Primeira escola de Roraima completa 100 anos de tradição e tem até histórias de fantasmas

Criada em março de 1924, a Escola Estadual São José já foi administrada pela Igreja Católica, atendia apenas meninas e foi sala até de personalidades.

A escola São José, patrimônio histórico de Roraima, completa 100 anos. Foto: Samantha Rufino/g1 Roraima

Comer achocolatado com bolacha, brincar no escorregador do parquinho, tirar dez ou zero no boletim e até ver aparições fantasmas pelos corredores. Muitos foram os momentos que marcaram gerações de estudantes da Escola Estadual São José, a primeira de Roraima, que completa um século de histórias em 19 de março de 2024.

Criada em 1924, a São José é a primeira e única escola centenária do Estado. Instituições antigas como as escolas estaduais públicas Lobo D’ Almada, fundada em 1945, Oswaldo Cruz, de 1949 e o Ginásio Euclides da Cunha, fundado em 1950, “só” possuem 79, 75 e 74 anos, respectivamente, e completam centenário daqui cerca de três décadas.

Mais do que um centenário, a escola São José celebra a contribuição que trouxe para a educação dos roraimenses e a história do estado. Com 247 alunos, entre meninos e meninas, ela ainda possui os ladrilhos originais da época em que foi construída e os móveis usados pelos primeiros professores.

Uniformes comemorativos dos 100 anos da Escola Estadual São José. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

Para celebrar os 100 anos, a escola confeccionou um uniforme comemorativo. Dois Lírios, conhecidos no catolicismo como flores de São José, formam o brasão da instituição, que tem as iniciais “SJ” no meio.

A Rede Amazônica visitou a instituição, que é patrimônio de Boa Vista, e conversou com funcionários e ex-alunos que falaram sobre a relação com a escola e o impacto dela na Educação roraimense.

Primeiro prédio: Casa Brasil

As primeiras aulas da escola São José iniciaram em 1922, cerca de seis anos antes da fundação oficial, sob a direção das madres Beneditinas, a mais antiga Ordem da Igreja Católica. Inicialmente, a instituição se chamava “Escola da Prelazia” e era voltada exclusivamente para meninas.

As aulas aconteciam na casa da família de Bento Brasil, coronel que comandava a região de Roraima na época do império português, localizada na rua Barreto Leite, no Centro da capital. A residência foi a segunda construída em alvenaria em Boa Vista e, atualmente, é a mais antiga ainda de pé.

Vista da frente da Casa Petita Brasil. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

De acordo com neta de Bento Brasil e ex-aluna da instituição, a professora aposentada de Artes Petita Brasil, de 77 anos, o coronel e a esposa dele, Luiza Mesquita, abrigaram as madres assim que elas chegaram ao estado, em 1922.

As religiosas foram encarregadas de fazer as atividades educacionais na cidade e, até 1942, cerca de mil alunas passaram pela escola administrada por elas. Anexo à instituição, funcionavam cursos de bordados, corte e costura para jovens e mulheres adultas, de acordo com arquivos da Diocese de Roraima.

“As madres beneditinas e também os padres beneditinos, eram pessoas de uma cultura muito elevada, visionárias, médicos, professoras, que viram necessidade de ter uma educação mais aprimorada. Então, as madres fundaram o Colégio São José nesta residência”, explicou Petita.

O prédio oficial só foi construído em 1924, com ajuda do monge beneditino e 2º Bispo da Diocese de Roraima, Dom Pedro Eggerath. Em 1940, a escola foi registrada na Secretaria de Educação de Boa Vista e recebeu o nome de “Curso Primário São José”, em homenagem ao santo São José, o santo do silêncio.

Com a mudança, o colégio ficou sob responsabilidade da Missão Consolata, presente no estado até hoje.



Atual quadra de esportes da escola fica onde era o primeiro prédio.
Foto 1: Reprodução/Acervo Patrimônio Histórico de Roraima — Foto 2: Samantha Rufino/g1 Roraima

Patrimônio histórico, venda e revitalização

Mas o prédio atual só foi construído 26 anos depois da fundação do colégio e dez anos depois da escola ser registrada, em 1950, pelo bispo e missionário da Consolata Dom José Nepote. Nessa época, ela recebeu o nome de “Escola de 1° Grau São José”. Em 1924, a escola ficava onde hoje é a quadra de esportes.

