“Égua mano, sai pra lá com esse teu olho de secar pimenteira”
Dificilmente um brasileiro, particularmente um paraense, que não domine o significado ou, quiçá, que não tenha proferido, ainda que, supostamente, como uma brincadeira, a expressão que inicia este texto, tratando, a priori, de um rótulo, atribuído a pessoas invejosas. Esse atributo pode dizer muito sobre os atravessamentos da pimenta na vida paraense, afetando desde aqueles que povoam as cidades amazônicas, como Belém até os que vivem nos territórios das comunidades rurais dessas paragens nortistas.
Esses atravessamentos da pimenta performam um conjunto de crenças que figuraram e emaranham pensamentos e os modos de viver nos territórios amazônicos, ao menos na comunidade Araí, meio rural do nordeste paraense, lugar onde a pimenteira e, particularmente, a pimenta malagueta aguçam um conjunto de verdades que regem suas crenças e seus modos de viver. Por essas “bandas” do Norte, as pessoas que carregam o atributo de “olho de secar pimenteira” são socialmente apontados como sujeitos que portam consigo certo estado sobrenatural, capaz de provocar na pimenteira mal tamanho, culminando com sua morte.
Ademais, esse atributo confere aos sujeitos outros rótulos, a saber: são invejosos e azarentos, capazes de contaminar pessoas com panema, mau-olhado, quebranto e outros malefícios físicos e espirituais.
Antes de prosseguir, cabe explicar que a panema se refere a uma categoria amazônica, cuja carga sobrenatural é socioculturalmente legitimada, ao atribuir às/aos caboclas/os certo estado e condição de empanemado, ou seja, afetado fisicamente e espiritualmente, ora por um mau-olhado, ora por um olho gordo ou ainda por um quebranto, provocados por um “olho de secar pimenteira” ou por um ser encantado (sobrenatural), atribuindo-lhes, primeiramente, má sorte e azar e depois doenças físicas, como febre, dores de cabeça e moleza no corpo, (PICANÇO, 2018).
Em Araí, o estado menstrual constitui-se impeditivo de proximidade da mulher e a pimenteira, ou seja, quando menstruadas as mulheres não podem “apanhar” (colher) pimenta, sob pena de causar malefício à pimenteira, ocorrendo desde a secagem das suas folhas, até a morte da planta. Além das mulheres menstruadas, as pessoas sarus ou tomadas por saruagem (que estão em início da gravidez, podendo estar saru tanto o homem como a mulher) também são incluídas na categoria “olho de secar pimenteira”, conforme afirmou Helena Picanço, nativa do lugar:
“Eu lembro que quando as pessoas estavam saru não podiam apanhar pimenta, porque a pimenteira murchava, morria. E isso acontecia mesmo. Eu ainda me lembro disso, podia ser com o homem ou com a mulher”
(Conversa, via WhatsApp, em 14/06/23).
Afora isso, Helena Picanço relatou que, outrora, a pimenta, particularmente a malagueta, performava outros atravessamentos em Araí:
Antigamente faziam defumação à base de pimenta malagueta nas redes de pescaria, isso era bom pra pegar peixe, dava sorte na pescaria. Também usavam a pimenta com sal para espantar o olho gordo. Não lembro exatamente como faziam, mas parece que misturavam a pimenta no sal e colocavam em um lugar da casa pra proteger.
(Conversa, via WhatsApp, em 14/06/23).
Então, percebe-se que a pimenta, especialmente a malagueta, aguça sobremaneira o imaginário dos araienses e quiçá dos brasileiros, de modo que não seria exagero reconhecê-la com um fruto sagrado dotado de poderes sobrenaturais, assegurando-lhes, situacionalmente, sorte, proteção, afinal, de vez em quando, nos deparamos com um agregado de pimentas, ainda que artificiais, pendurado nas portas das casas ou no pescoço de alguém, funcionando como amuletos de proteção e sorte.
Assim como promove e atribui sorte e proteção, a pimenta pode, dependendo da situação, provocar eventos marcados por discórdias, ao menos foi o que relatou Helena Picanço, ao afirmar que em Araí existem dois times de futebol: a Associação de Futebol Araiense/AFA e Náutico Esporte Clube, cuja rivalidade é latente. Anualmente, durante as férias de julho, os dois times promovem uma festa em suas sedes esportivas, disputando o público acirradamente. Segundo Helena Picanço, houve um ano que a festa do Náutico foi um fiasco. Tal fracasso só foi possível porque alguém do time rival, AFA, havia jogado nas dependências da sede uma porção de pimenta malagueta, provocando brigas entre o público presente, o qual esvaziou rapidamente a festa, causando prejuízos, inclusive financeiro, ao Náutico.
