Histórias das frutas de comunidades ribeirinhas revelam as “Amazônias”

Depois do fruto debulhado, aquecido e finalmente batido, o líquido escuro é inconfundível para quem mora no Norte do país: é açaí.

Para quem não tenta, à primeira vista e no primeiro impulso, parece um movimento simples, quase fácil. A ação consiste em agarrar os braços no tronco de uma palmeira, flexionar os joelhos e virar os pés para dentro num gesto similar ao das mãos. Em segundos e em um impulso demasiado rápido e constante, o movimento repetitivo do jovem o faz chegar no topo da palmeira, onde encontram-se as touceiras que carregam os pequenos frutos pretos. Já não é trivial e impressiona. A tarefa exige força, flexibilidade e equilíbrio.

A touceira nas costas juvenis escorrega junto na descida do corpo, deslizante pelo tronco da palmeira. Posteriormente, o duro do fruto se desfaz no contato com a água quente, necessária antes do processo de despolpadeira. Se olhar pra baixo, dá medo. Weneson Paulo Araújo de Freitas, conhecido hoje só como Paulo, tinha tremedeira nas pernas quando pensava em chegar no alto da palmeira. Sua mãe dava um conselho. “Menino, coloca essa água nas pernas e sobe”, falava. Era um menino ativo e gostava da atividade, mas também tinha medo.

Depois do fruto debulhado, aquecido e finalmente batido, o líquido escuro é inconfundível para quem mora no Norte do país: é açaí. Se toma com farinha de mandioca, puro, com açúcar. Em alguns lugares mais distantes dali, até com peixe, camarão ou carne seca.

Nos saberes amazônicos, ouve-se falar dos mais velhos nas comunidades, o fruto do açaí representa as lágrimas de uma mulher tupi que chorou ao ter seu filho sacrificado em uma ordem do cacique pela falta de comida para alimentar novas crianças ou bebês, proibidos de serem gerados. Tupã, considerado um deus, atendeu ao pedido em sofrimento da mãe e a transformou na palmeira de açaí.

Vinho de açaí é o nome que seu Luís, apelido de Luís Reis e conhecido de Paulo por morar na mesma comunidade, apresenta aos visitantes do local. Explica a todos a diferença: vinho de açaí é mais fraco e o mais grosso é só açaí. “Hoje ele tá na força”, comenta Paulo sobre a época de produção do açaí na região, que dura de novembro a maio.

A comunidade está localizada próximo à confluência dos rios Japurá e Solimões, estado do Amazonas. Boa Esperança foi o nome escolhido por Luís e outros fundadores da comunidade, ao finalmente tomarem coragem para fazer daquela terra, desocupada, seu lar. Por que ali? Era a areia branca nas margens que formavam uma praia, praia de rio de água escura que chamava atenção dele e de sua esposa, Romena.

Romena fala menos que Luís. É mais acanhada diante de perguntas e visitas. Juntos, tiveram sete filhos a quem ensinaram o caminho para conseguir as coisas, de acordo com o casal: esperança e organização. Luís e Romena, assim como parte de seus filhos, manejam frutas com destreza. E variadas, pra além do açaí. Na chamada Casa de Polpa, unidade de beneficiamento construída com apoio do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, organização de pesquisa científica da região, freezers são carregados lotados de açaí, cupuaçu, goiaba, melancia e todas as frutas que as famílias do Boa Esperança cultivam e colhem na comunidade.

São variadas e no calor, viram também o chamado “dindim”, o refrescante de criança. Gelam com energia, recurso escasso em comunidades ribeirinhas amazônicas. Boa parte delas depende de geradores movidos à diesel, combustível caro. Paulo, hoje morador dessa comunidade, lembra com clareza. “Cresci com energia só até às 22h”, diz. Movida a energia solar, projeto da Casa de Polpa saiu do papel em 2017 graças a um financiamento do Fundo Amazônia. Anos depois, o programa paralisado com advento do governo Bolsonaro.

Nascido num seringal do município de Carauari, rios distantes dali, Luís lembra suas origens de criança: tem avós cearenses por parte de mãe e uma avó peruana por parte de pai. “Por isso saí bonito assim”, ri da própria piada o homem acostumado a usar um chapéu de caubói surrado e que mantém, há anos, um bigode preto grosso.

