Da roça ao festival: as manifestações da mandioca na Comunidade do Espírito Santo do Itá, na Amazônia paraense

Sua relevância é tanta, que no estado do Pará ela aciona um conjunto de práticas e relações sociais que historicamente foram elaboradas, coletivizadas e perpetuadas.

Assando o beiju. Fonte: arquivo do autor, 2018.

Para começar

Como já é sabido, a mandioca tem desempenhado papel decisivo na formação da História do Brasil. Sua relevância tem sido tanta que obras célebres como “O Índio na Cultura Brasileira”, Ribeiro (2013), “Importância sociocultural da farinha de mandioca no Brasil”, Marcena (2012), História da Alimentação no Brasil, Cascudo (2011), Casa Grande & Senzala, Freyre (2005), “Farinha, feijão e carne seca: Um tripé culinário no Brasil”, Silva (2005),”O que faz o brasil, Brasil?, DaMatta (1986)”, têm reconhecido e destacado sobremaneira sua importância, asseverando que a mandioca foi e continua sendo um dos mais importantes alimentos da mesa do brasileiro, senão o mais importante deles, funcionando como recurso que no decorrer do tempo desenhou não apenas a cozinha, mas também aquilo que se acostumou chamar de brasilidade, ou seja, a identidade do povo brasileiro.

Sua relevância é tanta, que no estado do Pará ela aciona um conjunto de práticas e relações sociais que historicamente foram elaboradas, coletivizadas e perpetuadas, particularmente pelos que vivem em Espírito Santo do Itá, onde faz algum tempo que o mundo-vida da mandioca tem se deslocado de suas roças e de suas mesas e tem povoado outros lugares e contextos, como o Festival da Mandioca.

Espírito Santo do Itá é uma comunidade com aproximadamente 180 habitantes, territorial e geograficamente situada no meio rural do município de Santa Izabel do Pará. A referida comunidade se difere das demais existentes no município por duas razões, a saber: é um território cuja população, na sua totalidade, é negra e se auto reconhece descendente de escravos, por isso, está em processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sua condição de comunidade quilombola. Afora isso, outra peculiaridade de Itá se refere à relação que seus moradores estabelecem com a mandioca e seus derivados.

Conforme contam os moradores mais antigos da comunidade, a história de Espírito Santo de Itá começou no século XVII, quando um grupo de franceses, chefiado pelo fidalgo Saint, trouxe escravos africanos do estado do Maranhão, se apropriou do território que hoje é povoado pela comunidade de Boa Vista, em Santa Isabel. Ocorre que, ameaçados pela presença dos portugueses, os franceses foram obrigados a deixar o lugar, inclusive os escravos, os quais, a partir de então tornaram-se livres. Na fuga os estrangeiros deixaram a imagem de são José, que hoje é o padroeiro da comunidade.

Agora, como homens livres os africanos passaram a povoar outro território, a saber, a extinta comunidade que se chamava “Dos Santos”. Nesse processo, o contato com os indígenas foi inevitável, resultando em aprendizagens que permitiram aos ex escravizados a domesticação da mandioca. Com o domínio das técnicas da mandiocultura, a plantação de mandioca e a feitura de seus derivados (farinhas, tucupi, goma, beijus, etc.) passaram a compor a cena principal no território em questão e na vida desse povo, o qual a partir de então ocupou novas terras, estabelecendo lotes de terras para si. Nesse tempo, cada família possuía um lote onde se construía uma casa e se plantava uma roça de mandioca.

Nessa organização geográfica e socioespacial, as famílias dispersaram-se, ficando longe umas das outras. Para resolver o problema da distância, os moradores decidiram então destinar um espaço exclusivo para o cultivo de suas roças de mandioca e outro para construir suas casas. Aqui houve um reordenamento que separou o lugar de trabalhar do lugar de morar, ao mesmo tempo em que reuniu o povo em um único lugar de moradia para todos. Foi nesse contexto que se fundou a comunidade do Espírito Santo de Itá.

Pela história pode-se perceber que, desde os primórdios, a existência da comunidade que hoje se chama Espírito Santo do Itá se confunde com o cultivo da mandioca e seus derivados. Ou seja, desde sempre, a mandioca parece ocupar lugar fulcral na história, na paisagem, na vida, na mesa, na economia e, portanto, no modo de ser, de estar e de viver no território do Espírito Santo de Itá.

A importância da mandioca para esse lugar é tanta que no ano de 2014 a comunidade contou com o seu Primeiro Festival da Mandioca, o qual ocorre, a partir de então, todos os anos durante o mês de abril, conforme mostram as imagens que seguem, as quais nos convidam a pensar e conhecer (Samain, 2012) as múltiplas manifestações operadas pela mandioca na comunidade desde múltiplas perspectivas: cultural, identitária, turística e econômica.

