali Noel Nutels repousa
do desamor alheio aos índios
e de seu próprio amor maior aos índios.
Como se os bastos bigodes perguntassem:

Valeu a pena?
Valeu a pena gritar em várias línguas
e conferências e entrevistas e países
que a civilização às vezes é assassina?
Valeu, valeu a pena
criar unidades sanitárias aéreas
para salvar os remanescentes
das vítimas de posseiros, madeireiros, traficantes
burocratas et reliqua,
que tiram a felicidade aos simples
e em troca lhes atiram de presente
o samburá de espelhos, canivetes,
tuberculose e sífilis?
Noel baixa de helicóptero
e vê a fome à beira d’agua trêmula de peixes.
Homens esquecidos do arco-e-flecha
deixam-se consumir em nome
da integração que desintegra
a raiz do ser e do viver.

“Vocês têm obrigação de usar calça
camisa paletó sapato e lenço,
enquanto no Leblon nos despedimos
de toda convenção, e viva a natureza…”
Noel, tu o disseste:
A civilização que sacrifica
povos e culturas antiquíssimas
é uma farsa amoral.

O Parque maravilha do Xingu
rasgado e oferecido
ao galope das máquinas,
não o quiseste assim e protestante
como se fosse coisa tua, e era
pois onde um único índio cisma
e acende fogo e dança a dança
milenar extra-Conservatório
e desenha seu momento de existir
longe da Bolsa, da favela e do napalm,
aí estavas tu, teu riso companheiro,
teus medicamentos,
tua branca alegria de viver
a vida universal.

Valeu? Valeu a pena
teu cerne ucraniano
fundir-se em meiga argila brasileira
para melhor sentires
o primitivo apelo da terra
moldura natural de homens xavantes
e kreen-akarores
lar aberto de bororos
carajás e kaingangs
hoje tão infelizes
pela compulsão da felicidade programada.

Valeu, Noel, a pena
seguir a traça de Rondon
e de Nimuendaju,
mãos dadas com Orlando e Claudio Vilas-Boas
sob o olhar de Darcy Ribeiro,
e voar e baixar e assistir e prover
e alertar e verberar
para que fique ao menos no espaço
este signo de amor compreensivo e ardente
que foi a tua vida sertaneja,
a tua vida iluminada,
e tua generosa decepção.

Carlos Drummond de Andrade.

Assim, com todo esse peso histórico, seu nome homenageia uma avenida na Zona Norte da capital amazonense, no bairro Cidade Nova.

*Com informações do Centro Cultural do Ministério da Saúde

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