O ribeirinho compartilha raízes com Paulo, cujos avós também são cearenses. Mas Paulo não se lembra sequer de histórias do Nordeste. “Mas hoje sou caboco amazonense”, se identifica o agora homem de 34 anos, que cria a filha pequena e um dos enteados com a esposa na comunidade. Sua fruta preferida não podia ser outra, diz ele: é açaí.

O outro enteado, de 11 anos, mora em Tefé, cidade amazonense considerada metrópole da região do Médio Solimões, fica distante cerca de oito horas numa voadeira mais comum. Foi para estudar e ainda não sabe subir no pé de açaí como Paulo. “Não é muito do mato”, comenta sobre o menino. “Mas agora tô começando a ensinar, quando dá”, diz rindo.

A quinze minutos da comunidade Boa Esperança, uma outra margem do lago é povoada por dez casas. “Não dá nem para chamar de comunidade, é sítio mesmo”, diz Paulo. É lá que seu pai mora – onde decidiu ir criar sua família depois trabalhar na roça para os outros por ali. Lá que aprendeu a subir para descer com touceira de açaí.

Seu pai mora até hoje lá e com apoio do irmão de Paulo, planta. Principalmente mandioca que vira farinha – mas também as frutas que dão ali: melancia é a principal.

Foto: Paulo Araújo

A origem similar dos dois homens hoje moradores do Boa Esperança retratam um processo de milhares. Em fuga da seca e pobreza enfrentada no Nordeste, milhares de famílias enxergaram na seringa um caminho para uma vida melhor do fim do século 19 ao início do século 20. Nessa época, o estado do Amazonas encantava rios distantes pelo auge da indústria da borracha, chamada de ouro negro. Estima-se que 300 mil nordestinos migraram para a região entre 1870 e 1900.

Os seringais responsáveis pelo produto que tanto vendia atraíam os nordestinos com uma promessa – mas era ilusória. Os chamados “patrões” seringalistas impunham um sistema de semiescravidão aos trabalhadores da região com base em frequentes adiantamentos: era o chamado sistema de aviamento. Tudo isso num bioma, floresta e área de dimensões continentais e dificuldades de navegabilidade bem descrita por Euclides da Cunha no livro ‘À margem da história”:

A volubilidade do rio contagia o homem. No Amazonas, em geral, sucede isto: o observador errante, que lhe percorre a bacia em busca de variados aspetos, sente, ao cabo de centenares de milhas, a impressão de circular num itinerário fechado, onde se lhe deparam as mesmas praias ou barreiras ou ilhas, e as mesmas florestas e igapós estirando-se a perder de vista pelos horizontes vazios; o observador imóvel que lhe estacione às margens sobressalteia-se, intermitentemente, diante de transfigurações inopinadas. Os cenários, invariáveis no espaço, transmudam-se no tempo. Diante do homem errante, a natureza é estável; e, aos olhos do homem sedentário, que planeie submetê-la à estabilidade das culturas, aparece espantosamente revolta e volúvel, surpreendendo-o, assaltando-o por vezes, quase sempre afugentando-o e espavorindo-o.

As famílias iam se movendo pelo estado, sempre atrás de uma vida melhor. De canoa, pela força dos músculos, ou rabetinha de motor fraco, embarcações lentas que geravam dias e horas de viagem. Enquanto isso, obras arquitetônicas exuberantes surgiam nas capitais do norte, hoje pontos turísticos – como o Teatro Amazonas, no centro de Manaus.

Paulo não se lembra de histórias ou então de costumes dos seus avós nordestinos. Mas foi criado pegando gosto pelas frutas do novo lar da família – seja pelo sabor ou pela brincadeira. “A gente competia pra ver quem juntava mais tucumã”, comenta ao referir-se ao fruto da palmeira consumido em todo o interior do Amazonas e popularizado na capital, Manaus, por integrar o típico sanduíche chamado de xis caboquinho. “A gente gostava de ver aquele volume de fruta, juntava tudo”, diz.