As imagens e o Festival

Por fim…

Importa frisar, que desde a primeira edição o referido Festival tem como principal atração à montagem de uma linha de produção manual e artesanal, a qual além de possibilitar aos visitantes o manuseio dos materiais, também dispõem a eles o conhecimento dos processos pelos quais a mandioca se converte em um conjunto diversificado de sabores, conforme mostrado nas imagens 1 a 12. Afora isso, durante o Festival todas as comidas ali produzidas são postas à venda. Ademais, o evento conta com um conjunto de manifestações e exposições que vão desde a apresentação dos tocadores de carimbó, conforme indicam as imagens 13 e 14, assim como as dançarinas e os dançarinos de carimbó (imagens 15 a 18). Ali, além de se escolher a mais ágil descascadora ou descascador de mandioca, conforme se pode perceber nas imagens 19 a 21, também se realiza um concurso para eleger a maior mandioca (imagens 22 e 23). E, como forma de reconhecer o saber fazer que diz respeito ao mundo-vida da mandioca, durante o Festival se entrega um certificado para os produtores mais antigos da comunidade, os quais são reconhecidos como Mestres mandiocultores.

Ademais, o Festival exibe uma manifestação que parece ser muito especial, a saber, a dança que dramatiza a lenda da mandioca, conforme se ver nas imagens 25 e 26. A importância dada a essa dança não é à toa, pois por meio dela são avivados o simbolismo e a história que pairam sobre a origem e a vida da mandioca. Pois diz a lenda que certa vez, em uma tribo, a filha de um poderoso Tuxaua engravidou. Esse fato teria causado vergonha e desonra para o pai da moça, que a expulsou da tribo. Esta passou a viver numa palhoça na beira do mato até dar à luz uma menina de pele extremamente branca. O avô, ao ver a menina, decidiu matá-la, pois creditava que sua cor demonstrava a insatisfação de Tupã.

Em uma dada noite, Tuxaua teve um sonho com um grande guerreiro branco que lhe dizia que sua filha seria inocente e que, portanto, sua neta deveria viver. Caso a matasse sofreria grande castigo, o que o fez desistir do assassinato.

A menina passou a chamar-se Mani e morreu antes de seu primeiro aniversário. Tupã ordenou que seu corpo fosse sepultado dentro da oca do Tuxaua, e assim foi feito. Todos os dias, os indígenas regavam a sepultura da menina, como era de costume entre eles. Passado algum tempo, nasceu sobre a cova da menina uma planta verde desconhecida, cujas folhas teriam formato de uma mão e quando os pássaros a comiam, ficavam embriagados.

Certo dia, a terra rachou ao pé da planta e emergiram raízes de cor marrom. Os indígenas as colheram, as descascaram e foram surpreendidos ao se depararem com o produto contido dentro da casca: a raiz branca como a cor da pele de Mani.

Acreditaram que era milagre de Tupã e passaram a se alimentar das raízes marrons de conteúdo branco. A partir de então, começaram a cultivar a planta e a batizaram com o nome de Mandioca ou Manioca, cuja tradução é: corpo de Mani. “Mani” remeteria ao nome da menina e “oca” ao local onde seu corpo foi enterrado.

Essa narrativa mitológica foi reconhecida pelos Correios Brasileiros que, no ano de 2012, colocaram em circulação “[…] selos que fazem parte da emissão especial, Série América: Mitos e Lendas e têm em comum o grafismo Marajoara, característico da região norte do Brasil […]” (Portal Brasil, p. 1, 2012), que retrata lendas de origem típica da cultura indígena brasileira. Um desses selos diz respeito à lenda da mandioca.

Ao que parece, a lenda da mandioca funciona como um recurso, uma narrativa que corrobora a ideia de que o cultivo dessa raiz remonta a tempos imemoriais, quando as terras brasileiras eram habitadas por aqueles que acostumamos chamar de indígenas, pois: “Quando os europeus desembarcaram no continente americano, no século XV, os ameríndios já haviam domesticado a mandioca há pelo menos 8.000 anos” (Silva e Murrieta, 2014). Por isso, Ribeiro (2013, p. 30), perfilha a ideia de que, “A mais importante planta alimentícia legada à humanidade pelo antigo habitante do neotrópico é a mandioca […]” que provavelmente foi domesticada na Amazônia.

