‘Cordão da Bicharada’: tradição une carnaval, crianças e meio ambiente no Pará

Desde a década de 70 o Cordão da Bicharada busca levar consciência ambiental para os foliões no Carnaval.

A comunidade da Vila de Juaba, na macrorregião de Cametá, no Pará, pode até não ser notícia no restante do ano, mas na época do Carnaval ganha visibilidade por sua tradição. A comunidade  realiza o Cordão da Bicharada, cordão carnavalesco que surgiu na década de 70 com o objetivo de conscientizar a todos sobre a preservação do meio ambiente. 

No artigo de Ivone Maria Xavier de Amorim Almeida, ‘O Cordão da Bicharada: a espetacularidade do Carnaval de rua em Juaba-Cametá/PA’, publicado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2020, a autora conta que realizou uma coleta de dados na localidade entre 2018 e 2019, vinculadas ao projeto “Festas, Brincadeiras, cortejos, procissões e Atos Devocionais: estudos sobre manifestações populares na Amazônia paraense”.

O objetivo era compreender a atuação dos brincantes no cordão durante o Carnaval. “O Cordão da Bicharada é considerado um bloco carnavalesco que homenageia a fauna da Amazônia através do uso de fantasias confeccionadas pelos moradores locais”, explica no artigo.

Foto: Raimundo Paccó

O município de Cametá é possui importância histórica e, por conta disso, é Patrimônio Histórico Nacional pela lei n°7537, de 16 de setembro de 1986, sendo considerado um dos mais antigos do Pará. A comunidade de Juaba comporta um conjunto de comunidades quilombolas e sua produção de farinha e outros derivados da mandioca são economicamente importantes para a região.

Culturalmente, o município, bem como a comunidade, segue os festejos católicos e as comemorações populares, como o Carnaval. E é nessa época que uma das mais conhecidas tradições locais ganha visibilidade: o Cordão da Bicharada, um bloco carnavalesco que homenageia os animais da Amazônia. 

Segundo Ivone, os animais são “simbolicamente representados pelos personagens de animais, com participações de moradores locais, adultos e crianças. O colorido das fantasias, o ato performático desenvolvido pelo corpo-brincante e a alegria contagiante gera uma visualização estética capaz de agradar aqueles que assistem à evolução do cordão da bicharada, na condição de expectadores”.

Foi partindo desse princípio que o trabalho de investigação foi realizado, na área da etnocenologia, como explica a autora: “para descrever o cortejo do cordão da bicharada e seus elementos estéticos no campo conceitual da teatralidade e da espetacularidade. Ao lado destas questões, o artigo também procura revelar o envolvimento dos brincantes do cortejo”.

Início da tradição 

O idealizador do Cordão é o mestre Zenóbio Ferreira, que afirma ter tido a ideia por conta de sua imaginação quando criança a partir das histórias que o pai contava sobre os animais amazônicos.

“Também se inspirou nos livros que leu em sua infância, particularmente, de uma frase lida em um desses antigos livros e nunca esqueceu. Sobre essa memória, seu Zenóbio diz: Estava lendo um livro, no qual tinha uma frase que me chamou bastante atenção que dizia assim: ‘as aves não tem onde pousar'[…] Passou vários anos, encontrei um livro na biblioteca por nome Mundo Animal que tinha várias figuras de animais. Era animal de tudo que era canto. Foi daí que surgiu a ideia de construir as vestimentas dos animais”, escreve Ivone no artigo.

Segundo Ivone, Zenóbio transpareceu uma preocupação que reflete os amazônidas: os prejuízos ao meio ambiente causados por queimadas e desmatamentos.

“[…] eu queria trazer uma mensagem da floresta para as pessoas, mostrando as dificuldades dos animais com a devastação das matas, com a poluição ambiental e como eles sobrevivem” 

(MESTRE ZENÓBIO, 2019)

Foliões caracterizados de bichos. Foto: Acervo de Mestre Zenóbio (2010)

“Nós tínhamos uma regra de não tirar as máscara e fantasias após o desfile porque queríamos conquistar o povo como bicho e não como gente”. E apesar disso ter causado estranheza no início, segundo o próprio criador, atualmente o bloco une a alegria do Carnaval, crianças – jovens, adultos e idosos – e a consciência ambiental.