Amanã significa “caminho das chuvas” em tupi guarani. É uma área de águas escuras, responsáveis por indicar a composição daquelas terras e está localizado na reserva de desenvolvimento sustentável, uma categoria de unidade de conservação de mesmo nome – a RDS Amanã. Intuitivo, o significado do nome indica o tanto de chuva que, na época certa, chega à região.

Mais próximo da cidade e há algumas horas de barco do Boa, a cerca de seis horas distantes de Tefé, na comunidade Boca do Mamirauá um objeto quase do tamanho de uma bola de futebol é guardado na casa de artesanato indígena – é feito de borracha, a resina da seringa. “Veio rolando pelo rio e a gente guardou”, conta um dos moradores sobre o artefato exposto na casa de artesanato indígena.

Butirizeiro, palmeira comum no Amazonas. Foto: Miguel Monteiro

O povo maiuruma foi um dos que formou a comunidade, ainda não reconhecida como aldeia indígena. Depois da década de 1960, essas populações miscigenadas se estabeleceram na região com forte influência da Igreja Católica, responsável por incrustar o conceito comunitário e suas formas de organização, que perduram até hoje.

A comunidade apelidada de “Boca” para quem a conhece, à mesma maneira do “Boa”, está localizada na reserva de desenvolvimento sustentável Mamirauá, unidade de conservação “irmã” da RDS Amanã e a primeira da categoria no país. Enquanto a reserva Mamirauá é de região de várzea, o que significa floresta alagada na época da cheia, que dura de dezembro a maio, Amanã é caracterizada por ser a chamada terra firme: diferente da reserva “irmã,” tem mais variedade de frutas e cultivos pela terra que não alaga.

Toda a região é conhecida como “coração” da Amazônia. A reserva Mamirauá possui uma extensão de 1,1 milhão de hectares e a reserva Amanã é a maior, com 2,3 milhões de hectares. Juntas, as duas reservas formam uma área contígua de proteção com cerca de 5,7 milhões de hectares, área superior aos territórios de países como Costa Rica e Suíça.

Até os decretos que criaram as duas pioneiras na categoria, entre a década de 1980 e 1990, as unidades de conservação pouco ou nada consideravam sobre as populações humanas que moravam e formavam as paisagens dessas regiões.

A Amazônia Plantada

“Veio bem uns seis moradores ver. Aí disseram – Lá é um pouco sacrificoso, porque tem muito, muito mato pra desmatar, tá um bocado feio. Cobra tinha bastante, não podia nem botar o pé. Aqui na frente era capoeira, acho que era do tempo dessas urnas, sei lá o quê que é isso! Aí vieram e começaram a trabalhar. Fizeram primeiro os roçados aqui, aí nós plantamos, aí a gente vinha de lá, limpar aqui, zelar. Dava uma hora de rabeta. Nós trouxemos pra plantar abacate, limão, laranja…vários tipos de planta” (Moradora de Boa Esperança entrevistada em maio de 2005 por pesquisadora do Instituto Mamirauá).

Vários tipos de planta. Era isso que os chamava.

Antes de criar coragem para morar lá, a área de mato do Boa Esperança chamava atenção de Luís pela beleza, mas não só. Tinha terra boa. Terra boa, para quem mora na terra, é a que fertiliza e faz crescer coisa. Também tem outro nome bem conhecido na região: terra preta de “índio”.

Esse tipo de solo é caracterizado pelo acúmulo histórico de resíduos orgânicos e uso do fogo na sua carbonização. E é chamada assim porque sabe-se que indica a ocupação de populações pré-históricas no local.

Mas não é só isso que indica essa presença humana. Já perto das casas, urnas funerárias indígenas pré-históricas integram, com notável naturalidade dos moradores que caminham entre elas, os caminhos entre as casas. Cacos de cerâmica ainda são encontrados com frequência. Depois de achados, são recolhidos e levados a uma casa só, que reúne todos. Uma boa parte foi parar numa sala da rádio comunitária da comunidade, onde visitantes examinam com curiosidade.

