Foto: Aguilar Abecassis/SEC-AM
Todos os anos, o Festival Folclórico de Parintins celebra a rica herança cultural da Amazônia. Em 2025, na 58ª edição da festa, o boi-bumbá Caprichoso leva para a arena a participação ativa de representantes dos povos originários, que reforçam a autenticidade das narrativas apresentadas e valorizam a ancestralidade da cultura amazônica, sob o tema ‘É tempo de retomada’.
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Veja quais lendas, mitos, figuras e rituais foram apresentadas ao público nesta edição:
1ª noite – 27 de junho: Amyipaguana, retomada pelas lutas
Lenda amazônica – Yurupari: da demonização à retomada indígena

Na primeira noite do Festival Folclórico de Parintins 2025, o Boi Caprichoso leva para a arena do Bumbódromo um território de afirmação indígena e espiritual com o tema central ‘Yurupari: Da Demonização à Retomada Indígena’.
Yurupari deriva do nheengatu yuru (boca) e pari (armadilha para peixe) e foi historicamente distorcido pelos missionários cristãos, que o demonizaram como forma de enfraquecer a religiosidade indígena e forçar a conversão ao cristianismo. No entanto, longe da figura demoníaca atribuída por interpretações coloniais, Yurupari é, para os povos Dessana, Baniwa, Tariana e Tukano, uma entidade sagrada ligada aos ciclos da natureza e da vida coletiva.
O Caprichoso propõe a ‘desdemonização’ do personagem, devolvendo-o ao seu papel espiritual e simbólico original. Ao som das toadas e com a força das alegorias, o boi denuncia o processo de apagamento histórico promovido pelo ‘livro preto’, a Bíblia nas mãos de seus intérpretes colonizadores, e celebrou Yurupari como expressão legítima indígena.
A luz e a sombra são imanentes à vida, partilham do mesmo corpo, da mesma energia, nem bem, nem mal, posto que não se anulam ou rivalizam, como quer a religião dos não-indígenas. Sob as bênçãos do kumu Rogério Marinho Tukano, o Legislador será revelado ao mundo em sua faceta ancestral.
Figura Típica Regional: Majés, As Senhoras Da Cura

A figura típica regional da noite traz ao centro do espetáculo as Majés, mulheres indígenas que carregam e compartilham saberes milenares de cura.
Parteiras, benzedeiras, erveiras e conselheiras, essas mulheres são as guardiãs do ventre do mundo, o corpo sagrado da Terra, e com suas mãos, elas mantêm vivas as tradições que curam o corpo e o espírito.
Leia também: Quem são as Majés? Caprichoso homenageia mulheres da floresta no Festival de Parintins 2025
Ritual Indígena – Ritual Tupinambá, a retomada da verdade originária

Encerrando a apresentação, o Caprichoso resgata um dos rituais mais mal compreendidos da história indígena, o rito de antropofagia Tupinambá.
Supostamente, no rito de antropofagia Tupinambá, este povo devorava os guerreiros considerados virtuosos, corajosos, dignos, com o intuito de absorver suas virtudes. O cativo era humilhado, amarrado pela cintura e, após isso, morto e cozido para ser consumido e ter suas virtudes assimiladas, por meio do corpo do prisioneiro de guerra, as qualidades dos considerados ‘grandes guerreiros’ passariam a ser parte dos Tupinambá que fizessem parte deste ritual antropofágico.
A verdade originária para os Tupinambá, é de que o Manto sustenta este povo e fala por intermédio de seus ‘parentes’. Esse manto era usado apenas pelos pajés, quando precisavam se comunicar com a ancestralidade, e na arena, o Caprichoso ecoa o clamor por justiça e reparação, reforçando a luta pela restituição dos bens sagrados dos povos originários.
2ª noite – 28 de junho: Kizomba, retomada pela tradição
Figura típica regional: Marandoeiros e marandoeiras da Amazônia

Marandoeiros significa contadores de histórias da Amazônia. Contar essas histórias se configura como um dos hábitos mais prazerosos do cotidiano de quem vive nos interiores da Amazônia, já que nas noites enluaradas, os mais jovens se reúnem para ouvir os mais velhos que, por meio das suas falas, revivem ‘causos’ de encantamentos e encantes, fatos históricos marcantes como grandes cheias ou severas estiagens.
O Boi de Parintins homenageia os contadores/as de história como Tia Dora, Seo Dray, o pedreiro, Adolfo Lourindo, Julita Cid, Mestre Waldir Viana, Marujo Marina, dona Siloca, Coracy, dentre tantos e tantas relicários da contação ancestral, em forma de versos, de história ou por meio do tambor.
Lenda Amazônica: Sacaca Merandolino, o encantado de Arapiuns

