Cuias feitas por mulheres indígenas na Amazônia abasteciam mercado de luxo europeu no século XVIII

As peças eram igualadas às lacas e decoradas com motivos que recriavam padrões de bordados europeus e asiáticos.

Cuias ANT. Br. 193 e ANT. Br. 194. Museu da Ciência da Universidade de Coimbra (Foto de foto de Renata Martins, Coimbra, Portugal, 2023. Imagem reproduzida com permissão da Portuguese Research Infrastructure of Scientific Collections)

Utensílios domésticos ou objetos de uso ritual, as cuias estão presentes em vários ambientes culturais do Brasil, especialmente em comunidades indígenas ou ribeirinhas, mas também em grandes cidades da região amazônica, como Belém do Pará.

“Acredita-se que na Amazônia as cuieiras estejam entre as primeiras plantas cultivadas, e que provavelmente seu uso seja ainda mais antigo do que o das cerâmicas”, diz a pesquisadora Renata Maria de Almeida Martins, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora do Labya-Yala – Laboratório de Estudos Decoloniais – e do projeto “Barroco-açu: a América Portuguesa na geografia artística do Sul global” , contemplado com Auxílio à Pesquisa da FAPESP na modalidade Jovens Pesquisadores Fase 2.

No contexto do projeto, Martins fez uma análise detalhada da produção de cuias e cabaças envernizadas na região do Grão-Pará no século XVIII. Esses objetos estão preservados em museus de Portugal. Artigo a respeito foi publicado no periódico Heritage: “Lacquers of the Amazon: Cuias, Cumatê and Colours by Indigenous Women in Grão-Pará in the 18th Century”.

Importante destacar que essas cuias não eram feitas espontaneamente e de forma aleatória, mas produzidas em manufaturas mantidas por colonos ou no âmbito de missões religiosas na Amazônia. O ofício de pintoras de cuias era reconhecido no início do século XVIII. Os produtos dessas “fábricas” eram destinados majoritariamente ao mercado europeu, participando, portanto, do que, já naquele tempo, constituía um processo de globalização.

As cuias ressignificadas eram produzidas principalmente na Vila de Monte Alegre (antes aldeia indígena de Gurupatuba, atual Monte Alegre, Pará), em outras localidades da região do Baixo Amazonas e também em Belém, capital do Estado do Grão-Pará e Maranhão. O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), em sua Viagem Filosófica, coletou diversas delas, que, atualmente, fazem parte dos acervos do Museu Maynense da Academia das Ciências de Lisboa e do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. Em seu relato, Ferreira afirma que entre 5 mil e 6 mil cuias eram produzidas na Vila de Monte Alegre por ano, a maioria delas enviada para Lisboa. “Suas decorações diversificadas e complexas, referenciadas nas tradições indígenas e/ou com inspirações asiáticas e europeias, são exemplos que evidenciam práticas criativas e artísticas de resistência de mulheres indígenas, africanas e mestiças”, informa Martins.

Além de estudar as cuias do século XVIII, a pesquisadora visitou, em 2023, a comunidade de Carapanatuba, na região do Aritapera, Santarém, no Baixo Amazonas, onde esses objetos ainda são produzidos, agora por mulheres livres e empoderadas da região ribeirinha. Reunindo artistas das cinco comunidades do Aritapera, a Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém (Asarisan), criada em 2003, atuou de forma fundamental para que o “Modo de Fazer Cuias do Baixo Amazonas” fosse inscrito em 2015 no Livro de Registro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), como Patrimônio Cultural do Brasil.

“Constatei, como outros estudiosos igualmente relataram, que, em sua maior parte, a fabricação ainda segue o mesmo processo descrito por Ferreira. Mulheres como dona Lélia Maduro, Silvane Maduro, Marinalva Correia, Francisca Pereira, Socorro Pereira e outras das comunidades da região do Aritapera retêm conhecimentos ancestrais sobre a natureza, os rios, as plantas, os animais do lugar. Bem como sobre o longo processo de preparação de cuias envernizadas com o cumatê e ‘bordadas’ com incisões”, conta Martins.

