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Purus e Arary: a colisão em 1870 que marcou a história fluvial da Amazônia

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Navio a vapor “Pará e Amazonas”. Foto: Reprodução/ Facebook Amadeu Hermes

Na madrugada do dia 8 de julho de 1870, um dos maiores desastres fluviais da história da região Norte marcou tragicamente os rios amazônicos. A colisão entre os vapores Purus e Arary, nas proximidades do Lago do Rei, resultou em mais de 100 mortos e cerca de 73 sobreviventes, entre eles crianças, mulheres e trabalhadores da região. O evento marcou a memória da região e expôs as fragilidades da navegação na Amazônia do século XIX.

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O vapor Purus, da companhia Fluvial Do Alto Amazonas, zarpou de Manaus (AM) na noite do dia 7 de julho de 1872, com 204 pessoas a bordo e os porões abarrotados de mercadorias. Comandado pelo português Joaquim Corrêa de Brito, o navio seguia em direção ao alto rio Madeira, após uma viagem anterior já marcada por incidentes e tensão. Ao mesmo tempo, o vapor Arary, pertencente à Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas (do Barão de Mauá), subia o rio rumo à capital amazonense, com 228 passageiros. 

Ambos operavam rotas regulares entre Belém (PA) e Manaus, transportando passageiros e mercadorias, especialmente borracha, que naquela década movimentava intensamente o comércio da região.

Conforme narra o historiador e artista Moacir Andrade no livro ‘História, costumes e tragédias dos barcos do Amazonas’, as lojas de Manaus estavam agitadas na véspera da partida do Purus, com famílias comprando objetos e mantimentos para seus parentes nos seringais do alto rio Madeira.

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O acidente 

De acordo com o relato de Francisco Bernardino de Souza, em seu livro ‘Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas’, o Purus seguia sua rota normalmente na noite do dia 7 de julho, quando, por volta das 2h15 da manhã, colidiu com o vapor Arary, que viajava de Belém rumo a Manaus.

A curva fechada do rio, somada à escuridão da noite e à forte correnteza, impediu que os dois navios se avistassem a tempo, causando um choque violento. 

Purus
Navio a vapor desenhado por Moacir Andrade. Imagem: Reprodução/ Livro História, costumes e tragédias dos barcos do Amazonas

Os vapores navegavam pela mesma margem, em sentidos contrários, quando o Purus, comandado naquela hora por um prático embriagado, fez uma manobra errada e colidiu frontalmente com o Arary. O choque foi tão devastador que a proa do Arary penetrou o casco do Purus, dobrando-o quase ao meio. 

A cena foi descrita com horror: “Os gritos de terror dos que se achavam no Arary, confundiam-se com o gemer dos moribundos, com o estertor dos que se debatiam esmagados, com os gritos pungentes de soccorro que soltavam os do Purús”, declarou Souza em seu livro.

Segundo relatos no livro de Moacir Andrade, o Arary “entrou sobre o Purus como se fosse parti-lo ao meio”. O desespero foi tão grande que passageiros foram lançados ao rio, onde muitos se afogaram ou foram atingidos por fragmentos do navio, e outros ainda, tragicamente, foram devorados por jacarés que infestavam a região. 

As caldeiras do Purus explodiram após a colisão, acelerando o naufrágio e provocando ainda mais mortes. Além disso, a forte correnteza impediu que muitos alcançassem a margem, e os poucos botes lançados do Arary conseguiram resgatar sobreviventes, entre eles, 13 pessoas salvas pelo pescador Cirillo, que chegou ao local com sua canoa em meio ao caos.

Além disso, as mercadorias atrapalham a movimentação dos tripulantes e depois de muito caos entre os passageiros dos navios, o Purus afundou e os mortos foram encontrados flutuando nas margens do rio.

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Chegada a Manaus 

De acordo com Moacir Andrade, o navio Arary chegou a Manaus ao meio-dia do dia 8 de julho, com sobreviventes, feridos e mortos. A notícia do naufrágio se espalhou rapidamente pela cidade, provocando pânico e fazendo com que multidões invadissem o porto em busca de parentes. 

Purus
Porto de Manaus. Foto: Reprodução/Instituto Durango Duarte

O governo provincial enviou embarcações para buscar os possíveis sobreviventes. No entanto, nenhum novo corpo foi encontrado nos dias seguintes, apenas fragmentos do navio e alguns pertences pessoais boiando pelo rio.