E os animais são muitos: araras, jacarés, cobras, macacos, jabutis, tucanos, botos e muitos outros típicos da Amazônia. Mas isso não impede que animais de outros continentes como a girafa e o urso também tenham representações. Eles encantam com suas danças e performances ao som de marchinhas do próprio grupo, balançando o estandarte e percorrendo as ruas em cortejo.

No final, cada animal deixa uma mensagem de reflexão sobre preservação. “Este ato performático, encenado entre domador e animal, é o ponto alto do cortejo do cordão da Bicharada. Mestre Zenóbio relata que: Quando chega o momento da comédia (fala dos animais) em forma de círculo, no intervalo de uma música e outra e quando acionado pelo domador, o animal se manifesta em forma de diálogo […] e é interessante perceber que o jogo cênico contido no cordão da Bicharada, ao mesmo tempo em que permite a jocosidade, a brincadeira, também propicia aos expectadores momento reflexivo sobre a necessidade de preservação do meio ambiente, de sua flora e fauna”.

E claro que até as marchinhas cantadas durante as apresentações anseiam pela conscientização ambiental, como cantam neste trecho de ‘Não está com nada’, composta por Afonso Aragão:  “Quem faz devastação/ Zombando da floresta/ Fazendo queimada/ Não está com nada”.

A criação dos bichos 

Obviamente, a criação das vestimentas que representam os animais também foi outra preocupação do idealizador. Ivone relata que “na construção do primeiro experimento da cabeça, mestre Zenóbio usou o barro como matéria prima, gerando um objeto sem forma definida. Já o segundo experimento de modelagem permitiu ao artista confeccionar a cabeça de um leão, que se tornou naquele momento, o molde para confecção de outras peças.

E para manter o sentido de preservação, outros materiais também passaram a ser reutilizados na confecção das fantasias: sucatas, peneiras, talas de palmeiras, arame, sobras de tecidos, sacos de lona ou sarrapilheira, papel, isopor, corante feito urucum e carvão.

No início, lembra Zenóbio, eram pouco mais que uma dúzia de pessoas comprometidas com a brincadeira e em levar as mensagens de preservação, mas que hoje mais de 80 fantasias compõem o cordão, contando com a participação de vários comunitários – muitas crianças encantadas com os animais.

Representatividade cultural

Ivone Almeida acompanhou todo o processo e no próprio artigo argumenta que o Cordão da Bicharada de Juaba “já é considerado pelos moradores da localidade como parte indissociável de sua tradição cultural e, também, da cidade de Cametá, uma vez que Juaba pertence a macrorregião deste município paraense”.

Segundo a autora, essa manifestação cultural “tirou Juaba da invisibilidade regional”, uma vez que passou a ser realizado anualmente e que com seu crescimento, passou também a ser reconhecido como manifestação singular e inerente daquela comunidade. 

“Essa divulgação, cada vez mais recorrente do carnaval de Juaba, tem oportunizado a instauração do sentimento de pertença junto aos nascidos na comunidade em apreço que cada vez mais, tentam repassar essa valoração do lugar de origem e da cultura local aos seus descendentes. O recorte analítico realizado na construção deste artigo encontrou amparo na etnocenologia, concentrando o olhar investigativo nas categorias conceituais teatralidade e espetacularidade, posto que, à luz da etnocenologia, tanto teatralidade como espetacularidade se constituem em jogos cênicos presentes tanto no tempo ordinário quanto no extraordinário. Neste sentido, o processo de construção deste artigo privilegiou a compreensão do Cordão da Bicharada como evento ritual, no campo do extra cotidiano, e seu cortejo sendo marcado por vários sentimentos, expressos na fisionomia daqueles que acompanham o trajeto do cordão na condição de expectadores”, especificou a autora.

Confira o artigo completo, em português, AQUI.

Veja também um mini documentário produzido pela A Fábula com a participação do Mestre Zenóbio:

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