O chibé como marcador das identidades caboclas da Amazônia paraense

Os atravessamentos nas experiências gastronômicas do Toró Gastronomia Sustentável.

A comida cabocla refere-se a um conjunto de práticas e experiências de comensalidades e sociabilidades vivificadas por milhares de sujeitos e famílias que ainda vivem nas comunidades rurais do nordeste paraense, mas também por aqueles que migraram para os centros urbanos daquele estado, como a capital Belém e sua região metropolitana. Esses sujeitos identificados como caboclos manifestam, segundo Rodrigues (2006, p. 126),

[…] uma diferença que se construiu historicamente, que se instalou de fora para dentro, do nacional para o local, e que se desdobra continuamente, contra, entre, dentro do espaço-tempo amazônico, com relação a seus diversos grupos populacionais pensados, nesse contexto, como primordiais […] Como uma raça de cultura mestiça e costumes atávicos; resistentes à modernidade, verdadeiros exemplos da contramodernidade que ainda sobrevivem no mundo ocidental.

(RODRIGUES, 2006, p. 126)

 A caracterização da autora sugere pensar os caboclos “[…] como uma identidade e cultura de resistência, posto que são sobreviventes de um processo aniquilador, mas que não os destruiu por inteiro.” (RODRIGUES, 2006, p.126). Concebê-los nesses termos corresponde ao reconhecimento “[…] da fala dos sobreviventes que estão entre as culturas, no meio da modernidade.” (BHABHA, 1999, apud RODRIGUES, 2006, p. 126).

Assim, trata-se menos de caracterizar o caboclo como uma figura residual, e sim de uma sugestão a educar o olhar e atentar para uma possível ambiguidade inerente à identidade cabocla, ou seja, percebê-lo “[…] como aquele que recusa a modernidade [e],ao mesmo tempo, está sempre pronto a adotar/copiar o novo”. (RODRIGUES, 2006, p. 128). E a autora segue reconhecendo o caboclo como uma diferença cuja identidade constitui-se em

[…] uma fronteira sempre em movimento – de expansão ou retração –, nunca igual a si mesma, sempre em transformação.Nesse movimento, na busca de “tornar-se outro”, é que se abre um espaço de reflexividade: ao dar significados à sua experiência de margens e movimentos, o caboclo pode, enfim, autoconstituir-se como uma fala, ao mesmo tempo heterogênea e autônoma, local e nacional, singular e plural.

(RODRIGUES, 2006, p. 128)

Chibé com camarão. Foto: Arquivo Pessoal

Sendo assim, a categoria caboclo “[…] ainda que, conceitualmente, imprecisa e politicamente não situada, deslocada entre fronteiras e margens, exatamente por isso pode permitir melhor o exercício de autorreflexividade sobre o contexto amazônico e a constituição de seus sujeitos” (RODRIGUES, 2006, p.128), que, mesmo dialogando com práticas globais, permanecem compartilhando hábitos e modos de vida que lhes são comuns, particularmente aqueles vivificados e protagonizados pelos modos de cozinhar, comer e compartilhar, que são próprios da cozinha regional cabocla. Isso funciona como marcador de suas identidades coletivas notadamente emaranhadas na história, nas paisagens, nas geografias, as quais dão concretude ao território que corresponde à Amazônia Atlântica e paraense.

Dito isso, importa saber que o comer caboclo é atravessado por um conjunto de sabores, tais como os das frutas silvestres (tucumã, taperebá, muruci, cupuaçu, etc.) e os da mandioca e seus derivados, a saber: goma, farinhas, mingaus, beijus, tucupi, tapiocas e a mandioca mesma. Desses alimentos, a mandioca e suas farinhas (farinha d’água, farinha seca, farinha lavada, farinha de tapioca, farinha para farofa, farinha com coco, farinha de carimã, etc.) ocupam centralidade, com considerável destaque para a farinha d’água, conforme indicado por Picanço (2018, p. 55): 

[…] Para os habitantes do Nordeste paraense, que têm como base primeira de suas alimentações a farinha d’água, mas também se deliciam com outros sabores que, decerto, tiveram sua ancestralidade na culinária ameríndia, pois, historicamente, a mandioca e seus descendentes têm se manifestado como a base daquilo que comemos.

(PICANÇO, 2018, p. 55)

A relevância da referida farinha pode ser notada nos diferentes modos como o povo paraense come e faz uso dela, convertendo-a em outros pratos tradicionalmente reconhecidos como marcador de sua identidade, como é o caso do chibé (imagem 1), que é um alimento singular, cujos ingredientes são farinha e água, por isso a simplicidade que a ele é conferida.

