A experiência escolar de pessoas trans: pesquisa realizada no Pará revela estratégias de resistência

Para sua pesquisa, a autora entrevistou Luz, Raio e Trovão, três mulheres trans e negras que iniciaram seu processo de transição ainda no ensino médio.

Imagine que, todos os dias, você se desloca até um determinado espaço. Nele, questionam as roupas que você está usando e o(a) impedem até de usar o banheiro. Nesse lugar, você precisa brigar para que respeitem seu nome e pronomes. Você volta para casa, dorme e, no dia seguinte, se prepara para enfrentar tudo novamente. Parece um pesadelo, mas esta é a realidade de boa parte dos estudantes que crescem sem se identificar com o gênero que lhes foi designado durante o nascimento. Para permanecer no ambiente escolar, os(as) estudantes trans e travestis precisam enfrentar verdadeiros leões diariamente, o que levanta as seguintes questões: como “(trans)passar” essas violências e qual a importância de propor um espaço educacional seguro para crianças trans e travestis?

O ambiente escolar é um dos primeiros espaços a introduzir crianças na vida em sociedade. Seu papel vai além de alfabetizar, pois também ensina padrões sociais que devem ser seguidos, por exemplo, o que é ser menino, o que é ser menina e como isso é designado pelo seu órgão genital no momento do seu nascimento. Mas há pessoas que não se identificam dessa maneira, e a resposta das instituições para aqueles(as) que fogem da norma é, na maioria dos casos, coercitiva, exigindo que os(as) que destoam “se encaixem” no padrão.

Esse é o tema abordado por Flamilda Moraes Paiva em sua dissertação ‘(Trans)viver: Narrativas de Resistência e Escolarização’. Flamilda, uma mulher cis, isto é, que se identifica com o gênero que lhe foi designado quando nasceu, afirma que sua motivação para a construção do trabalho foi observar as violências que suas amigas trans e negras sofriam dentro da sala de aula.

“Era comum vivenciarmos algumas violências, com elas sendo impedidas de assistirem às aulas de alguns professores por estarem com roupas e sapatos ditos femininos. Determinadas aulas eram espaços de extremo desconforto e elas só se sentiam seguras quando saíam do campo de visão dos professores e da coordenadora, como na biblioteca, por exemplo”.

Foto: Alexander Grey/Pexels

Luz, Raio e Trovão: três mulheres negras e trans

Para sua pesquisa, a autora entrevistou Luz, Raio e Trovão, três mulheres trans e negras que iniciaram seu processo de transição ainda no ensino médio. Embora as entrevistadas não se conhecessem, suas trajetórias se parecem e se assemelham às de muitas outras mulheres trans e travestis que precisam enfrentar preconceitos nos vários espaços de ensino brasileiro.

Ao longo das entrevistas, as mulheres pontuaram que sentiam a pressão de performar um certo tipo de feminilidade, que, na opinião delas, é o que se espera de todas as mulheres/pessoas com vagina. Percebiam que seus corpos eram sempre apontados como aqueles que fugiam da norma social e que deviam ser colocados em seu “devido lugar”, mesmo que, para isso, a instituição e seus funcionários tivessem que empregar violência.

As entrevistadas relataram uma série de violências transfóbicas sofridas dentro da escola, como o desrespeito com seus nomes sociais e com o uso de pronomes masculinos como forma de atacá-las. Narraram também casos de impedimento do uso de espaços, como o banheiro feminino, além do desconforto em certas aulas, como as de Educação Física, durante as quais eram forçadas a participar dos grupos masculinos. Eram situações que geravam cicatrizes à dignidade dessas alunas e reiteravam um sistema que as afastava da educação formal.

Como forma de transpor essas violências, as alunas desenvolveram alguns mecanismos de resistência. Luz contou que já precisou brigar com professores para ter seu nome respeitado. A aluna gravou áudios dos momentos em que o professor foi transfóbico e desrespeitoso. Quando questionado pela direção, ele tentou inverter o discurso, mas Luz estava munida das provas que comprovaram a sua versão da história e garantiram a punição ao professor pelo desrespeito.

Mas o ponto principal, segundo a autora, é a construção de uma rede de apoio entre alunas dentro de suas respectivas instituições. Quando precisavam ir ao banheiro, as alunas iam juntas. Nos casos de separação por gênero em alguma atividade, as alunas exigiam a presença das trans nos grupos femininos. A pesquisadora também destaca o esforço de alunas trans para serem exemplo de excelência para garantir respeito e reconhecimento.

Alta escolaridade garante espaço no mercado de trabalho

Trovão contou que se esforçava para alcançar as melhores notas nos três primeiros bimestres, para poder se ausentar das aulas mais cedo que os demais. Por meio desses mecanismos de apoio, as alunas trans e travestis conseguem não somente ocupar os espaços que historicamente foram negados a essa população, mas também se manter neles. Isso implica fortalecimento dessas pessoas dentro do mercado de trabalho, escapando de armadilhas como o subemprego e a prostituição.

Flamilda Paiva destaca que sua principal dificuldade foi desenvolver uma escrita objetiva, como exigem as produções acadêmicas. Ela conta que boa parte de sua história se relaciona com as de suas entrevistadas e de seus amigos próximos. “Minha expectativa sempre foi divulgar as múltiplas possibilidades de sociabilidade das mulheres trans, que quase sempre são citadas em cenários marginalizados, de prostituição, doença, violência e drogas. Penso neste trabalho como um ensejo para novas pesquisas, bem como uma fonte de conhecimento acerca da temática, sanando dúvidas e superando preconceitos. Falo isso de forma muito tranquila, pois, no início do curso de mestrado, nenhum colega sabia definir ou mesmo como se referir a uma pessoa trans. Nossa convivência e debates foram fundamentais para o rompimento de estereótipos que alguns carregavam”, relembra a autora.

Flamilda Moraes Paiva alerta para o número reduzido de trabalhos que abordem a comunidade trans e travesti no contexto da Educação. O levantamento bibliográfico realizado pela autora na plataforma da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) recolheu apenas 21 publicações desenvolvidas sobre o tema, no período de 10 anos. 

Desse total, somente duas pesquisas foram produzidas por mulheres trans. 

“Fala-se delas e por elas. Mas elas ainda muito pouco falam por si”, 

pontua Flamilda.

E para que pessoas trans e travestis tenham acesso ao ensino superior e à produção de pesquisas sobre suas próprias vivências, é necessário repensar o sistema educacional desde sua base, com atenção especial para as situações de violência que impedem esses corpos de alcançarem os espaços que desejem.

Quer saber mais sobre o tema?

Livros

A construção de mim mesma: Uma história de transição de gênero. Autora Letícia Lanz.
O que é transexualidade. Autora Berenice Alves de Melo Bento.

Filmes

Indianara. Documentário sobre Indianara Siqueira, uma das principais ativistas LGBTQIAPN+ da história do Brasil.
De gravata e unha vermelha. Documentário sobre transexuais, transgêneros, adeptos do crossdressing e entusiastas que debatem sobre o indivíduo e o corpo

Sobre a pesquisa

A dissertação ‘(Trans) Viver: Narrativas de Resistência e Escolarização’ foi defendida por Flamilda de Moraes Paiva, em 2022, no Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLSA/Campus Bragança), da Universidade Federal do Pará. A pesquisa teve a orientação da professora Sandra Nazaré Dias Bastos.

*O conteúdo foi originalmente publicado pelo Jornal Beira do Rio, da UFPA, edição 169, escrito por Jambu Freitas

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