Projeto de mestrado da Uepa abre o mundo da literatura para os cegos

“Vem cá, menino! Traz a lamparina pra eu ler uma história pra vocês”. A lembrança da fala da avó foi a inspiração para o título do projeto e tema da dissertação de mestrado da professora Joana Martins, aprovada com louvor em outubro deste ano, no Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Pará (Uepa). ‘Lamparina para Cegos: literatura acessível na Amazônia’ trabalha o desenvolvimento de livros falados para pessoas com deficiência visual, além de formar ledores – os intérpretes dos livros convertidos – e programar diversas atividades para dar visibilidade à luta por acessibilidade para a pessoa cega, principalmente entre acadêmicos. Em 2017, o projeto pretende disponibilizar livros falados de grandes nomes da literatura amazônica, como Haroldo Maranhão, Dalcídio Jurandir e Eneida de Moraes.

Joana se descreve como uma leitora voraz e atribui ao pai a paixão pela leitura. “Ele lia muito, sempre. E lia para nós. Criou oito filhos leitores”, relembra. A relação dela com a cegueira também veio através do pai, que perdeu totalmente a visão com o avançar da idade. Tornou-se educadora especial, voltada para o ensino de pessoas com deficiência visual. “Sinto neles essa mesma paixão pela leitura e é lamentável que o acervo para pessoas cegas seja tão limitado. Daí minha vontade de fazer algo para mudar essa realidade”, diz.

Foto: Nailana Thiely/Agência Pará
O projeto Lamparina é parte do Núcleo de Pesquisa Culturas e Memórias Amazônicas (Cuma) da Uepa e integra o programa Cartografias Poéticas da Amazônia. Sob a orientação da professora doutora Josebel Fares, Joana realizou pesquisa com alunos e professores cegos da Unidade Técnica José Alvares de Azevedo, dedicada à Educação Especial, após o desenvolvimento do primeiro produto do projeto: a tradução da obra de Daniel da Rocha Leite, “A história das crianças que plantaram um rio”. Joana e Daniel foram os ledores da obra e o autor cedeu os direitos autorais da gravação, hoje disponível gratuitamente em diversos sites.

A bela narrativa tocou Fábio Ribeiro, de 24 anos, cego desde os oito. “Quando ouvi o livro pela primeira vez, me emocionei bastante. Lembrei-me de quando era criança e passava férias no sítio da minha avó, em Abaetetuba. Eu pude visualizar a história, lembrar do rio, de nadar nele”, conta. Ele participou da pesquisa de Joana e ressalta a importância do acesso à literatura local. “Essas histórias falam de lugares que conhecemos, da nossa identidade enquanto paraenses, amazônidas. Nós, cegos, não temos acesso a este conteúdo, mas queremos ter. Precisamos ter”, clama o rapaz, que tornou-se ávido leitor por volta dos 14 anos, devorando títulos em braile e audiolivros.

O professor doutor da Universidade Federal de Pernambuco e cego de nascença, Francisco José de Lima, é referência no assunto da audiodescrição – descrição falada de imagens, lugares e pessoas. Ele esteve em Belém para participar da banca de defesa de Joana e ressaltou a importância de trabalhos que tratam sobre acessibilidade na academia. “Nós formamos aqueles que um dia serão professores, logo, essa é nossa responsabilidade. Este trabalho chega a ser uma forma de denúncia no campo da educação. Acredito que, a cada dia, teremos mais e mais pesquisas como esta, até chegar o dia em que toda escola incluirá em seu currículo o ensino de Libras e braile, que também são línguas oficiais no Brasil”, avalia.

O projeto trabalha ainda o aperfeiçoamento dos chamados ledores. “Todo ledor é leitor, mas nem todo leitor é ledor. Para sê-lo, precisa ser bom de prosódia. Desenvolver mais livros falados requer mais ledores. E eles são necessários também fora daqui. Nas escolas, nas comunidades. Por isso, incluímos essa qualificação no trabalho”, explica Joana. A equipe de ledores já está trabalhando na interpretação de “Miguel, Miguel e A Porta Mágica”, de Haroldo Maranhão; “Zeus, ou a Menina e os Óculos”, de Maria Lúcia Medeiros; “Carro dos Milagres”, de Benedito Monteiro; “Aruanda”, de Eneida de Moraes; “A Cidade Ilhada”, de Milton Hatoum; e “Chove nos Campos de Cachoreira”, de Dalcídio Jurandir.

Ainda não há uma data prevista para o lançamento das obras, feitas com base na Lei nº 9.610/98, que assegura a reprodução de obras literárias para fim de educação de pessoas com deficiência visual, desde que não haja fim lucrativo. O professor de braile do Instituto Álvares de Azevedo, Ronaldo de Carvalho, comemora os avanços do projeto. “Ter esse tipo de literatura será muito importante para a educação das crianças cegas, que poderão ter em sua formação esse tipo de conteúdo tão rico e que descreve bem o mundo a sua volta”, avalia.

Feliz com o retorno obtido com o projeto junto aos deficientes visuais, Joana pretende dar uma pausa antes de iniciar a tese de doutorado para poder concluir o trabalho prático e planejar as ações do Lamparina, sempre voltadas ao acesso das pessoas com deficiência visual à leitura. “Para a literatura ficar compreensível na ausência de luz, tem que acender a lamparina. Então, estamos tentando levar essa luz para as pessoas cegas, que têm direito a esse conteúdo”, conclui Joana. 
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