Como indígenas da Amazônia se conectam com exposição de fotógrafas nonagenárias

Hoje nonagenárias, Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat se radicaram no Brasil na década de 1950 e produziram vasto acervo fotográfico sobre a temática indígena.

Catrimani 10, retrato de criança yanomami feito por Claudia Andujar no início dos anos 1970. Foto: Coleção da Artista/Cortesia Galeria Vermelho

Em 2015, a antropóloga Sylvia Caiuby Novaes saía do cinema quando uma cena lhe chamou a atenção. Ela viu as fotógrafas Claudia Andujar e Maureen Bisilliat e a antropóloga Lux Vidal caminhando juntas pela rua Augusta, em São Paulo, com os braços entrelaçados. “Essa imagem me inspirou a investigar quais eram as afinidades entre aquelas três mulheres”, lembra Caiuby Novaes, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).

A ideia originou o projeto de pesquisa “Fotografias e trajetórias: Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat”, coordenado por Caiuby Novaes, com apoio da FAPESP, entre 2019 e 2022, que se desdobrou em um site e mais recentemente na exposição Trajetórias cruzadas, em cartaz até fevereiro de 2025 no Centro MariAntonia da USP.

“Elas têm vários pontos em comum que vão além do fato de hoje serem nonagenárias”, conta Caiuby Novaes, que assina a curadoria da mostra com a antropóloga Fabiana Bruno, coordenadora adjunta do Laboratório Antropológico de Grafia e Imagem (La’grima) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora colaboradora do Departamento de Antropologia da USP.

Na beira do rio (sem data), registro do povo Xikrin por Lux Vidal.
Cortesia Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da Universidade de São Paulo

Segundo as curadoras, as interseções começam na infância: as três nasceram na Europa, na década de 1930, época de ascensão de regimes totalitários como o nazismo. A suíça Andujar, por exemplo, cresceu entre a Hungria e a Romênia e, durante a Segunda Guerra Mundial, seu pai e a família paterna, de origem judaica, foram enviados aos campos de concentração de Auschwitz, na Polônia, e Dachau, na Alemanha. Já Vidal nasceu na Alemanha e passou a maior parte da infância e da juventude na Espanha e na França. “Sua família mudou-se várias vezes por causa da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Civil espanhola”, diz Bruno. Por sua vez, a britânica Bisilliat morou em diversos países, como Dinamarca, Colômbia e Argentina, quando criança por conta da profissão do pai, que era diplomata.

A passagem por Nova York antes de se radicarem no Brasil é outro ponto em comum na trajetória das três mulheres, que moraram e estudaram na cidade norte-americana a partir da década de 1940. “Claudia frequentou o Hunter College, quando começou a pintar telas inspirada pelo expressionismo abstrato”, conta Bruno. “Na mesma ocasião, Lux tornou-se bacharel em artes pelo Sarah Lawrence College, onde cursou antropologia, literatura e teatro. E Maureen, que começou a pintar em 1952, na Argentina, estudou cinco anos mais tarde na Arts Students League, que também fica em Nova York.”

Homem prepara urucum para pintura corporal no Xingu; fotografia (s/d) de Maureen Bisilliat. Cortesia Acervo Instituto Moreira Salles

Bisilliat, que já havia passado pelo Brasil no início da década de 1950, se muda em definitivo para o país no final de 1957. “Claudia chegou em 1955. Quando vêm morar aqui, as duas abandonam a pintura e começam a se dedicar à fotografia”, relata Caiuby Novaes.

Nos anos 1960, ambas vão trabalhar como fotojornalistas para revistas como Realidade, da editora Abril. É dessa época o ensaio Caranguejeiras (1968), que Bisilliat fez para Realidade e registra um grupo de mulheres catadoras de caranguejos na Paraíba – parte das fotos pode ser vista na exposição. 

“Desde a década de 1950, elas viajaram muito pelo Brasil e pela América do Sul, inclusive sozinhas, o que não era tão comum na época. Basta lembrar que foi somente com o Estatuto da Mulher Casada, de 1962, que as mulheres passaram a ter liberdade de viajar desacompanhadas no Brasil”, prossegue a antropóloga.