Trabalhadoras da Casa de Polpas. Foto: Amanda Lelis

A pesquisadora Jaqueline Gomes explicita o encontrado, em linguagem científica, no artigo “Alteridades e paisagens na comunidade Boa Esperança”, publicado pelo Instituto Mamirauá. “Atrás das casas, onde se constituem os quintais com cultivares diversos e plantas perenes, concentra-se a maior porção dos vestígios arqueológicos, formado por um pacote de solo antrópico cujas áreas de terra preta podem atingir mais de 1,5m de profundidade.

Na área de maior circulação da comunidade, próxima à margem d’água, são encontrados grandes recipientes cerâmicos (urnas) aflorando à superfície, o que parece ter sido, no passado, uma área específica de deposição de estruturas funerárias. Além das urnas, são abundantes os fragmentos de apêndices zoomorfos e bordas decoradas de vasos, que, sem dúvida, estimularam a prática de colecionismo entre os moradores, responsáveis pela formação de uma coleção exposta na rádio comunitária”, discorre o texto.

Certa vez, um jovem chutou algo no chão enquanto jogava uma partida de futebol no campinho da comunidade. Ao olhar para baixo, viu que era uma garrafa de barro com um nome de uma marca antiga, em outro idioma. A garrafa quebrada pelo chute foi guardada junto com os cacos e os moradores dizem que são de holandeses que guerrearam por aí.

Antes das famílias nordestinas chegarem ao local por esperança ou desespero, populações indígenas da região sofreram violência sistemática pela disputa de terras entre espanhóis, portugueses e outros invasores de origem europeia. Uma população de diversidade gigantesca, assim como seus cultivos e hábitos alimentares, sofreu genocídio e apagamento.

O Plano de Gestão da RDS Amanã, que abriga o Boa Esperança, detalha esse registro. “Entre os indígenas aldeados naquela época estavam os Catoayari, no lago Urini, os Yaguana, nas várzeas entre o lago Amanã e o rio Solimões, os Cauacaua, na margem esquerda da boca do rio Japurá, os Caiarioni, nas cabeceiras do lago Amanã e os Guayoana, na terra firme entre os rios Unini e Jaú. O fato é que os indígenas aldeados nas imediações de vilas que se transformaram em cidades da região (como, Tefé, Maraã e Coari) passaram por uma espécie de apagamento histórico”, discorre o documento que estabelece as regras de uso sustentável da unidade de conservação.

Mas os vestígios ficam.

“Onde você vai na Amazônia tem pintura rupestre, cerâmica, sítios arqueológicos. Não têm onde você ande que não tem um vestígio e material de ocupação humana. Isso para mim é impressionante. Antes de eu entrar na arqueologia, eu não tinha noção disso, do quanto as pessoas viviam com uma diversidade de escolha, de hábitos e formas de viver gigantesca”, comenta Mariana Cassino, bióloga de formação e conhecedora da comunidade Boa Esperança.

Nascida e criada em Minas Gerais, estado de Mata Atlântica, Mariana se encantou pela área de etnobotânica, como chamava à época, e estuda Amazônia há anos. Foi recentemente para Santarém, no Pará, no Parque Estadual de Monte Alegre. São os dados de ocupação mais antiga da Amazônia brasileira, com 12 mil anos de ocupação ao menos. E a floresta conta essa história. “A gente tem dificuldade de ver a riqueza gigantesca, de abundância de alimentos, que é a floresta amazônica”, diz.

O açaizeiro ao fundo da casa de Paulo. Foto: Paulo Araújo

As populações amazônicas nunca optavam pelo cultivo de uma planta única. Quando se identifica o número maior de uma espécie ou a introdução de outra, explica a especialista, os restos ainda mostram que sempre foram combinadas práticas de manejo da floresta que são diversas. Povos amazônicos têm gosto histórico pela diversidade. “E é possível ver isso claramente no registro arqueológico. Isso me impressiona sempre”, diz.

Tubérculos que vão muito além da mandioca, como a batata mairá, cita como exemplo, ainda são encontrados em cultivos de comunidades “isoladas”, como são chamadas por serem afastadas das grandes metrópoles, mas pouco conhecidos.

Assim como as populações, os cultivos também passaram por um “apagamento”, uma retirada proposital num processo de homogeneização dos alimentos ultra processados e industrializados, cada vez mais comuns nos interiores da Amazônia e responsáveis pela dizimação da diversidade alimentar.