Aliás, essa competência da pimenta de causar intriga tem sido legitimada pelo pensamento sociocultural dos paraenses. Por aqui não se entregam pimentas diretamente nas mãos dos amigos, sob pena de a amizade ser afetada com intrigas e brigas futuras. Recomenda-se que as pimentas sejam colocadas em algum lugar qualquer, para posterior recolhimento.
Dito isso, torna-se importante reconhecer que os atravessamentos da pimenta na vida brasileira e amazônica são históricos. Na obra “História da Alimentação no Brasil” (2011), Câmara Cascudo reconhece os legados da pimenta, ou melhor, das pimentas, particularmente da malagueta, na mesa e na vida dos brasileiros, desde os primórdios de nossa brasilidade.
Cascudo (2011), assevera que “O condimento incomparável para o brasileiro é a pimenta, a pimentinha, companheira sem rival, transformando o peixe cozido em obra-prima, ressaltando os valores sápidos de todas as iguarias, aceleradora digestiva […]” (p. 478). O autor aponta para o gosto pela pimenta como uma herança herdada dos colonizadores portugueses, dos povos africanos, aqui escravizados, mas também dos povos originários dos territórios brasileiros, os indígenas e os caboclos.
Segundo Cascudo (2011) os Caiapós, por exemplo, em outrora faziam e consumiam uma bebida feita à base de pimenta, durou até que conheceram a cachaça. “Na África Oriental, Meridional, ocidental, a pimenta coincide com todos os paladares negros no tempo e no espaço. Quase tudo que se come na África obriga a presença queimante da pimenta” (CASCUDO, 2011, p. 479), predominantemente de duas espécies: Afromomum melegueta e Amomum grana paradisi.
O autor assegura que desde o final do século XVI, quando os africanos provaram a brasileiríssima pimenta malagueta: a Capsicum frutescens, ela tem ocupado lugar primeiro em suas preferências. Importa saber que essa pimenta brasileira foi “levada” pelos colonizadores para os territórios africanos.
Assim como os colonizadores levaram a nativa malagueta para o continente africano, também trouxeram para os territórios brasileiros as malaguetas africanas, as quais, segundo Cascudo (2011) não agradaram tanto, de modo que a malagueta nativa do Brasil manteve-se reinando absoluta no gosto, na mesa e na vida de africanos, colonizadores e dos povos nativos originários do Brasil. Aliás, o reinado se alargou, atravessou as fronteiras do Atlântico, cruzou o Mediterrâneo e alcançando outros gostos, a saber: dos espanhóis e dos indianos.
Nas terras brasileiras, imponentemente, a pimenta atravessava a mesa e a vida dos nativos. “Os indígenas brasileiros tinham o mesmo consumo genérico da pimenta, popular nas refeições, […] secas, piladas, servidas com farinha de mandioca e, às vezes, com um pouco de sal […].” Importa registrar que essa combinação; farinha de mandioca e sal escapou dos contínuos processos de apagamentos, próprios da colonização e se mantém como resistência. Essa herança alimentar segue viva, ao menos entre os caboclos mandiocultores da comunidade de Araí, os quais costumam fazer e comer a “Perua”, uma espécie de lanche feito à base da farinha de mandioca escaldada, pimenta e sal, conforme mostra a seguir.
Afora isso e conforme apontado no inicio deste texto, a vida araiense é, ordinariamente, atravessada e emaranhada por vivências performadas pela pimenta e seus variados usos. Por lá as pimenteiras e suas pimentas ajudam na composição socioespacial, “povoando” e colorindo as paisagens dos quintais e dos jiraus. Ademais, elas protagonizam as mesas e as práticas comensais dos ararienses, seja in natura e particularmente como molho ou, como dizem os nativos, como pimenta salgada, tratando-se de processos, também, conhecidos como pimenta na salga.
Os processos são dois: primeiro, quando as pimentas estão maduras, são colhidas e cortadas em tiras finas, as quais são, uma a uma, armazenadas em uma garrafa e ali com uma fina vareta as pimentas são levemente esmigalhadas e misturadas com sal a gosto. Para finalizar, acrescenta-se o suco de limão. O segundo modo de salgar as pimentas consiste em processá-las, triturá-las em um liquidificador. Ao mesmo tempo que se vai triturando, vai-se também acrescentando o suco de limão e o sal para posterior armazenamento em uma garrafa. Por fim, as garrafas de pimenta precisam ir ao sol por alguns dias para apurar o gosto, ficando própria ao consumo. Esses processos podem ser notados nas imagens a seguir:
Importa saber, que o primeiro modo de salgar a pimenta é mais antigo e quiçá uma prática ancestral, além de ser o molho preferido dos araienses, que dizem que essa técnica preserva com maior fidelidade o sabor da pimenta, ou seja, é mais saboroso, segundo os informantes araienses. Outros preferem o segundo molho, o qual é mais recente em Araí.