Isso posto, retomo agora ao Festival da Mandioca que, segundo os organizadores (Antônio de Pádua e Sigla Regina), tem como finalidade fomentar a valorização do trabalho dos mandiocultores, assim como sensibilizar a comunidade quanto à importância do cultivo e manejo da mandioca como núcleo primaz da cultura agrícola da coletividade do Espírito Santo do Itá. Afora isso, o Festival tem funcionando como um vetor de valorização e divulgação da cultura da produção da mandioca e da comunidade (nível nacional e até internacional por meio das redes sociais, jornais e mídia televisiva), além de desenvolver o turismo comunitário, o qual tem assegurado geração de renda e melhoria na qualidade de vida dos comunitários.

Assim, torna-se notório que as experiências empreendidas no âmbito do Festival se inscrevem em práticas que dialogam com os pressupostos da indústria turística, cuja finalidade é tornar as coisas atrativas aos visitantes, inclusive àquelas tidas como patrimônio cultural, dentre as quais se incluem os patrimônios alimentares. Nessa lógica, conforme pode ser notado no texto do Festival, às coisas patrimoniais são incorporados novos elementos que geram um processo de singularização da alimentação regional, aproximativo ao que os Comaroff denominam de etnonegócio e etnomercadoria, quando discutem acerca da convergência de discursos acadêmicos e étnicos em torno desses empreendimentos do mundo pós-colonial: “en una época en que ‘las fantasias sirven quando la realidade fracasa’ el término cultura se refiere a esa noción que reivindican quienes pretenden afirmar una subjetividade colectiva objetificándola para el mercado” (2012, p. 37).

Nesses projetos, os produtos culturais ainda que singularizados como etnomercadoria e diferenciados de como se manifestam no cotidiano da comunidade do Itá, por exemplo, mostram-se recursivamente capazes de assegurar sua condição de património alimentar do lugar. Isso ocorre porque apesar da estranheza da etnomercadoria, ela “radica no fato de que, aparentemente, é refratária à racionalidade econômica habitual. Em parte, porque a diferença que apregoa pode se reproduzir e intercambiar-se sem perder aparentemente seu valor original” (Comaroff, e Comaroff, 2012, p. 40).

Assim, não seria descabido afirmar que o lugar que a mandioca ocupa na comunidade do Espírito Santo do Itá transcende a sua condição de alimento, de recurso material. Ela ocupa lugar que é próprio da comida e, sendo assim, está assentada no imaginário daquela coletividade, desempenhando elevado valor êmico e simbólico que marca e define a identidade coletiva daquela gente, daquele território quilombola, caboclo, nortista e amazônico. O lugar ocupado pela mandioca é de patrimônio cultural e alimentar da comunidade do Espírito Santo de Itá e, por isso, as experiências e as práticas dos moradores desse lugar com a mandioca e dela com eles constituem-se em fenômenos suscetíveis a novas e futuras observações.

Referências 

CASCUDO, L. da C, (2011). História da alimentação no Brasil (4ª. ed). São Paulo: GLOBAL.

COMAROFF, John L.; COMAROFF, Jean. Etnicidad S.A. Buenos Aires/Madrid: Katz Editores, 2012.

DAMATTA, Roberto, (1986). O que faz o brasil, Brasil? (1ª. ed) Rio de janeiro: Rocco, 1986.

FREYRE, Gilberto, (2005). Casa-Grande & Senzala, (51ª. ed). São Paulo: Global Editora.

MARCENA, Adriano, (2012). Mexendo o Pirão: Importância Sociocultural da Farinha de Mandioca no Brasil Holandês (1635 a 1646) ( 1ª. ed). Recife: Funcultura.

PORTAL BRASIL. Brasil terá selos com símbolos das lendas do guaraná e da mandioca. 2012. Disponível em: https://www.brasil.gov.br. Acesso em: 7 de ago. 2016.

RIBEIRO, Berta G., (2013). O Índio na Cultura Brasileira, (1ª. ed). Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro (coleção biblioteca básica brasileira; 22).

SAMAIN, Etienne, (2012). Como pensam as imagens (1ª. ed). Campinas, SP: Editora da Unicamp.

SILVA, Paulo Pinto E, (2005). Farinha, feijão e carne seca: um tripé culinário no Brasil (1ª. ed). São Paulo: SENAC.

SILVA, Henrique Ataide da; MURRIETA, Rui Sérgio Sereni. Mandioca, a rainha do Brasil? Ascensão e queda da Manihot esculenta no estado de São Paulo.

Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum. Belém, v. 9, n. 1, p. 37-60. 2014. Disponível em: www.museu-goeldi.br. Acesso em: 5 fev. 2017.  

Sobre o autor

Miguel Picanço é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UNISINOS/ PDSE/ODELA-Universidad de Barcelona) e pós-doutor em Antropologia da Alimentação: Alimentação, Patrimônio e Turismo (ODELA-Universidad de Barcelona).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista. 

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