Conforme apontado por Picanço (2018), o chibé é uma das comidas mais importantes da mesa dos caboclos, em particular daqueles que ainda vivem no meio rural do nordeste paraense, onde, em tempos de outrora, a iguaria “[…] parecia funcionar como imperativo de sobrevivência: saciar a fome.” (PICANÇO, 2018, p. 126]. “[…] Funcionava como um elemento estigmatizador, indicador da pobreza daquele povo nortista.” E, por certo, em alguns lugares daquela região essa ainda seja a função do chibé:

“[…] Porém, de modo geral, os dados desta investigação apontam que faz algum tempo que comer chibé deixou de ser um indicador de miséria. Hoje o chibé é um dos pratos mais populares e apreciados pelo povo amazônico, principalmente pelos que vivem no interior […], mas também por aqueles que habitam nas cidades do estado do Pará e na sua capital Belém. Para esses paraenses, continuar comento chibé diz mais sobre suas escolhas, seus gostos alimentares do que sobre uma necessidade vital, afinal na atualidade eles dispõem de outros recursos que lhes asseguram o direito de escolher outras comidas, mas, mesmo assim, optaram por continuar comendo chibé, agregando a ele outros ingredientes, como pimenta, cheiro verde, cebolinhas, etc., e normalmente ele é comido acompanhado de camarão salgado, ou peixe também salgado”.

(PICANÇO, 2018, p. 126)

De todas as comidas derivadas da mandioca, o chibé parece habitar de maneira muito especial na mesa e na vida dos paraenses, pois nesse estado é comum a seguinte expressão: “eu sou paraense; sou papa-chibé”, o que significa dizer que a condição para ser um “autêntico” paraense reside na disposição do sujeito em fazer do chibé seu principal alimento. Aquele que interage e atenta com essa condição da iguaria é então reconhecido como papa-chibé.

Desse modo, pode-se pensar no chibé como um prato totem (CONTRERAS e GRACIA, 2011), o qual, por ser dotado de carga simbólica, sobressai-se de tal maneira que funciona como uma “carteira de identidade alimentar” (MACIEL, 2005) daqueles que habitam pelas terras do Norte.

Igualmente, torna-se necessário reconhecer que faz algum tempo que o chibé tem se deslocado das comunidades rurais do nordeste paraense e tem se manifestado, na condição de patrimônio cultural alimentar, não apenas nas mesas das casas citadinas daquele estado, mas também nas rotas turísticas de alguns restaurantes de Belém, como, por exemplo, na rota turística do restaurante Toró-Gastronomia Sustentável.

Os atravessamentos nas experiências gastronômicas do Toró Gastronomia Sustentável

É considerando os pressupostos teóricos e os frames que embasam a concepção do turismo cultural, nos quais o patrimônio alimentar adquire centralidade, que sinalizo para as experiências empreendidas pelo restaurante Toró-Gastronomia Sustentável, um projeto Gastro-socioambiental, que demonstra por meio da comida soluções ecológicas que potencializam atitudes cotidianas, visando à conservação da natureza. O Toró resulta de uma pesquisa transdisciplinar que une os saberes tradicionais a conhecimentos de muitas disciplinas com o propósito de promover a arte de comer de forma sustentável, por meio de investigações que buscam soluções sustentáveis (EcoSoluções). Tais soluções são associadas ou se referenciam às práticas alimentares dos povos amazônicos, intitulando-se de EtnoGastronomia Amazônica.

A carta de apresentação do referido restaurante já descreve que o Toró-Gastronomia Sustentável é autossustentável e se propõe a fomentar uma alimentação que represente a biodiversidade amazônica – região mundialmente conhecida como berçário do alimento – relacionando-a à sua expressiva geodiversidade: mineral e hídrica, cujos recursos naturais são característicos do Trópico Úmido. O projeto é viabilizado seguindo um modelo de negócio sustentável, ou empreendedorismo socioambiental, que valoriza e incentiva o consumo responsável e consciente dos recursos naturais em todas as etapas da cadeia produtiva do alimento: da Terra – à Cozinha – à Mesa.

Para o alcance de seus propósitos, o Toró desenvolve várias experiências no campo da gastronomia sustentável. Dentre elas, destaco aqui o projeto “Comida Cabocla que alimenta a cidade de Belém: identidade e práticas alimentares”. O projeto pretendeu homenagear a cidade de Belém, em alusão ao aniversário de sua fundação e ao mesmo tempo refletir sobre as comidas que marcam e definem a identidade e as práticas alimentares da população amazônica antes, durante e depois da fundação da cidade de Belém.