Além dos restos que contam essa história, já carbonizados na terra, o que fica é apenas o que décadas depois foi repassado e perpetua a cultura por meio dos frutos e costumes da floresta amazônica. Às vezes, algo é perdido e depois resgatado com antigas e novas mãos, dali ou de fora.

A Amazônia Ensinada

Nos documentos de Rosa, não se encontra o nome pelo qual ela é conhecida em sua comunidade e em toda região: Edna. Todos conhecem a mulher quilombola como Rosa e ninguém sabe dizer bem o porquê, nem ela. Na Amazônia, muitos quilombos se formaram na segunda metade do século 18, quando fazendeiros iniciavam um processo de levada de negros africanos para serem escravizados nas fazendas de gado e cacau na região. Edna dos Anjos, ou a dona Rosa, nasceu na comunidade São Francisco do Bauana, território quilombola ainda não reconhecido às margens do rio Tefé, agora há apenas umas duas horas de Tefé, na Floresta Nacional de Tefé – a Flona.

Foi morar na comunidade Bom Jesus, distante 10 minutos dali, depois de se apaixonar, como Paulo. Não estava nos seus planos casar-se cedo, mas quando o coração manda, não tem jeito, diz ela. Seu marido é conhecido como Falcão ou então “mano velho”, nome que batiza agora um drink feito de melaço com cacau batizado por Daniel, o inglês cujo apelido em inglês, Danny, soa simples no interior do Amazonas: é Dani.

Daniel Tredgigo nasceu em Lancaster, na Inglaterra. Certa vez, entrou em uma cervejaria numa cidade próxima, algo comum no país, e experimentou uma cerveja feita de “tonka beans” e gostou. Descobriu no Brasil, anos depois, que era cumaru, a chamada “baunilha brasileira”, hoje ingrediente de alta culinária no Sul e Sudeste. Na Amazônia, é só cumaru.

A descoberta fez com que Danny tivesse vontade de experimentar ingredientes amazônicos em drinks autorais, o que posteriormente transformou em um projeto de oficinas de preparação de drinks para comunidades ribeirinhas. É uma forma aumentar a possibilidade de gerar renda e fomentar o turismo de base comunitária, cada dia mais profissionalizado pelas comunidades como a de Bom Jesus, onde mora Rosa.

Rosa, a quilombola de mãos grossas, diz que sua paixão é a cozinha, algo que começou a aprender aos quatro anos de idade, vendo a mãe e as tias. Agora investe na culinária e nas trilhas para fomentar o turismo de base comunitária da comunidade.

Mariana passou longos períodos na comunidade Bom Jesus, onde hoje o casal mora. Lá, coletou o que chama de vestígios arqueobotânicos, os chamados carvões, para agora, em doutorado, analisar. “A gente finalizou a identificação dos vestígios de plantas carbonizados no sítio e estou fazendo também análise dos fitólitos, que são os microvestígios tanto da escavação como da paisagem ao redor. Meu objetivo é fazer uma análise refinada dessa história da paisagem porque o uso e manejo de plantas transformam essa paisagem de diferentes maneiras. Então estamos tentando refinar com análise de solo, desses micros vestígios e com inventário da vegetação do presente e tentar entender, assim, a variação ao longo do tempo, como isso pode ter alterado o solo e como pode ainda estar alterando a composição e estrutura da vegetação”, explica.

Em 2019, pesquisadores do Instituto Mamirauá descobriram um complexo arqueológico na comunidade, marcado pela presença de um vasto e antigo castanhal. A terra preta também se fez presente. Urnas e cacos surgiram nas escavações de dias dos grupos de arqueólogos. Todos alimentados com a comida de Rosa.

Quando criança, Rosa lembra que gostava de roer uxi. Uxi (Sendopleura uchi, em nome científico) é um pequeno fruto amazônico amarelado rico em nutrientes. O irmão mais velho dela catava o fruto de manhã e colocava num pote. “Dentro do pote, o uxi amolecia mais rápido porque ficava quente, pelo calor do lugar. A gente deixava todo mundo dormir, aí de madrugada eu chamava minha irmã. Quando eu não chamava, ela que chamava”, conta como quem se diverte com a lembrança.