Depoimentos colhidos pelas autoridades da província apontaram grave negligência por parte da tripulação do Purus. O tripulante Antônio da Silva Lacerda, responsável pelo leme, afirmou que o prático Madeira, mesmo advertido sobre o risco da rota, insistiu na direção imprudente. 

Além disso, ambos os práticos, segundo ele, estavam alcoolizados, e não havia nenhum oficial de comando no passadiço no momento do choque, o mestre dormia no convés inferior. 

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Repercussão do acidente 

Uma reportagem de investigação publicada no jornal ‘O Catechista’, em 6 de agosto de 1870, questionava duramente a narrativa oficial e a ausência de responsabilização dos envolvidos. Além disso, o periódico criticava a falta de uma apuração séria e cobrava explicações claras das autoridades e da própria companhia de navegação, criticando severamente a ausência de responsabilização e o excesso de ‘hipóteses vagas’ e ‘versões contraditórias’ circulando entre a população e nos jornais locais.

Purus
Página do jornal O Catechista relatando o ocorrido. Foto: Reprodução/Biblioteca Pública do Amazonas

Segundo ‘O Catechista’, o Purus navegava de forma imprudente, enfrentando correntezas e obstáculos perigosos ao tentar cortar caminho pela rota do rio Arary, uma escolha considerada ‘injustificável’ dadas as advertências anteriores.

A matéria expressava ainda o sentimento de luto coletivo e revolta que tomava conta da população: “Não basta lamentar os mortos; é preciso aprender com os erros, rever instruções, treinar melhor os tripulantes e garantir que tragédias como essa não voltem a acontecer”.

Uma terceira versão, publicada posteriormente em reportagem do jornal ‘A Crítica’, tenta reunir elementos de todas as fontes e oferecer uma síntese mais próxima dos fatos. O texto narra que, por volta das 11 horas da noite do dia 7 de julho, o navio começou a apresentar problemas estruturais, provavelmente uma fissura no casco ou falha na caldeira, o que teria acelerado seu naufrágio.

Estima-se que 135 pessoas tenham morrido, e a figura do imediato João da Mata Fleury é lembrada com heroísmo, pois morreu ao lado da caixa do leme, mostrando-se fiel ao dever até o fim.

*Por Rebeca Almeida, estagiária sob supervisão de Clarissa Bacellar. Os jornais utilizados como referência foram disponibilizados pelo Centro de Documentação e Memória da Amazônia e pela Biblioteca Pública do Amazonas.

Portal Amazônia responde: do termo ‘Grão-Pará’, de onde esse ‘Grão’ surgiu?

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A província do Grão-Pará incluía territórios que hoje pertencem os estados do Pará, Roraima, Amapá, Amazonas, Rondônia, Acre, Tocantins e Mato Grosso. Foto: Reprodução/MultiRio.

O termo ‘Grão-Pará‘ se refere a denominação que marcou por séculos a vasta região que hoje compreende o atual estado do Pará. Antes de ser apenas ‘Pará’, o território já foi capitania, província e estado, e seu nome está totalmente ligado à grandiosidade das águas que o banham especialmente à do rio Amazonas.

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O termo ‘Pará’ vem do tupi pa’ra, que significa ‘rio-mar’, e era uma forma de traduzir a imensidão do braço de rio que compõe o complexo ao sul da ilha do Marajó, alimentado principalmente pelo rio Tocantins. Era tão largo que os povos indígenas acreditavam estar diante do próprio mar.

O adjetivo ‘grão’, hoje pouco usado no cotidiano, era sinônimo de ‘grande’ nos séculos passados, como se vê em expressões como ‘grão-duque’ e ‘grão-mestre’, e foi nesse contexto que surgiu o nome ‘Grão-Pará’, ou seja, o ‘grande rio-mar’.

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Segundo o pesquisador e historiador amazonense Francisco Jorge dos Santos, autor de ‘Além da Conquista: guerras e rebeliões indígenas na Amazônia Pombalina’, no capítulo “Amazônia, uma colônia portuguesa diferente na América” o uso do termo ‘Grão-Pará’ tem origem na percepção portuguesa de que aquela região era marcada por proporções excepcionais.

“O ‘grão’ é só uma forma antiga de dizer ‘grande’. A ideia que se tinha na época era que o rio era muito grande, e achavam que ele até se confundia com o rio Amazonas”, afirma o historiador ao Portal Amazônia.

A designação também serviu como estratégia simbólica de posse e dominação num período em que Portugal disputava a Amazônia com potências estrangeiras.

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Como surgiu o Grão-Pará?