De acordo com Wagner Vieira, proprietário e chefe da cozinha do restaurante: 

Foi a investigação intrínseca do projeto que culminou no encontro com uma pesquisa etnográfica, já existente. E este encontro proporcionou ao Toró Gastronomia Sustentável, em parceria com o Espaço Cultural Valmir Bispo Santos, apresentar uma homenagem alusiva ao aniversário de 404 anos de fundação da cidade de Belém, celebrado no dia 12 de janeiro. 

(Entrevista concedida em 12 de janeiro de 2020).

Papa-Chibé servido no Toró. Foto: Reprodução/Toró gastronomia Sustentável

Dentre as ações que compuseram a programação dessa homenagem, estendida por todo o mês de janeiro do ano de 2020, estava a Mostra Etnofotográfica: “Comida Cabocla”, que reunia 20 registros fotográficos que “falam” das experiências de comensalidades e sociabilidades do povo caboclo que vive no nordeste paraense.

Durante o exercício do projeto, foi servido aos comensais visitantes – nativos e turistas – o prato autoral criado pelo Chefe Wagner Vieira, cujo nome é: “Papa-chibé: da raiz à folha”, conforme mostra a imagem 2. Segundo Wagner Vieira, esse é “um prato que consiste de um peixinho do dia, fresquinho, marinado no tucupi, empanado na farinha d’água e frito em azeite de palma acompanhado de purê de mandioca mansa ou doce – a nossa macaxeira – e arroz de maniçoba” (Fala de Wagner vieira durante conversa concedida em 12 de janeiro de 2020). 

Pode-se notar que o prato supracitado possui como matéria-prima a mandioca e seus derivados. A escolha pela mandioca para protagonizar o prato Papa-chibé pode ser justificada na fala de Wagner Vieira:

“Este é o alimento de destaque no prato e que consideramos ser: onipresente, potente, versátil e, acima de tudo, resistente em toda a sua existência na região amazônica, em particular na região que compreende o nordeste paraense e a capital do estado, a cidade de Belém, antes, durante e depois de sua fundação há 404 anos”.

(Fala de Wagner Vieira durante conversa concedida em 12 de janeiro de 2020).

Isso posto, faz-se necessário dizer que a morada do Toró reside no espaço cultural Valmir Bispo Santos, na cidade de Belém, capital do estado Pará. O referido espaço é um casarão centenário e compõe o patrimônio arquitetônico do Centro Histórico de Belém e, por essa condição, está inscrito no âmbito do projeto Circular cuja missão é 

“[…] De revalorizar o Centro Histórico da Cidade, atenta ao potencial da diversidade de espaços, coletivos e empreendimentos culturais sediados nos bairros da Campina, Cidade Velha e Reduto, que, por meio de um conjunto de atividades culturais, busca melhorar a apropriação e a utilização das estruturas e edificações do Centro Histórico de Belém, subutilizadas sobretudo nos finais de semana, ao estimular a criação e o fortalecimento de empreendimentos culturais e associados, desenvolvendo uma economia criativa e solidária, bem como o potencial turístico da região, garantindo o convívio e o bem-estar dos moradores, na busca pela transformação do perfil dos bairros históricos em atual estado de violência e degradação.” 

(https://www.projetocircular.com.br/o-projeto/)

Assim, torna-se notório que as experiências empreendidas pelo Toró, particularmente a que se inscreveu no âmbito do projeto Comida Cabocla, inscrevem-se em práticas que dialogam com os pressupostos da indústria turística, cuja finalidade é tornar as coisas atrativas aos visitantes, inclusive aquelas tidas como patrimônio cultural, dentre as quais se incluem os patrimônios alimentares. Nessa lógica, às coisas patrimoniais são incorporados novos elementos, como fez o chefe Wagner Vieira com a mandioca e particularmente como chibé.

Essa releitura dos elementos de identidade cabocla que marcam essas iguarias gerou um processo de singularização da alimentação regional, aproximativo ao que os Comaroff (2012) denominam de etnonegócio e etnomercadoria, quando discutem acerca da convergência de discursos acadêmicos e étnicos em torno desses empreendimentos do mundo pós-colonial: “en una época en que ‘las fantasias sirven quando la realidade fracasa’ […] el término cultura se refiere a esa noción que reivindican quienes pretenden afirmar una subjetividade colectiva objetificándola para el mercado” (p. 37).