Além do trabalho em fotojornalismo, as curadoras destacam mais uma contribuição da dupla. “Claudia e Maureen tiveram papel importante na inserção da fotografia nos espaços expositivos brasileiros, como museus e exposições, a exemplo das bienais, sobretudo na década de 1970”, informa Caiuby Novaes. “Dentre outras coisas, elas passaram a fazer parte da Comissão do Setor de Fotografia do MAC [Museu de Arte Contemporânea da USP], em 1970.”

Algumas das imagens do acervo de Lux Vidal expostas no Centro MariAntonia da USP. Divulgação/Eduardo Fujise

Tanto Andujar quanto Bisilliat foram contempladas com bolsas FAPESP para realizar projetos de pesquisa. Devido a esse apoio concedido entre 1976 e 1978, a primeira prosseguiu o registro fotográfico dos Yanomami, que iniciaram em 1970, durante um trabalho para a revista Realidade, e também deu continuidade à coleta de desenhos realizados por eles. Entusiasta da literatura e da cultura popular do Brasil, Bisilliat recebeu os auxílios “Existência do mágico na realidade brasileira: Mário de Andrade”. “A presença mágica na realidade brasileira: Roger Bastide”, em 1981, e “Indumentária popular brasileira: Devolução, inspirado livremente nos escritos de Mário de Andrade”, em 1984.

Dentre as três, Vidal, que é professora emérita da USP, possui a trajetória mais vinculada ao mundo acadêmico. Após chegar a São Paulo em 1955, ela lecionou na Aliança Francesa e no Liceu Pasteur, e, em 1967, voltou a estudar antropologia na USP. Dois anos depois, tornou-se professora daquela instituição de ensino e a partir de então desenvolveu pesquisas com diversos povos indígenas, especialmente os Mebengokré-Xikrin, do Pará. “Ao longo dessas décadas, Lux fez cerca de 5 mil fotos, que estão guardadas no Laboratório de Imagem e Som em Antropologia da USP. Parte do material exposto foi publicada em seus livros, mas até então nunca tinha sido visto em grande formato”, afirma Bruno.

Desenhos do povo Yanomami recolhidos por Claudia Andujar na década de 1970. Divulgação/Eduardo Fujise

Dividida em três salas, a mostra reúne cerca de 300 fotografias, desenhos Xikrin e Yanomami, além do vídeo “Aqui é o mundo”, dirigido por Maíra Bühler, que registra um encontro das três fotógrafas no final do ano passado. Cinquenta por cento das imagens expostas são sobre a temática indígena e refletem um forte vínculo com essa questão. Bisilliat, que foi pela primeira vez ao Parque Nacional do Xingu no início da década de 1970, lançou dois livros sobre as viagens: Xingu (Editora Práxis, 1978) e Xingu/Território tribal (Livraria Cultura Editora, 1979), este em parceria com os indigenistas Claudio Villas-Boas (1916-1998) e Orlando Villas-Boas (1914-2002). Também dirigiu o documentário Xingu/terra (1981), em parceria com Lúcio Kodato.

No entanto, o envolvimento com a questão indígena não se restringe ao registro de imagens. Andujar ajudou a fundar no final da década de 1970 a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), que lutou pelo reconhecimento do território desse povo, só homologado em 1992. Já Vidal contribuiu para a criação de várias organizações indigenistas, como a Comissão Pró-índio de São Paulo, em 1978.

Maloca em chamas, imagem que integra a série A casa (1976), de Claudia Andujar. Coleção da Artista. Cortesia Galeria Vermelho

Parte das imagens de Vidal foi restaurada para a exposição a partir de pesquisa de iniciação científica financiada pela FAPESP da fotógrafa Isabella Finholdt, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, sob orientação do fotógrafo João Luiz Musa. O estudo, que integrou o projeto “Fotografias e trajetórias: Claudia Andujar, Lux Vidal e Maureen Bisilliat”, investigou, por exemplo, formas de tratar imagens analógicas produzidas entre as décadas de 1960 e 1980.

Ao todo, o acervo fotográfico de Andujar, administrado pela galeria Vermelho, de Bisilliat, hoje depositado no Instituto Moreira Salles, e de Vidal, abriga mais de 50 mil imagens. “Apenas em relação à questão indígena, elas registraram vários temas como cotidiano, caça, casas, aldeias, rituais e pintura corporal”, informa Bruno. “Decidir quais dessas imagens entrariam na mostra foi um dos nossos grandes desafios”, conclui.

*O conteúdo foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP, escrito por Ana Paula Orlandi

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