Foi nesse período que Petita Brasil estudou no colégio. Ela conta que, durante cinco anos, era “muito peralta” e chegou a ficar de castigo por escorregar em locais proibidos e até por passar mais tempo do que o necessário na escola.

“Eu levava muito puxão de orelha da madre Juliana, que era a superior. Mas, a professora que me marcou e que até hoje tenho uma lembrança muito forte é a professora de português, chama-se Maria Habib Caetano. [Lembro] quando ela assinou o meu diploma de conclusão do curso primário em 1958”, 

contou.

Petita Brasl, ex-aluna do São José, com seus boletins de notas do primeiro grau. Foto: João Gabriel Leitão/g1 Roraima

Cerca de 66 anos depois de sua criação oficial, em 1990, a escola foi tombada como patrimônio histórico da cidade de Boa Vista, por meio da lei N° 232 de 10 de setembro do mesmo ano. Três anos depois, um decreto de 16 de abril de 1993, durante o Projeto Raízes, também a tornou patrimônio.

Em 1999, a escola pública foi comprada pelo Governo de Roraima e, com isso, desvinculada da Igreja Católica, passando a ser responsabilidade do estado. Com a compra, a instituição ganhou o nome atual: Escola Estadual de Ensino Fundamental São José.

A escola passou por reformas em 2015, mas permaneceu com a estrutura original. Agora, no dia em que é celebrado o santo São José, que dá nome a escola, a instituição completa 100 anos de funcionamento.

Os ladrilhos no chão ainda são da época em que o colégio foi construído e seguem preservados. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

Para a professora do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e doutoranda em estudos de linguagens, Jamile Rossetti, o centenário da representa a legitimação da relevância que a escola tem para a sociedade boavistense.

“Um centenário é sempre emblemático. Em linhas gerais celebra a relevância social e cultural de uma instituição […] se tratando de um espaço educacional, é emblemático no nosso estado. Isso porque a não manutenção de escolas estaduais ao longo do tempo é mais a regra do que a exceção, vide as escolas 31 de março, Ayrton Senna, dentre outras”,

disse.

Atualmente, a escola possui 76 funcionários. Desses, 35 são professores que atendem alunos matriculados em turmas do 6° ao 9° ano do ensino fundamental.

Ao todo, são 10 salas de aula que atendem cinco turmas de 6° e 7° ano pela parte da manhã e cinco turmas de 8°e 9° no período vespertino, distribuídas em dois andares. A coordenação pedagógica, secretaria, a sala dos professores, sala multifuncional, orientação educacional e a sala de informática ocupam mais seis salas.

No segundo andar há mais dois cômodos: auditório e biblioteca, que só possui alguns livros didáticos. Segundo a gestora Ana Paula Bezerra, parte do acervo de pesquisa que pertencia à biblioteca, fotos e documentos antigos da instituição foram perdidos durante uma chuva. A escola já tem um projeto para recuperar o acervo e deve montar uma sala de leitura.

Móveis antigos dividem espaço com móveis modernos na escola. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

Nas salas as estantes modernas de ferro dividem espaço com móveis antigos de madeira, usados nos primeiros anos de funcionamento do colégio. Na entrada do colégio, que é cercado por árvores, ainda existe uma placa do período em que Roraima era território federal do Rio Branco, criado em 1943.

‘Tempo de muita saudade’ 

A instituição foi o local de estudos de diversas personalidades roraimenses, como o jogador de futebol Thiago Maia, o defensor-geral do Estado Oleno Matos, e a “guardiã” da casa mais antiga da cidade ainda de pé, Petita Brasil.

Leia também: Conheça Petita Brasil, a “guardiã da história de Boa Vista”

Oleno Matos estudou na escola durante os anos de 1982 a 1987. Ele relembra com saudosismo os momentos do recreio na escola, quando ele e os amigos jogavam futebol com mangas que caiam das mangueiras centenárias próximas à quadra, e também os concursos de bandas de rock que participava.



Antes e depois da fachada da escola São José.
Foto 1: Reprodução/Acervo Escola São José — Foto 2: Rayane Lima/g1 Roraima

“Eu tenho duas fases do recreio: a fase que a gente não tinha acesso a quadra porque éramos pequenos e os grandes não deixavam, e a gente tinha que jogar bola com manga na área que ficava mesa de ping-pong. E a outra fase, quando nós já éramos os maiores, então a gente já jogava os jogos escolares e participávamos efetivamente das atividades da escola”, explicou.