“Umbora levantar pra comer uxi”, era o que uma falava à outra. “E quando era de manhã, ele dizia: Betinha, que era o nome da minha mãe, eu não acredito que um rato tá entrando aqui pra ir no pote roer uxi. Aí uma noite meu irmão ficou de vigia e ele pegou nós no flagra. A gente tomou um susto danado”, exclama a mulher, que consome e tem gosto pelo fruto até hoje.

“Apesar de fazer parte importante da cultura e da identidade dos povos da Amazônia, o uxi raramente é citado em catálogos ou levantamentos de plantas frutíferas tropicais, sendo quase que desconhecido em outras regiões do país. Possui uma casca fina cor de terra marmorizada, que recobre uma deliciosa polpa de cor amarelada, e de aroma muito agradável. Essa polpa é consumida ao natural, na maior parte dos casos, roída, de caroço oval. É bastante oleosa, fornecendo um óleo de cor amarelo-limão que lembra muito o azeite de oliva em consistência e sabor”, discorre o projeto “Arca do Gosto”, do movimento Slow Food Brasil.

Falcão, ribeirinho e neto de pajé. Foto: Miguel Monteiro

Falcão, o esposo de Rosa, é neto de pajé e foi para a Flona com apenas três anos de idade, ainda bebê. Caçula, lembra de ser o único dentre os irmãos que não pegou sarampo. Diferentemente de qualquer pesquisa no Google, incapaz de identificar a relação entre a palavra “saborá” e abelha, sabe que é um produto da abelha que seu avô não jogava fora porque fazia bem. Já seu pai jogava.

O mato saracura é amargo, mas depois fica doce. É bom pra tratar fígado e cura anemia. “Minha avó tinha esse conhecimento”, comenta. Criança ia pescar e no caminho buscava o que chamou de “alimentação diferenciada” para os irmãos doentes. Tudo a partir do conhecimento transmitido pelos avós – seja por parte de mãe ou de pai. Há alguns anos, Falcão disse para sua filha que queria comer carne guisada, contou. “Aí ela começou me perguntando como fazia e eu ia explicando”, comenta o homem. É o ato de “passar o bisu”, expressão dele que significa transmitir dica ou ensinamento.

O drink nomeado com seu apelido e criado por Danny substitui o café pelo cacau. Se isso é um ingrediente comum Brasil afora, essa era longe da realidade de Rosa antigamente.

Em sua comunidade, lembra de café só aparecer para visitas dignas disso ou em datas comemorativas. A bebida diária era o cacau, ou o chocolate que tomavam.

“Café, na minha época, era pra rico”, comenta Rosa. “Só tinha um senhor que plantava café, aí quando ele ia coletar ele chamava o meu pai e mãe pra ajudar a apanhar e aí dava um pouco de café. O café comprado era mais difícil. Quando vinha de fora, era só pra gente especial. Tinha várias pessoas com cultivo de cacau. As pessoas se dedicaram a ainda tá até hoje tem o cultivo do cacau, a gente vai descobrindo que ele não é só pro chocolate e faz várias coisas”, lembra a mulher. O pacote vermelho e barato de Kimimo, marca de café comum pelos rios e cidades amazonenses, não falta na lista de rancho de quem vai fazer campo pelas reservas ou pela Flona. Como Mariana e Daniel.

Agora, o líquido preto é a primeira coisa que as crianças dos interiores amazonenses aprendem a fazer. “Uma das primeiras iniciativas com nossos pais é pedir para fazer o café para ver se ele sai gostoso. Não era porque a gente era homem que não podia ir pra cozinha”, comenta Falcão. “Às vezes falo pro meu filho: hoje quero tomar uma caldeirada da tua mão”, diz Falcão, sobre o prato típico amazonense à base de peixe e legumes. Todo homem ali sabe se virar na cozinha.

Para Rosa, apesar dos esforços comunitários, a alimentação nas comunidades da Flona piorou. “Eu sempre digo que se a gente não cuidar, nossos netos e bisnetos não vão mais ver fartura”, comenta ao lembrar do tamanho do tambaqui antes pescado, que chegava a 1 metro de comprimento na sua infância. “Eu já não vejo fartura aqui como antes”, diz.