A Amazônia era um estado autônomo, e com a presença portuguesa na região começa oficialmente em 1616 a fundação do Forte do Presépio, que deu origem à cidade de Belém, inicialmente batizada como Santa Maria de Belém do Grão-Pará. Era o início da chamada ‘Terra de Feliz Luzitânia’, nome poético que logo deu lugar a uma nomenclatura mais estratégica: Estado do Maranhão, instituído formalmente em 1621.

Grão-Pará
Desenho de E. Riou a partir de croqui de M. Biard, 1862. Imagem: Domínio público/Biblioteca Nacional Digital

Em 1654, o governo português criou o Estado do Maranhão e Grão-Pará, separado do Estado do Brasil (cuja capital era Salvador). O objetivo era garantir maior controle sobre uma região repleta de riquezas naturais, de grande importância geopolítica e ameaçada por ingleses, holandeses e franceses.

“Por exemplo, lá no início do século 18 o que existia era o Estado do Maranhão, que mais tarde passou a se chamar Estado Maranhão e Grão Pará, e depois do Estado do Grão-Pará e Maranhão em 1751, depois o estado do Grão-Pará e Rio Negro em 1772, permanecendo assim até a independência, em 1822. Em seguida, com a formação do império, o território tornou-se a Província do Pará em 1823, perdendo oficialmente o grão”, detalhou Francisco.

A estrutura visava fomentar a economia local com a extração das chamadas ‘drogas do sertão’, especiarias como cravo, baunilha, cacau e urucum.

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A divisão do território do Grão-Pará

A antiga unidade territorial do Grão-Pará se manteve até meados do século XIX. Em 1850, por razões administrativas, a província foi desmembrada, dando origem à província do Amazonas, separando-se da região que permaneceu como Província do Pará, o que deu fim ao que já foi o imenso território do Grão-Pará.

O nome representava não apenas a tentativa portuguesa de consolidar sua presença na Amazônia, como também a percepção de que aquele território era grandioso demais para nomes comuns. Era, afinal, uma comunha portuguesa distinta no continente americano, como definiu o professor Francisco Jorge em seus estudos.

*Por Rebeca Almeida, estagiária sob supervisão de Clarissa Bacellar

Galeria do Largo celebra 20 anos como referência nas artes visuais no Amazonas

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Exposição Criaturas. Foto: Aguilar Abecassis/SEC-AM

A Galeria do Largo, localizada no centro histórico de Manaus (AM), celebra em 2025 seus 20 anos de atuação com uma trajetória marcada pela diversidade artística, inclusão e compromisso com a contemporaneidade nas artes visuais. 

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Desde sua fundação em 2005, o espaço se consolidou como uma das principais referências culturais do estado, tendo realizado 173 eventos e exposições, sendo 111 mostras individuais e coletivas, com um total de 469 propostas artísticas apresentadas ao público.

As comemorações pelos 20 anos da galeria começaram com uma série de exposições coletivas que ressaltam a produção artística do estado. Entre elas está ‘Criaturas’, uma mostra que reúne 22 artistas professores entre o grafite, muralismo, desenho e performance.

Outro destaque da programação é a exposição o ‘Mergulho Entre Mundos’, do Estúdio Buriti, que apresenta o trabalho de jovens artistas de Parintins com produções que transitam entre o grafite, muralismo, desenho e performance.

A programação inclui ainda a exposição da artista indígena trans Awa Mendes, que mescla pintura, desenho, intervenções murais e vídeos.

“É importante frisar que é uma artista indígena trans e que faz do seu trabalho um conceito de abrangência bastante interessante a nível nacional”, destaca Cristovão Coutinho, diretor e curador da galeria. 

O espaço também abriga uma exposição permanente da cidade fictícia de Santa Anita, além de uma mostra de fotografias do artista Alonso Júnior. da rede pública.

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Galeria do Largo
Exposição “Mergulho Entre Mundos”. Foto: Aguilar Abecassis/SEC-AM

Fundação da galeria

De acordo com Coutinho, os registros mantidos pela galeria a respeito da sua inauguração foram marcados por dois momentos importantes para a galeria.

“Nós temos duas datas em registros no memorial que nós mantemos aqui. Ela teve uma abertura no dia 4 de novembro de 2005, quando ocorreu no local uma exposição de cartazes de filmes históricos do cinema nacional, onde estava sendo realizada a abertura do segundo Amazonas Film Festival. Já na área de artes visuais a abertura acontece no dia 9 de dezembro de 2005, com a exposição de artes visuais dos artistas Sérgio Cardoso, Ottoni Mesquita e Jair Jacquemont”, afirma o diretor e curador.

