A celebração anual ocorre na interação dos fiéis com símbolos imateriais, que simbolizam a sua fé.
A maior celebração católica do mundo ocorre anualmente, em outubro, na capital do Pará. O Círio de Nossa Senhora de Nazaré é uma manifestação religiosa/cultural que reúne dois milhões de pessoas na grande procissão, dando forma a um espetáculo amazônico nas ruas de Belém.
A devoção à Nazinha, em nossa região, data do início do século XVIII, quando Plácido José de Souza encontrou uma imagem de Nazaré às margens do igarapé Murutucu. A história conta que Plácido levou a imagem para casa, mas ela reapareceu no local onde foi encontrada. O fato se repetiu por diversas vezes, até que ali fosse construída uma pequena capela. Atualmente, o local do achado é o endereço da Basílica Santuário de Nazaré, destino de milhares de peregrinos que agradecem a Nossa Senhora pelas graças alcançadas.
O encontro da Santa com o caboclo Plácido é o primeiro relato de interação entre um objeto material e o povo na história do Círio. Desde então, diversas materialidades simbólicas foram incorporadas, expandindo os sentidos que constituem a festa. A imagem da Santa continua sendo o elemento central, mas, além dela, há a corda que os devotos puxam, ligada à berlinda que transporta a imagem – sempre envolta em um manto, trocado a cada ano.
O cartaz de divulgação é mais um item que faz parte da vivência material do Círio: lançado anualmente em maio e adquirido imediatamente pelos fiéis, que o exibem em suas casas e locais de trabalho, a peça também estampa campanhas publicitárias na mídia e nos espaços públicos da cidade, como na barreira de fiscalização da Polícia Rodoviária Federal (PRF) entre os municípios de Ananindeua e Marituba, na Região Metropolitana de Belém.
Quando utilizamos a palavra “sentidos”, torna-se importante reconhecer sua ambiguidade, especialmente em relação ao Círio de Nazaré. O que o Círio significa para cada indivíduo? O que se sente ao participar do Círio e ao se aproximar da imagem de Nossa Senhora? Quem consegue responder a essas perguntas inevitavelmente cita os objetos símbolos da festa como componentes da experiência de devoção vivida coletivamente. Por isso podemos afirmar que o Círio é uma experiência de sentidos e sociabilidades que ocorre por meio da cultura material, ou seja, com as coisas que fazem parte do nosso mundo.
As considerações acima fazem parte da dissertação realizada no Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (PPGCom/UFPA), resultante de pesquisa conduzida entre os anos de 2020 e 2021. O estudo buscou refletir sobre o papel dos objetos materiais na constituição de processos comunicativos do Círio de Nazaré, considerando como esses processos foram adaptados durante a pandemia (período da pesquisa), que levou à suspensão das procissões e dos eventos presenciais nazarenos.
Além de sua natureza material, alguns objetos ganham “vida” durante o Círio. Um exemplo disso é a corda dos promesseiros, que foi utilizada pela primeira vez em 1855 unicamente para tirar a berlinda de um atoleiro em determinado trecho da procissão. Com o passar do tempo, a corda deixou de ser apenas um instrumento técnico para simbolizar sacrifício e aproximação com o sagrado, na metáfora de conexão umbilical entre a Virgem Maria e seus filhos. Durante a pandemia, a corda que não foi às ruas foi uma das ausências profundamente sentidas pelos participantes.
O desejo de ter uma imagem de Nossa Senhora leva à produção de diversos bens de consumo, como o cartaz de divulgação que é comprado, customizado e reproduzido em camisetas, feitas para grupos de amigos e familiares. A circulação econômica é também de ordem afetiva. O ato de colocar o cartaz na porta de casa, por exemplo, mesmo durante a suspensão das procissões, foi uma tradição mantida naquele contexto.
Outro hábito que se manteve durante a pandemia foi o almoço do Círio, reforçando a dimensão social da festa. As famílias que se reuniram para comer junto, fizeram-no em celebração pela vida e em memória de quem não estava mais à mesa. Seja no cenário de saúde desafiador, seja no Círio em que podemos nos abraçar, outubro em Belém é sempre uma oportunidade de encontro com lembranças afetivas e de conexão com as tradições paraenses.
Graças à vacinação em massa contra a covid-19, o Círio de Nazaré voltou ao seu formato completamente presencial desde 2022. Outra vez é tempo de sentir o clima da cidade que se prepara, sem restrições, para festejar a Rainha da Amazônia. E viva Nossa Senhora de Nazaré!
Gabriel da Mota é jornalista, mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pelo PPGCOM-UFPA. Acesse aqui a dissertação que deu origem a este artigo.
*Texto de Gabriel da Mota, originalmente publicado no Jornal Beira do Rio, da UFPA