Ensinar a fazer, mesmo que adaptado ou com outros ingredientes, é importante para a família, diz Falcão. Faz parte da sobrevivência na Amazônia. Sobrevivência essa que agora Daniel, o inglês, não tinha escolhido a pesquisa científica, estuda. Às vezes parecia uma dificuldade inata do jovem para qualquer experiência. “Fui pra Nova Zelândia ajudar um tio a fazer uma casa de adobe, atravessei o Oceano Atlântico velejando. Fui do Brasil para o Chile de bike”, comenta algumas delas.

Quis ser cozinheiro e barman, atividades com mais contato com as pessoas. Nutria paixão similar à de Rosa pela cozinha. Até que um professor falou sobre pesquisa com segurança alimentar e um novo caminho despontava para o inglês pesquisador. Descobriu em sua pesquisa na Amazônia algo: até no lugar mais rico do mundo de comida tem fome – é o que diz em português claro.

A Amazônia Incerta

Paulo cultiva a fotografia como hobbie e registrou cenas da seca desoladora do ano passado. Com os rios secos e longes, todas distâncias percorridas dificultam tudo: ter aula, buscar atendimento médico, levar as polpas para vender fora.

Não se sabe de mais nada, diz ele.

Condução de melancias em direção a Tefé. Foto: Paulo Araújo

“Hoje a gente não sabe mais prever as coisas – os antigos tinham o costume de prever”, diz. “A gente não sabe se a enchente vai ser grande. Não conseguimos prever. A quentura o sol é muito quente, e esquentou mais do que era grande. Já aconteceu algumas cheias grandes. Essa última seca foi muito forte. E todo mundo aqui comenta que é do aquecimento global”, comenta o ribeirinho.

Seca demais é ruim, cheia demais é ruim também.

Em comunidades ribeirinhas no Amazonas, é comum encontrar em casas de palafitas algumas marcas de água, às vezes à altura do peito, nas paredes. Ali os moradores apontam e lembram do ano: essa foi a cheia de 2010.

Se o rio enche muito, explica Daniel, os peixes se “diluem” pela água e é mais difícil de pescar. O pesquisador britânico fez medidas de taxas de capturas em comunidades, ou seja, checou quantos peixes por hora são pescados, e comparou com índices de insegurança alimentar na região para verificar os efeitos das cheias.

Na falta de peixe, a proteína vira ovo ou ainda outros industrializados. “Quando está muito quente, o açaí tá secando no pé e caindo”, foi a frase que Danny ouviu de um produtor de açaí logo depois quando uma professora da Universidade Federal do Pará (UFPA) ofereceu ao inglês uma bolsa de três meses para estudar mudanças climáticas.

“Contei isso pra professora e fizemos uma pesquisa. O resultado mostra os efeitos da crise climática no fruto símbolo da Amazônia – o que Paulo aprendeu a subir. Rendeu o estudo “Vulnerability of the Acai Palm to Climate Change”, artigo publicado sobre a vulnerabilidade do açaí à crise climática e referência no assunto.

Para Paulo, a crise é uma realidade que chega na horta. “Questão de algumas pragas começou a chegar mais na roça. Não sei se tem a ver né, mas tem acontecido. O açaí é um que produz menos no tempo da seca. Ele puxa muita água pra produzir. Quando tem muita secura, tem pouco açaí. As plantas sentem também. Morre os peixes. Várias coisas acontecem com a friagem, que é quando tem muita água”, comenta Paulo. A melancia plantada pelo seu pai no sítio apareceu com um fungo inexplicado.

A Amazônia Impossível

Quando criança, a mãe da Daniel aconselhava: tome limão com laranja para não ficar doente, algo que se ouve com certa frequência. Morango, limão e laranja são as frutas que estampam cadernos, folders e outros materiais didáticos sobre vitaminas no país, inclusive na Amazônia, lugar onde essas frutas não têm protagonismo do lado de fora dos livros.

