Foto: Luiza Amâncio/UFPA
Na manhã do segundo domingo de outubro, Belém do Pará acorda em estado de comunhão. Milhares de pessoas, de pés descalços e dispostas a cumprir promessas durante quilômetros, se aglomeram nas ruas. No ar, cheiro de vela e miriti. Um mar de mãos erguidas acompanha a berlinda que conduz a imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Nesse instante, a cidade inteira parece se inclinar para um único ponto: a Basílica Santuário, destino e origem do Círio.
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Para o arquiteto e pesquisador Wagner José Ferreira da Costa, autor da tese ‘A Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré: geração, vivificação e retroalimentação das dimensões material e festiva do bairro de Nazaré em Belém do Pará‘, que dedicou mais de dez anos de vida acadêmica ao estudo desse templo, não se trata apenas de uma igreja.
A Basílica é um organismo vivo, uma árvore cujas raízes se entrelaçam no imaginário coletivo e cujas copas se estendem pelas ruas, capelas e instituições do bairro Nazaré. Um rizoma da fé que conecta, torna vívido e retroalimenta a vida material e festiva da cidade.
“Eu sempre tive essa ideia de entender a Basílica como um livro, mas também como uma árvore. Ela é um ente que gera e regenera, que se conecta a outros espaços e pessoas. É raiz e é copa. É material e é espiritual. Meu trabalho foi tentar mostrar como isso se dá de forma concreta em Belém”, explica Wagner.
A vida de um pesquisador enraizada no sagrado
A trajetória do pesquisador ajuda a compreender a sensibilidade que o levou a mergulhar tão fundo nesse objeto de pesquisa. Nascido em Marituba, cresceu próximo aos rios, às matas e à religiosidade popular amazônida.
“Venho de uma família católica, mas sempre flertei com outras tradições, com o misticismo, com a psicologia e com a antropologia. Essas influências me ajudaram a olhar para a Basílica não apenas como arquiteto, mas também como alguém interessado nos símbolos e na alma do lugar”, conta.
Desde a graduação na UFPA, sua relação com a Basílica foi se fortalecendo, e foi no doutorado que a Basílica se consolidou como centro simbólico e afetivo. “Eu diria que esse templo me escolheu. Não foi só uma escolha racional. A Basílica estava sempre ali, me chamando, me desafiando”, revelou.
Assim, na tese, defendida em 2024, o arquiteto elaborou a metáfora que se tornou marca de sua pesquisa: a Basílica-arborizante. Ele a compara a uma árvore que nasce de uma semente (o imaginário mariano da Virgem), cresce em tronco (Primeira Ermida e Atual Basílica ) e se abre em copa, conectando-se a outros espaços.
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Mas diferente de uma árvore isolada, essa faz rizomas — conceito de Gilles Deleuze e Félix Guattari que se opõe a ideias fixas e hierárquicas (como uma árvore com raízes) e representa uma rede flexível, sem centro, onde tudo pode se conectar a tudo — e se expande. Em resumo, enquanto árvores são sistemas rígidos e hierárquicos, os rizomas são modelos abertos e adaptáveis que atravessam o bairro, conectando-se a outras capelas, instituições e práticas festivas.
“O bairro Nazaré não pode ser entendido sem a Basílica. Ela é raiz de pertencimento e força de identidade. É o coração que pulsa, mas também as veias que irrigam”, escreveu o pesquisador. E, segundo ele, essas conexões ficam visíveis durante o Círio. As ruas se iluminam, os prédios se enfeitam e arcos se erguem em homenagem a Santa. Cada gesto urbano é um galho dessa árvore simbólica.
“O templo não é só o prédio. É também o entorno, as manifestações, os gestos que acontecem a partir dele. É um sistema arbóreo-rizomático que mantém a cidade unida”, defende Wagner.
O pesquisador destaca, também, o papel de instituições vizinhas, como o Colégio Gentil Bittencourt, que, por exemplo, guarda memórias de gerações que viveram a festa como rito de passagem e, ainda hoje, realiza uma missa que antecede a Trasladação, que é o cortejo de Nossa Senhora até a Igreja da Sé, no sábado antes do Círio. “Esses lugares são raízes secundárias, são outros ‘pontos’ no bairro Nazaré. Todos respondem ao influxo da Basílica”, explica.
Mais que documentos e livros, a pesquisa foi feita de imersão. Wagner participou de quatro Círios consecutivos (2020 a 2023), atuou na Pastoral do Turismo, guiou visitantes estrangeiros em português, inglês e até japonês. Levou fiéis do mundo inteiro a conhecer o templo, enquanto observava como cada gesto, cada olhar, revelava novas dimensões do sagrado. E, até a pandemia de covid-19, que interrompeu cortejos e silenciou ruas, trouxe outro tipo de revelação.
“Nem mesmo o coronavírus foi capaz de derrubar a força arborizante da Basílica”, escreveu Wagner. Para ele, o templo permaneceu como referência simbólica mesmo quando as procissões não puderam acontecer. Casas continuaram enfeitadas, velas continuaram sendo acesas em silêncio, orações foram transmitidas por telas. O rizoma da fé resistiu.
Mito vivo
Tema central da pesquisa, o Círio é definido por Wagner como mito vivo ao explicar a origem, ao mesmo tempo que se atualiza. “O Círio é mito porque nos conta a história de Nossa Senhora de Nazaré, mas é vivo porque acontece todo ano, sempre igual e sempre diferente. Ele se reinventa sem perder sua essência”, afirma o pesquisador.
Para ele, acompanhar o Círio não é apenas observar um evento religioso, é perceber como a cidade inteira se reorganiza em função dele. O trânsito se altera, os comércios mudam horários, famílias se preparam com meses de antecedência. “É como se Belém inteira fosse atravessada pela corda do Círio. Todos estão conectados a esse mito vivo”, comenta.
Um rizoma que resiste
Ao final, a tese reafirma: a Basílica é um ente essencial. “Primeiro se instalou o imaginário da Santa, depois suas ermidas e a matriz, e então a Basílica. A partir daí, surgiram ambiências festivas, identitárias e afetivas que moldaram o bairro e a cidade. Esse ente arbóreo estende suas raízes e copas para além de sua redoma, arquetipando um verdadeiro sistema Arbóreo-Rizomático”, escreve.
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Essa árvore simbólica não deixa de crescer. Todos os anos, em outubro, novos galhos se abrem, novas gerações são incorporadas, novas promessas se amarram à corda do Círio. O rizoma da fé continua a se expandir, sustentado por raízes profundas que mantêm Belém fincada em sua tradição, mas aberta à renovação constante da vida e da festa.
A tese ‘A Basílica Santuário de Nossa Senhora de Nazaré: geração, vivificação e retroalimentação das dimensões material e festiva do bairro de Nazaré em Belém do Pará‘ foi defendida por Wagner José Ferreira da Costa, em 2024, no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU/ITEC), da Universidade Federal do Pará, sob orientação da professora Cybelle Salvador Miranda.
*Com informações da UFPA