Na segunda noite de espetáculo, a Lenda Amazônica a ser apresentada emerge do reconhecimento da importância da memória de um povo, como ato de resistência.
Contam os antigos que quando Merandolino inalava o seu fumegante tauari e mergulhava nas águas do Arapiuns, os peixes de todas as espécies o ladeavam e assistiam seu engeramento numa imensa serpente que deslizava nas profundezas das águas entre botos, arraias e poraquês, para boiar em outras comunidades para fazer uso do seu dom de curar.
Merandolino tornou-se encantado, recebendo a missão de ser o eterno guardião das águas escuras do rio Arapiuns, um rio de águas e direitos. E hoje, quando alguém tenta profanar suas sagradas águas, logo surge uma luz azul anunciando que ele está vindo.
Ritual Indígena: Musudi Munduruku, a retomada dos espíritos

O povo indígena Munduruku ficou historicamente conhecido pela sua tradição guerreira que se estendeu por todo o Vale do Rio Tapajós, na chamada “Mundurukânia”. Donos de uma rica cosmogonia, os Wuy Jugu acreditam em espíritos de seres que habitam o ar, a água, o mundo subterrâneo e que permanecem vivos mesmo após a morte física.
O Boi Caprichoso escolheu trabalhar a retomada dos espíritos Munduruku, como forma de resistência da vida na floresta. Por não estar dentro do território politicamente demarcado pelo estado brasileiro, o local de descanso dos guerreiros Munduruku foi corrompido descaradamente, com a construção da hidrelétrica Teles Pires.
3ª Noite – 29 de junho: Kaá-eté – Retomada
pela vida
Lenda Amazônica: Waurãga e os Wauã-kãkãnemas

Waurãga é uma entidade sagrada da floresta amazônica, reverenciada como a “mãe de todas as mães da mata”. Segundo o mito contado por anciãs do povo Maraguá, ela surge em defesa da floresta sempre que o território é ameaçado por ações predatórias, como garimpo e desmatamento. Waurãga sente o cheiro da destruição e responde com fúria, convocando os Wauã-Kãkãnemas, espíritos encantados da mata que se manifestam por meio dos animais, para lutar pela justiça.
Esse mito será levado à arena pelo Boi Caprichoso por sua conexão com os povos indígenas da Amazônia e pelo simbolismo da luta pela preservação. A história de Waurãga representa a resistência da floresta viva e dos saberes ancestrais, diante da ganância e destruição provocadas pelos homens, já que sempre que houver ameaça, ela se levanta, com sua força espiritual para proteger a Amazônia.
Figura típica regional – O seringueiro da Amazônia

O seringueiro é uma figura essencial na história da Amazônia, especialmente quando se fala em resistência e convivência harmônica com a floresta. Representado por nomes como Chico Mendes, ele é visto como um herói das matas, por ter lutado pela preservação ambiental e pelos direitos dos povos da floresta.
O Caprichoso resgata essa memória reforçando a importância dos seringueiros como parte fundamental da construção da identidade amazônica.
Esses trabalhadores, muitos deles vindos do Nordeste, misturaram-se aos povos originários, e viviam do extrativismo do látex, em condições muitas vezes semelhantes à escravidão. Dorothy Stang, Zé Cláudio e outros também fazem parte dessa resistência, mantendo viva a semente plantada por Chico Mendes.
Ritual indígena – Ritual de cura Yawanawá

O ritual de cura Yawanawá é uma prática espiritual conduzida pelos pajés (Rumeya) desse povo indígena que vive às margens do Rio Gregório, no Acre. O processo começa quando o pajé, avisado em sonhos sobre a enfermidade de alguém, inicia uma cerimônia chamada mariri, reunindo a comunidade em círculo para fortalecer a cura, e durante o ritual, elementos da floresta como kambô (veneno da rã), rapé, ayahuasca e tabaco são usados em comunhão com seres espirituais.
O momento mais sagrado acontece quando o pajé entra em transe e realiza o Shuanka, retirando o mal do corpo do doente. Esse conhecimento ancestral é passado oralmente e representa a “medicina da floresta”, que vai além do físico, tocando o espiritual.
O Caprichoso encena esse ritual para valorizar os saberes indígenas e reafirmar a importância da preservação cultural e espiritual dos povos originários da Amazônia.