Oleno participava de todas as atividades extracurriculares da escola, como aula de teatro, artes e dos jogos escolares, representando nas competições de basquete, handebol e vôlei. Para ele, os eventos foram divertidos, mas o que causa mais saudade é o lanche que era servido aos alunos.

“Sinto mais saudade da hora da merenda, o achocolatado com bolacha, macarrão com sardinha delicioso. Tinha até mungunzá, mas eu não gostava. A gente não podia repetir e tinha uma tia que ficava vigiando a gente para não repetir”, lembrou ele.

Mangueiras centenárias no pátio da escola. Foto: Samantha Rufino/g1 Roraima

Ele acredita que mesmo depois de 100 anos a escola ainda mantém os padrões de ensino e garante que muitas pessoas sejam capacitadas.

“Ela é uma escola centenária e ainda mantém os padrões. Acredito que de lá ainda sairão muitas cabeças pensantes para o nosso estado, muitas pessoas que vão exercer vários cargos importantes como eu exerci e exerço. Então, assim, eu fico muito feliz”, disse Oleno.

Mas o defensor não era o único a jogar bola na quadra da escola. Diferente dele, com uma bola de futebol de verdade, o campeão da libertadores pelo Flamengo em 2022 e atual jogador do Internacional, o roraimense Thiago Maia também estudou na São José e “ensaiou” alguns gols no local antes de se tornar um atleta profissional.

Thiago Maia e os amigos durante uma partida de futebol na quadra da escola. Foto: Arquivo Pessoal

Em janeiro deste ano, quando estava de férias em Roraima, Thiago Maia visitou a escola. Para relembrar a época de criança, jogou uma partida de futebol com amigos na quadra da São José. Em um vídeo enviado ao g1, ele parabenizou a escola pelos 100 anos e afirmou que foi feliz enquanto estudava no local.

“Fui muito feliz, muito educado. Estou aqui para parabenizar a escola e todos que estão trabalhando nela hoje, todos que estudam, todos que trabalharam e, assim como eu, todos que estudaram. Um beijo no coração de todos vocês”,

desejou.

Passado e presente: aluna se tornou diretora

Ana Paula Bezerra, ex-aluna e atual gestora do São José. Foto: Rayane Lima/ g1 Roraima

Gestora da escola desde dezembro do ano passado, Ana Paula Bezerra é ex-aluna da instituição e frequentou o local durante três anos, de 1981 a 1984, quando cursou o ensino fundamental I. Para ela, administrar a escola da qual foi aluna é gratificante, “um conjunto de elementos”.

“É gratificante. Você passou uma história da sua vida ali e tá passando outra atualmente. Hoje eu estou como gestora da Escola São José, uma escola tradicional, histórica, a primeira escola fundada no município de Boa Vista. Ao assumir essa gestão a gente se sente orgulhosa de estar presente e, principalmente, esse ano no centenário”, afirma Ana Paula Bezerra.

Neida trabalha no colégio São José desde 1990. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

Funcionária do colégio há quase 35 anos, a pedagoga Neida de Oliveira, de 75 anos, afirma que o destino quis que ela trabalhasse no local. Ela estava no prédio da Secretaria Estadual de Educação e tentava conseguir uma vaga de emprego por meio do local quando foi chamada para trabalhar na escola.

“Eu fui até a secretaria [de educação] e fiquei lá, sentada. Uma secretária passou por mim, me olhou e disse: ‘Neida, o que você tá fazendo aqui?’, e eu disse: ‘estou esperando uma escola para trabalhar, não quero uma muito longe’. Eu tinha um filho pequeno, não podia ir para muito longe [de casa]. Nisso, o telefone tocou e era da Escola São José, parecia que eu tinha que vir mesmo para cá e até hoje estou aqui, com muito prazer e muita alegria”, disse.

Com mais de 30 anos na instituição, Neida acompanhou alunos do primeiro ao segundo ano e ajudou a formar policiais, doutores, enfermeiros e vários outros profissionais, que a reconhecem em vários locais da cidade.