Faz-se necessário frisar que ambos os modos de salgar a pimenta exigem certas sabedorias e habilidades, as quais “pertencem” a algumas (poucas) mulheres araienses, como a conterrânea Carla, que faz do ofício de salgar pimenta um recurso para gerar renda e assim sobreviver. Eu mesmo sou freguês da Carla, sempre que vou em Araí negocio com ela dois litros de pimenta salgada, pois prefiro as salgadas manualmente.
Em Araí, assim como em outras as comunidades rurais do nordeste paraense, a pimenta tem lugar assegurado na mesa, seja com peixe cozido, com peixe assado, com camarão ou com sururu (mexilhão). Ela tem importância tamanha que, comumente, os quintais, os jiraus e as mesas caboclas são marcadas com a presença de uma garrafa de pimenta salgada, (PICANÇO, 2022).
Mas, esse gosto pela pimenta não é privilégio apenas das/os caboclas/os que povoam as paragens rurais. Contrariamente a isso, alcançam e emaranham também as/os paraenses que vivem nos territórios urbanos, como Belém e Ananindeua. Isso pode ser perfeitamente notado nas feiras e mercados das cidades paraenses, lugares que acolhem pessoas que vivem de vender pimenta salgada, como é o caso de Marco Vinício, 50 anos de idade, que desde os 12 anos comercializa tucupi (suco ou caldo amarelado, extraído da mandioca e utilizado na feitura de pratos emblemáticos do estado Pará: Pato no tucupi, tacacá, arroz paraense, etc.) e também pimenta no tucupi, na Feira da Cidade Nova IV, em Ananindeua, região metropolitana de Belém. Os produtos são comercializados na barraca que outrora pertencia aos pais do Marco (próxima imagem), o qual vive, exclusivamente, das vendas de tucupi e pimenta salgada.
A técnica utilizada por Marco é artesanal, muito parecida com o modo antigo de salgar das araienses. O que difere é que no lugar do suco de limão Marco usa o suco da mandioca, o tucupi. Certamente, o sabor é outro e tão apreciado pelas/os paraenses quanto no sabor limão. Aqui observei outra especificidade: além da pimenta malagueta, Marco utiliza com muita frequência a também brasileiríssima pimenta-de-cheiro (Capsicum chinense Adjuma), a qual se torna obrigatória nas feiras, nos mercados, nas mesas, tomando lugar primeiro nas preferências gustativas do povo paraense. A pimenta-de-cheiro é comumente comercializada nas feiras de Belém, acompanhando os maços de cheiro-verde (coentro).
Isso posto e antes de findar não se pode deixar de citar a capacidade afrodisíaca atribuída à pimenta. Há quem diga que ela aflora nas mulheres suas competências sexuais, conforme contou Lúcia Picanço:
“Minha ex-sogra dizia pra eu “maneirar” na pimenta, porque, segundo ela, a pimenta ativa e aguça a libido feminina, deixando a mulher mais fogosa. Ela dizia que a pimenta deixava a mulher mais assanhada, estimulava os desejos sexuais, deixando a mulher apimentada”
(Em conversa com Lúcia Picanço, em 05/07/23).
Findo este ensaio reconhecendo que a pimenta, seja ela malagueta ou de-cheiro, salgada ou in natura, é orgulho amazônico e paraense, pensada como cultura alimentar milenar e originária dessas paragens nortistas, aguçando em nós, povos da floresta e das cidades amazônicas, cosmovisões e lógicas de pertencimentos muito singulares, funcionando, ao mesmo tempo, como recursos material e simbólico, que sustentam nosso modo de pensar, viver e estar no mundo.
Referências
CASCULO, Luiz Câmara. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2011.
CARLA. [entrevista concedida] a Miguel Picanço, em Araí/PA, em 20 de jul. 2023. Entrevista realizada com fins de pesquisa.
PICANÇO, Lúcia, [entrevista concedida ] a Miguel Picanço, em Belém/PA, em 7 de jul, 2023. Entrevista realizada com fins de pesquisa.
PICANÇO, Helena. [entrevista concedida via watsApp] a Miguel Picanço, em Araí/PA, em 14 de jun. e 01 de jul. 2023. Entrevista realizada com fins de pesquisa.
PICANÇO, Miguel der Nazaré Brito. Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pelas trajetórias da mandioca, no e além do nordeste paraense. Belém/PA: Paka-Tatu, 2018.
PICANÇO, Miguel der Nazaré Brito. Comida Cabocla; uma questão de identidade na Amazônia: desde unam perspectiva fotoetnográfica. Belém/PA: Paka-Tatu, 2022.
Sobre o autor
Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).
*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.