A primeira diretora da Galeria do Largo foi Cléia Viana, que, ao lado do então secretário de Estado de Cultura, Robério Braga, idealizou o espaço com o propósito de integrar os artistas às políticas públicas culturais. 

Depois, passaram pela direção nomes como Sandra Praia e o artista Turenko Beça, que continuaram o trabalho de articulação e fortalecimento do setor. Desde 2018, sob a direção de Cristovão Coutinho, a galeria tem buscado aprofundar o diálogo com os diferentes territórios e sujeitos criadores, acompanhando a materialização de suas ideias em obras.

Como expor na galeria do Largo

Artistas interessados em expor seus trabalhos podem enviar propostas para o e-mail da galeria (galeriadolargo@cultura.am.gov.br), desde que alinhadas à contemporaneidade das artes visuais. 

“Uma proposta que tenha uma relação na contemporaneidade e que trabalhe as artes visuais de uma maneira atualizada para que a gente possa ter uma relação, eu diria, de interação com o público visitante”, afirma o diretor.

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Outros projetos da galeria

A galeria mantém ainda projetos como o “Espaço Mediações”, atualmente em sua 8ª edição, que promove encontros entre artistas e curadores, e o evento bienal Amazonas Artes Visuais, realizado em 2022 e 2024, com programação que inclui exposições, seminários e oficinas. 

Ambos têm como objetivo ampliar as conexões entre a produção local e o circuito artístico nacional, fortalecendo o papel do Amazonas no mapa da arte contemporânea brasileira.

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Obras expostas no espaço Mediações. Foto: Michael Dantas/SEC AM

Ao longo de duas décadas, cerca de 250 mil pessoas já visitaram a Galeria do Largo, sendo 150 mil nos últimos sete anos. “Nosso público vem crescendo e se diversificando. É um espaço vivo, onde o visitante é convidado a refletir, interagir e se conectar com a arte”, ressalta Coutinho.

Durante os 20 anos de existência, a galeria não apenas acolheu artistas consolidados, mas também deu visibilidade a novos nomes da cena artística local e nacional. “Aqui nós temos artistas indígenas, pretos, de arte urbana, arte de artistas LGBTQIA+ e nós estamos atualizados nessa produção do sistema de arte contemporâneo da arte brasileira”, reforçou o diretor. 

Além das exposições, o espaço tem investido em ações  como rodas de conversa, oficinas e seminários. Essas atividades ajudam a estreitar o vínculo entre artistas, curadores, pesquisadores e o público em geral, promovendo não apenas o acesso à arte, mas também à reflexão crítica e à formação de novos olhares.

A Galeria também mantém vínculos com outras instituições culturais, como a Casa das Artes, onde algumas programações são levadas em momentos específicos, ampliando o alcance de suas ações.

*Por Rebeca Almeida, estagiária sob supervisão de Clarissa Bacellar

Ritual da Moça Nova é tema de livro que valoriza a cultura Tikuna

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Variedade de mascarados e as cores utilizadas pelos Tikuna. Foto: May Anyely

O Ritual da Moça Nova, ou Festa da Moça Nova, é um dos rituais de iniciação mais expressivos da etnia Tikuna e a professora Cláudia de Moraes, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mergulhou na cultura em sua pesquisa de doutorado, resultando na obra ‘O ritual da moça nova do povo Tikuna: diálogo intercultural e os direitos dos povos indígenas no Brasil’.

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O livro reúne informações sobre um dos rituais de passagem feminino mais importantes do povo indígena e parte de uma experiência pessoal da autora com a etnia Tikuna, o maior grupo indígena do Brasil, que ressignificou sua percepção sobre o ritual.

“Em uma primeira impressão me pareceu um ato de violência e a minha pesquisa inicial era tratar da violência contra a mulher indígena tikuna, tendo como plano de fundo o ritual. Quando eu comecei a pesquisar, principalmente quando eu fui assistir o ritual pela primeira vez, juntando com as minhas leituras, eu tive a compreensão de que, na verdade, não se tratava de uma violência, mas sim de um exercício da prática, de um direito à cultura e à tradição”, declarou Cláudia de Moraes ao Portal Amazônia.