O camu-camu, por exemplo, tem quantidade significativamente maior de vitamina C e o nome curioso também conta história: vem do som que os frutinhos fazem quando caem na água e atraem os peixes que se alimentam deles; por isso o fruto também é usado por pescadores para atrair o pescado.

Jerimum (conhecido como abóbora fora da Amazônia), pupunha, buriti: todos eles alimentos alaranjados fontes de betacarotena, comumente associado apenas à cenoura. A referência à sua infância é usada em suas oficinas nas comunidades para falar das vitaminas nos frutos regionais. E ressalta que as pessoas das comunidades naturalmente sabem, como mostrou Falcão e Rosa. “Meus avós sabiam das plantas que tinham que comer pra curar”, diz a quilombola. Alimentação e saúde, na Amazônia, nunca foram pautas separadas.

Esse conhecimento detalhado das vitaminas fez com que as próprias comunidades demandassem um material consolidado para as crianças. Com a colaboração de pesquisadores da Universidade Federal de Rio Grande do Norte (UFRRN), o Instituto Mamirauá lançou recentemente o livro “Frutas da Floresta: o Poder Nutricional da Biodiversidade Amazônica”, distribuído nas comunidades.

A publicação compila dados culturais, poemas e curiosidades tradicionais sobre esses vegetais. Ainda, para estimular o consumo desses alimentos, a obra traz mais de 20 receitas de farofas, risotos, pães, bolos e outros pratos feitos com base nas frutas da região amazônica.

Daniel, idealizador da publicação, explica que há pouco conhecimento sobre os micronutrientes, como vitaminas, zinco, ferro e o que se mede comumente em exames de sangue país afora. Além do projeto das frutas, o pesquisador realiza um estudo sobre os micronutrientes na caça e em outros animais do ecossistema da região.

Ribeirinhos têm dificuldade de transportar as frutas no período de seca. Foto: Paulo Araújo

Além disso, a sua pesquisa deve determinar o nível de contaminação de mercúrio de muitos animais utilizados comumente na alimentação amazônica na região das reservas. A situação, em níveis de bioma, é crítica, mostram outros estudos. Um estudo da WWF Brasil identificou que a ingestão de mercúrio pela população local em Roraima ultrapassa a dose recomendada em até 27,2 vezes, com mulheres em idade fértil e crianças de 2 a 4 anos sendo as mais vulneráveis.

As crianças são alvo de preocupação dos comunitários do Boa Esperança e Bom Jesus. Seja pela alimentação reduzida ou piorada, seja saída por conta de estudo, como o enteado de Paulo que ainda não sobe em pé de açaí.Entre 2011 e 2018, dados do Instituto Mamirauá mostram um aumento de 71% na migração de moradores da reserva Amanã para as cidades em busca de maior estrutura educacional.

Uma das lutas defendidas pelo ribeirinho é a obrigatoriedade de 100% de alimentos regionais no cardápio escolar, o que ajudaria a escoar produtos como as polpas produzidas pela comunidade na Casa de Polpa.“ Gera renda, melhora a alimentação das crianças, é bom pra todo mundo”, explica Paulo, que não quer sair da comunidade. “Pensamos em sair por causa do estudo, mas não quero. A vida no interior acostuma”, diz.

Com o apoio da sociedade civil, agora as famílias batalham por uma fábrica de gelo na comunidade. Retomaram o projeto após não conseguirem levar os produtos para vender na feira, em Tefé e depois de uma falha técnica no sistema de energia, ainda pendente de reparo.

Rosa e Falcão também não largam a terra que escolheram pra viver. Se consideram de “luta” no movimento social e apostam no turismo para melhoria da qualidade de vida na região. Levar pessoas de fora para conhecer as árvores, bichos e fatos que ali estavam quando chegaram.

Os vestígios de populações que ali passaram e prosperaram. Tem uma atividade no mundo. “Quase tudo o que a gente quis, a gente conseguiu”, comenta Luís sobre a comunidade. O que ainda falta, se chega com organização, comenta ele.

A vida se reorganiza com o passado e o futuro. E como subir numa palmeira de açaí, exige habilidade. E enfrentamento do medo.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Nonada Jornalismo, escrito por Júlia Beatriz de Freitas

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