No jardim que circunda a casa de dona Lélia e de seu marido, o senhor Antônio, existem diferentes tipos de árvores cuieiras (Crescentia cujete), que produzem frutos redondos ou ovais de diversos tamanhos. Eles são colhidos pelas mulheres no ponto exato de maturação desejado: quando, ao serem percutidos, produzem um som específico.

Os frutos são, então, seccionados com facão ou serrote, e as cuias resultantes são colocadas em uma grande panela de água fervente, para que as cascas amoleçam. Depois, a casca externa de cada cuia é cuidadosamente raspada com uma lâmina, a borda é alisada com a língua áspera do peixe pirarucu (Arapaima gigas) e o interior com a escama do mesmo peixe. A preparação final para aplicação do verniz é feita esfregando-se o interior e o exterior com as grandes folhas da árvore embaúba (Cecropia), uma espécie também presente na área próxima à residência da família. A cuia tratada, mas ainda sem verniz, é chamada de “pitinga”.

O processo de “laqueação” é feito com aplicação de tintura de cumatê, um líquido avermelhado produzido a partir da infusão de cascas de outra árvore da região, o cumatezeiro (Myrcia atramentifera). Após serem pintadas com várias camadas de tintura, as cuias são deixadas para descansar sobre um leito de areia ou cinzas e borrifadas com urina humana, permanecendo cobertas por uma noite inteira. A reação química entre componentes da tintura e da urina transforma o tingimento avermelhado em uma espécie de “laca” negra brilhante. Essa técnica, desenvolvida por mulheres indígenas do Baixo Amazonas, produz um resultado comparável e até superior ao da melhor laca da China (Rhus vernicifera ou Rhus verniciflua), conforme relatos do século XVIII.

Nas cuias atuais, produzidas para uso ou comércio, a iconografia de origem indígena, composta de motivos geométricos e abstratos, voltou a ser cada vez mais utilizada. “Porém, mesmo na época colonial, a produção das cuias, além de servir ao mercado de exportação, também atendia a funções importantes no contexto ritual. Em suas memórias, Ferreira relatou a resistência das mulheres indígenas de Monte Alegre em vender certas cuias, que possuíam miçangas e muiraquitãs, por seus significados sensíveis nas relações sociais das comunidades”, pontua Martins.

Produzidas por mulheres, as cuias também são simbolicamente associadas à fecundidade, aos mitos de criação e às antigas práticas de cura dos povos indígenas, sendo ainda hoje muito utilizadas para preparar e verter banhos terapêuticos e benzimentos; como também para servir alimentos típicos da Amazônia, como o tacacá.

Mas, no século XVIII, as oficinas instaladas nas vilas e nas missões religiosas redirecionaram essa tradição ancestral para atender ao mercado europeu, ávido por artigos luxuosos, como também por objetos considerados “exóticos”. Peças asiáticas, ou europeias de inspiração asiática, como porcelanas, sedas, bordados e até crucifixos de marfim, serviram de modelos para objetos de produção local que reinterpretavam aqueles importados.

“Artistas indígenas e afro-indígenas utilizavam técnicas como o embutido, a incrustação e o douramento, adaptando materiais amazônicos e plantas como a copaíba (Copaifera langsdorffii) e o jutaí (Hymenaea courbaril), por exemplo, para criar efeitos similares ao dourado presente nos objetos asiáticos. A participação das mulheres indígenas, a sua intimidade com a natureza da floresta, foi fundamental nesse processo. Tal contribuição e protagonismo, muitas vezes invisibilizados, são essenciais para compreender a complexidade das relações culturais e artísticas na Amazônia da época colonial e na atualidade”, conclui Martins.

O artigo “Lacquers of the Amazon: Cuias, Cumatê and Colours by Indigenous Women in Grão-Pará in the 18th Century” pode ser acessado em https://www.mdpi.com/2571-9408/7/9/230.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Agência Fapesp, escrito por José Tadeu Arantes

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