Nesses projetos, os produtos culturais, ainda que singularizados como etnomercadoria e diferenciados de como se manifestam no cotidiano da região, mostram-se recursivamente capazes de assegurar sua condicão de patrimônio alimentar dos caboclos, seja daqueles que habitam as paragens rurais do nordeste paraense, seja dos que habitam Belém, sua região metropolitana e suas rotas turísticas. Isso ocorre porque, apesar da estranheza da etnomercadoria, ela “radica no fato de que, aparentemente, é refratária à racionalidade econômica habitual. Em parte, porque a diferença que apregoa pode reproduzir-se e intercambiar-se sem perder aparentemente seu valor original” (COMAROF e COMAROFF, 2012, p. 40).

Nessa perspectiva, segundo Prats (2006) e Ribas, (2014), o turismo funcionaria como lugar privilegiado para a continuidade da tradição. Isso é perceptível no caso do Toró, que dispõe no epicentro de suas experiências gastronômicas da ideia de que ali se tem a melhor, a mais tradicional e autêntica comida cabocla, tratando-se, portanto, de “[…] estrategia que contribuye a legitimar el patrimônio cultral y los atractivos de una localidad através de discursos y prácticas culturales y turisticas.” (WINTER, 2013, p.788).

Por fim, se faz necessário reconhecer que a mandioca e muito particularmente o chibé falam de um modo singular de comer e de viver dos caboclos e caboclas que habitam o nordeste paraense em geral e, em particular, dos que moram no meio rural dessas paragens paraenses e amazônicas, cujo saber fazer as coisas de comer e o comer propriamente dito, constituem-se em recursos políticos de resistência e afirmação, frente a outros repertórios alimentares. Trata-se, assim, de práticas de comensalidades e sociabilidades que persistem e se autalizam, mesmo em tempos e contextos que tendem a apagar experiências historicamente coletivizadas em detrimento de políticas e práticas de padronização da vida, inclusive dos costumes alimentares.

Desse modo, parece que a mandioca e o chibé tramam e dão conteúdos às experiências de sociabilidades e comensalidades do e nos contextos paraenses, permanecem operando como patrimônio cultural daqueles que habitam essas terras do Norte brasileiro e da Amazônia paraense.

Referências

COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores, 2012.

CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Rio deJaneiro: Fiocruz, 2011.

MACIEL, Maria Eunice. Olhares antropológicos sobre a alimentação: Identidade cultural e alimentação. In. CANESQUI, AM.,and GARCIA. Antropologia e nutrição: um diálogo possível, [online]. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2005, p. 2-55, 2005. Disponível em: https://books. scielo.org. Acesso em: 12 fev. 2016.

PICANÇO, Miguel de Nazaré Brito. Na roça, na mesa, na vida: uma viagem pelas trajetórias da mandioca, no e além do nordeste paraense. Belém: Paka-Tatu, 2018.

PRATS, L. La mercantilización del patrimonio: entre la economia turística y las representaciones identitarias. PH Boletín del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico, n. 58, p. 72-80, 2006.

PROJETO CIRCULAR. O Centro Histórico de Belém: do nascimento ao ostracismo. Disponível em: https://www.projetocircular.com.br/o-projeto/. Acesso em: 10 jun, 2020.

RODRIGUES, Carmem Izabel. Caboclos na Amazônia: a identidade Caboclos na Amazônia: a identidade na diferença. Novos Cadernos NAEA, v. 9, n. 1, p. 119-130, 2006.

RIBAS, J. S. Vi, Política i Espectacle: Procés de patrimonialització de la Cultura del Vi a la denominacióD’origenAlella. Barcelona: Es: UOC, 2014.

VIEIRA, Wagner. Entrevista concedida a Miguel Picanço. Sobre a escolha e a feitura do prato Papa-chibé. Belém, 2020.

WINTER, C. P. Patrimonialización, Turistificación y autenticidade em Exaltación de la Cruz, Argentina. Estudios y Perspectivas em Turismo, v. 22, n.4, p. 785-804, 2013.

Sobre o autor

Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista.


Publicidade
Publicidade

Relacionadas:

Mais acessadas:

Jacarerana, o lagarto amazônico que nada como um jacaré

O jacarerana é amplamente encontrado ao longo da bacia amazônica, incluindo o baixo Tocantins, o alto Orinoco, a costa do Amapá, no Brasil, e áreas da Guiana Francesa.

Leia também

Publicidade