“Ao final do ano eu olhava para aquelas criancinhas com o sentimento de dever cumprido, porque eu pegava eles no primeiro ano e seguia até o segundo com eles […] e eu trabalhava muito com material com tampa de garrafa pet, borracha, fazia joguinhos, colocava os números com muito prazer. Eu ficava muito feliz e os pais, eu acho, que também gostavam muito de mim”, contou.

Espaço de acolhimento

Além de uma grande sala de aula, a escola também foi um espaço de acolhimento e de construção de amizades para alguns alunos. O médico oftalmologista e ex-vereador de Boa Vista, Marcelo Batista, estudou na escola por apenas dois anos, mas teve tempo de fazer muitos amigos, com quem se reúne todos os anos.

“A gente sempre criou um vínculo muito forte, porque estávamos o tempo junto. Nós nunca perdemos [o contato] e, com a tecnologia, a gente mantém contato diariamente no grupo da nossa turma” contou o médico.

Médico oftalmologista Marcelo Batista com os amigos da turma de 1989. Foto: Arquivo Pessoal

Para ele, as memórias mais marcantes também são as mais simples: quando saia da escola e se sentava na escadaria da Casa Bandeirante, uma das construções históricas de Boa Vista, e aguardava os pais chegarem enquanto conversava com os amigos.

“Sem querer ser muito saudosista, mas já sendo, esse é o tempo que não volta. Mas, é o tempo que traz muita saudade e muita coisa boa”, 

diz Marcelo.

‘Cuidado, aqui tem visagem’

Assim como as escolas cercadas pelas lendas urbanas que vão desde a famosa Loira do Banheiro até a Maria Sangrenta, a escola São José também tem suas histórias sobrenaturais — daquelas que todos sabem que existem, mas que ninguém quer ver.

Durante os primeiros anos de funcionamento, os alunos eram proibidos de ir até a Casa das Madres, onde as responsáveis pela instituição ficavam. Por isso, a curiosidade dos estudantes criou a lenda de que o colégio possui “visagens”, às aparições fantasmagóricas, assombrações, espíritos.

Fachada da Escola Estadual São José. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

O defensor Oleno conta que lendas sobre assombração sempre existiram e que, durante a época que estudou na escola, ele e os amigos sempre tiveram curiosidade de saber o que se passava na Casa das Madres.

“Havia uma proteção muito grande para gente não entrar lá e sabíamos que do outro lado funcionava uma espécie de hospital. Era proibido entrar lá e a gente até tentou algumas vezes para saber mesmo o que tinha, mas eu confesso que a gente saiu da escola e ficou aquela lenda, de que tinha visagem, alma, sempre teve”, explica o defensor.

Ana Paula lembra que na época dela também haviam rumores de assombrações e que até hoje muita gente se assusta pelos corredores da escola pública.

“Assim que eu cheguei por aqui, o pessoal falava: ‘professora, cuidado, porque aqui tem visagem’. Os funcionários mesmo diziam: ‘eu vi uma mulher ainda agorinha’, e eu dizia: ‘quem é? Deixa ela visitar a escola, né?’. Então, realmente, tem essa questão de que as pessoas vêm as coisas, as vezes as freiras. Eu nunca cheguei a ver, mas ninguém inventa do nada certas situações”, 

contou.

Pátio onde os alunos ficam durante o intervalo. Foto: Rayane Lima/g1 Roraima

Petita Brasil acredita que as lendas sobre a escola não passam de invenções. Ela afirma que nunca viu e nem sentiu nada nos anos em que estou na escola.

“Eu acho marmota, com todo respeito, eu não me lembro disso. Eu me lembro que nós éramos proibidos de entrar dentro das casa das madres, mas por ser muito danada eu até cheguei a ir na cozinha e aprendi a fazer broa de milho. Com relação a visagem, eu nunca vi e olha que eu sou boa de ver e de sentir essas coisas”, garantiu a ex-aluna.

*Por Rayane Lima e João Gabriel Leitão, sob supervisão e edição de Yara Ramalho, do g1 Roraima 

Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Imagem de microalga encontrada no Pará vence prêmio nacional de ilustração científica

Produzida no Laboratório de Microscopia Eletrônica de Varredura do Museu Goeldi, a imagem vencedora é resultado do primeiro levantamento das comunidades de algas microscópicas da Ilha de Cotijuba.

Leia também

Publicidade