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De acordo com Cláudia, o ápice do ritual é o arrancar dos cabelos das meninas, que fora de contexto pode ser visto como um ato de violência, como ela mesma chegou a pensar, mas no contexto do ritual é a prática de uma cultura que para eles é muito importante. Além disso, os rituais para os Tikunas são também exercícios de proteção, já que eles entendem que estão protegidos se os praticarem e cumprirem com aquilo que lhes foi ensinado.

Durante a pesquisa, a professora contou com o apoio do indígena Itamar, membro da etnia Tikuna e estudante de Antropologia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), que “foi fundamental” na mediação entre os saberes tradicionais e o olhar acadêmico. “Ele me ofereceu não apenas a visão interna do ritual, mas também uma perspectiva antropológica valiosa”, relata Cláudia.

Barracão onde o quarto de isolamento usado no ritual é colocado. Foto: Cláudia de Moraes

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Segundo ela, os líderes Tikuna receberam a pesquisa com abertura e interesse. “Quando se pede autorização de forma respeitosa, a comunidade acolhe. O cacique colocou Itamar à disposição, e isso fez toda a diferença na compreensão do que vivenciei”, afirma.

Ritual da Moça Nova

A festa da moça nova é normalmente realizado em três dias com a presença de muitas danças e instrumentos musicais feitos pelos indígenas, especialmente para a celebração. As moças que atingem a primeira menstruação naquele período ficam em isolamento dentro da suas casas, onde aprendem a arte, o artesanato e como devem ser como esposas na cultura Tikuna.

O ritual é sempre realizado entre sexta e domingo. Na sexta-feira acontecem os preparativos quando a moça é colocada em um quartinho de isolamento preparado exclusivamente para esse momento.

Quarto de isolamento das moças. Foto: Cláudia de Moraes.

No sábado pela manhã são realizadas danças e por volta do meio dia as moças são retiradas do quarto de isolamento para serem apresentadas. Após a apresentação acontece a ‘pelação’, momento em que as moças tem fios dos cabelos arrancados e se recolhem.

Momento do arrancar dos cabelos. Foto: Cláudia de Moraes.

No domingo acontece o banho de rio, quando a moça é levada em uma espécie de tapete, já que ela ainda não pode colocar os pés no chão, e é colocada dentro da água junto com todos os objetos utilizados no ritual, como uma forma de purificação.

Após o banho de rio, que o cacique e comunidade participam ativamente, ela volta para casa ciente de que cumpriu ali o que determina a etnia. 

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De acordo com Cláudia, o ritual teve origem a partir de um relacionamento incestuoso em que a esposa do líder Tikuna coabitou com o cunhado, o irmão do líder, e por conta dessa infração o ritual foi instituído para a etnia.

“Em hipótese alguma, para os Tikuna pode haver casamento entre os cunhados, por exemplo, entre pessoas da mesma nação, do mesmo clã, vamos dizer assim. O ritual da moça nova serve para isso, ele institui um impedimento dos relacionamentos incestuosos dentro da comunidade e é também um ato de obediência, porque elas precisam obedecer a liderança”, declarou a pesquisadora. 

O livro

moça nova
Foto: Reprodução

A escrita do livro, desenvolvido durante a pandemia, representou um desafio, segundo Cláudia. Ela afirma que, ainda assim, o processo “foi profundamente gratificante”.

“Foi difícil, sim, mas extremamente prazeroso a partir do momento em que compreendi que o ritual da moça nova não era um ato de violência, como imaginei inicialmente, mas um ato de fortalecimento da etnia, da tradição e da cultura do povo Tikuna”, destacou.

A obra é resultado de sua tese de doutorado e foca especificamente no ritual, embora a autora também defenda, de forma mais ampla, o direito dos povos indígenas de manterem e praticarem suas tradições culturais.

Ela ressalta que a compreensão sobre o que é ‘direito’ também se transformou ao longo da pesquisa. Para a professora, impedir que os povos indígenas realizem seus rituais é uma forma de violência, pois esses rituais estão diretamente ligados à identidade, à intimidade e à proteção espiritual das comunidades.

“Meu desejo é que os leitores não indígenas se apaixonem por essa cultura e reconheçam a importância da preservação das práticas originárias. Os povos indígenas não só protegem o nosso meio ambiente, mas também carregam um saber ancestral essencial para o nosso país”, finaliza.

O lançamento aconteceu nesta quinta-feira (17), na Galeria de Artes do ICBEU Manaus, na Avenida Joaquim Nabuco, 1286, no Centro da capital amazonense.

*Por Rebeca Almeida, estagiária sob supervisão de Clarissa Bacellar