Um patrimônio ao qual milhões de brasileiros, há inúmeras gerações, devem literalmente a vida. Esse foi um dos temas centrais durante o segundo dia da 104ª Reunião do Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no dia 9 de maio, quando o grupo reconheceu o “Ofício, Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil” como Patrimônio Cultural do País.
Após aprovação unânime dos conselheiros presentes à reunião, o Instituto deve proceder com a inscrição do novo patrimônio no Livro de Registro dos Saberes, ao lado de outros bens culturais imateriais já patrimonializados, como o Ofício das Baianas de Acarajé, os Modos de Fazer o Queijo Minas Artesanal ou o Sistema Agrícola Tradicional das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira.
Ao contrário dessas manifestações características de regiões específicas do País, porém, os Saberes e Práticas das Parteiras Tradicionais do Brasil correspondem a uma realidade presente em todo o território nacional. Compõem um repertório transmitido de geração a geração, mas que não deixa de se atualizar, mesclando conhecimentos tradicionais e religiosos com conhecimentos biomédicos, pelas mãos de mulheres que dão continuidade a uma história ancestral, mas ainda viva e fundamental – sobretudo em zonas rurais ou urbanas periféricas e entre grupos da população historicamente desassistidos pelo Estado, como quilombolas e comunidades indígenas.
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Atuação além do parto
Em dossiê produzido por pesquisadores do Iphan e da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 2021, para instrução do processo de registro do bem como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, as parteiras tradicionais são descritas como “mestras do ofício do partejar, detentoras de um repertório de saberes e práticas acerca de todas as etapas da gestação (pré-natal, parto e pós-parto)”. Limitar seu papel à assistência no nascimento de crianças, portanto, seria reducionista.
Segundo o documento, as parteiras atuam com uma ideia de atendimento contínuo, integral e holístico, que cobre “processos fitoterapêuticos, prescrições alimentares preventivas e curativas, mediação religiosa e regimes de conduta social”. Mas – e isso é o mais importante – remédios, banhos, chás, garrafadas, rezas e conselhos não são direcionados apenas às gestantes, puérperas e crianças, como também a outros membros da comunidade.
As parteiras atuam com uma ideia de atendimento contínuo, integral e holístico, que cobre “processos fitoterapêuticos, prescrições alimentares preventivas e curativas, mediação religiosa e regimes de conduta social”.
Nesse sentido, explica a coordenadora de Registro e Revalidação do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Iphan, Marina Lacerda, “muitas vezes as parteiras se tornam verdadeiras lideranças comunitárias, cuja palavra carrega peso e autoridade”.
É nesse aspecto, diz ela, que reside o maior valor das parteiras como representantes de uma expressão cultural que merece reconhecimento do Estado. Mais até do que em sua atuação como agentes efetivas de saúde pública – que, na década anterior, havia sido uma das razões para o Iphan indeferir um primeiro pedido de registro do bem como Patrimônio Cultural do Brasil.
Interface com a saúde pública
O pedido original havia sido encaminhado à Superintendência do Iphan em Pernambuco, em 2011, por quatro instituições da sociedade civil ligadas ao segmento: Instituto Nômades, Grupo Curumim, Associação das Parteiras Tradicionais de Caruaru e Associação das Parteiras Tradicionais e Hospitalares de Jaboatão dos Guararapes. Contudo, a Câmara do Patrimônio Imaterial do Iphan deliberou que, “tendo em vista a grande interface com a área da saúde pública e as práticas médicas, considerou-se que o registro não é o instrumento mais adequado para salvaguardar essa prática e esses saberes”.
“À época, levantou-se a questão de possíveis conflitos do saber das parteiras com o saber médico”, diz Marina Lacerda.
Em 2015, motivado por novo pedido de registro feito pela então deputada federal amapaense Janete Capiberibe, o DPI reconsiderou a questão, entendendo que os valores patrimoniais representados pelas parteiras tradicionais não estão no campo da saúde pública, mas no “sistema de valores, visão de mundo e práticas culturais dessas comunidades brasileiras tão disseminadas por todo o território nacional”.
Segundo a nova argumentação, caberia ao Iphan “se ater [às] características culturais e de eficácia simbólica” do trabalho das parteiras, o que terminou por convencer a Câmara do Patrimônio Imaterial quanto à pertinência do processo de registro do bem, que seguiu para a fase de instrução técnica (pesquisas e elaboração de dossiês).
Reparação histórica
Mesmo em termos puramente sanitários, porém, o fato é que o ofício das parteiras tem sido cada vez mais valorizado por instituições e órgãos oficiais de saúde, nos últimos anos, por sua relevância real – e não apenas simbólica – para inúmeras mães e crianças pelo Brasil.
“Nas diferentes regiões do País, foram implementadas leis de amparo e promoção do ofício de parteira, o que mostra as manifestações legais de reconhecimento do poder público para com esse ofício”, relatam os autores do dossiê de registro elaborado por Iphan e UFPE, citando programas e políticas públicas em Pernambuco, São Paulo e Amazonas como exemplos recentes de uma parceria entre parteiras tradicionais e o Sistema Único de Saúde (SUS).
Trata-se de um reconhecimento, por parte do Estado, de que os saberes e práticas das parteiras tradicionais estão longe de ser um apanhado de crenças e superstições arcaicas sem valor efetivo. Pelo contrário: são um “cruzamento de matrizes culturais e epistemologias distintas”, na definição dada pelo dossiê de registro, e aberto para “absorver novos e atuais elementos e referências”.
Como um aprendizado de mão dupla, o que se vê hoje é uma mescla de rezas e óleos fitoterápicos com estetoscópios e técnicas sofisticadas de toques e massagens, além da aplicação de premissas que as parteiras seguem há séculos, às quais a medicina oficial tem prestado atenção crescente, como o respeito à subjetividade da parturiente ou à preferência por procedimentos poucos invasivos.
E tudo isso em regiões do País em que a assistência do Estado à população é insuficiente ou inexistente, como nota a educadora quilombola Givânia Maria da Silva, conselheira que ficou encarregada de elaborar o parecer técnico que foi aprovado, nesta quinta-feira, pelos membros do Conselho Consultivo do Iphan.
“Em uma combinação de continuidades ancestrais com, em muitos casos, ausência total de políticas públicas, as parteiras foram e continuam sendo os únicos suportes à vida de centenas de mulheres e seus filhos e filhas”.
Oriunda da comunidade de Conceição das Crioulas, interior de Pernambuco – ela própria nascida pelas mãos de uma parteira, como quase todos seus conterrâneos –, Givânia conclamou os colegas de Conselho para que registrassem o novo patrimônio “dentro da chave de uma reparação histórica às parteiras tradicionais do Brasil, por tudo que representam, sobretudo em territórios tradicionais indígenas, quilombolas e de terreiros”.
“Em uma combinação de continuidades ancestrais com, em muitos casos, ausência total de políticas públicas, as parteiras foram e continuam sendo os únicos suportes à vida de centenas de mulheres e seus filhos e filhas”, afirmou a conselheira.
É para essas mulheres que, após a aprovação do parecer, o Iphan passará a dedicar esforços, segundo a diretora substituta do DPI, Diana Dianovsky, “na valorização e promoção desse patrimônio cultural”. “Um dos primeiros passos é ampliar a mobilização para a construção de um plano de salvaguarda que dê conta da diversidade da realidade do ofício das parteiras tradicionais do Brasil. Dessa forma, o Iphan poderá agir de forma coordenada, incluindo parceiros das esferas governamentais e da sociedade civil”, diz a diretora.
*Com informações do Iphan