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Povo Kokama, no Amazonas, tem história marcada por fugas e pressão política

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Os indígenas não sabiam ler, mas resgataram a oralidade de seus antepassados para explicar como seu povo, os Kokama, vieram do Peru para habitar aldeias no Alto Solimões, no Amazonas.

Na virada do século 19 para o 20, provavelmente fugindo da colonização espanhola na Amazônia peruana que obrigava os indígenas a trabalhos forçados, quatro famílias da etnia Kokama se encontraram no Alto Solimões, no Brasil, longe dos seus algozes. Em uma área de várzea, às margens do grande rio, o grupo encontrou as condições naturais que permitiram manter vivas suas tradições e cultura. Por quase 100 anos, os Kokama ocuparam pacificamente as terras ao redor da aldeia Acapuri de Cima, no Amazonas, sem se preocupar onde era a fronteira do território. Até a chegada do homem branco.

“Certa vez chegou um tal de Zé Ferreira prometendo nos ajudar em troca de votos na eleição. Mas os indígenas não votaram e ele então ameaçou nos expulsar”, lembra o ex-cacique Aty Manã, o Eduardo Januário, 80 anos. Ameaçados de perder suas terras, os Kokama não sabiam muito bem o que fazer. Foi então que eles deram início a uma verdadeira saga, por mais de três décadas, em busca da demarcação e do direito sobre o seu território ancestral.

Foto: Christian Braga/InfoAmazonia

“Nossos pais não chegaram aqui em um barco da Europa, eles vieram por esse rio, procurando lugares melhores para viver. Somos filhos dessa floresta. Foi aí que eu decidi ir atrás de saber dos nossos direitos, aquela terra era nossa casa, tudo que tínhamos”, 

contou Januário ao lado do seu fiel parceiro nessa jornada, Umari, o Benjamin Santiago, hoje com 70 anos, e que na época era vice-cacique.

A reportagem da InfoAmazonia chegou à Terra Indígena Acapuri de Cima, próxima da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, em 6 de setembro deste ano. Um dia antes, o presidente Lula (PT) havia homologado a demarcação definitiva do território e reconhecido a ocupação tradicional dos indígenas da etnia Kokama. Para chegar até lá, é necessário uma longa viagem de 24 horas em uma lancha rápida. De barco convencional, saindo de Manaus, são mais de cinco dias navegando pelo Rio Solimões. Mas no final dos anos 80, quando Januário e Santiago descobriram que esse também era o caminho para buscar o reconhecimento dos direitos indígenas, uma viagem até a capital poderia demorar meses.

Januário (esquerda) e Santiago (direita) viabilizaram documentação e desenharam mapas para confirmar ocupação tradicional indígena, que levou mais de 30 anos para ter demarcação confirmada pelo presidente Lula. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

“A gente não tinha dinheiro nem para ir, nem para voltar. Íamos pegando carona com os barcos que desciam o rio e dormíamos nas aldeias que tinham pelo caminho. Na cidade, a gente dormia na rua mesmo”, lembra Santiago, que nos últimos anos se mudou para Manaus para acompanhar o tratamento de saúde da sua esposa.

Por muito tempo, a demarcação do território não era uma necessidade urgente para os Kokama de Acapuri de Cima. Mas o fato de não terem votado em Zé Ferreira para prefeito colocou o território em risco. Na época, explica Januário, a maioria dos indígenas não tinha título de eleitor e os que tinham votavam em Jutaí, município que fica na outra margem do Solimões, a poucos minutos de canoa da aldeia. Já a sede de Fonte Boa, onde Zé Ferreira queria que os indígenas votassem, fica a mais de 120 quilômetros, um trajeto de no mínimo um dia inteiro de barco.

Terra Indígena Acapuri de Cima foi homologada em setembro deste ano depois de mais de 30 anos de espera. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

“Quando ele viu que os indígenas não votaram, disse que era dono das terras e iria expulsar a gente. Que ia nos jogar em algum lugar de Jutaí. Eu fui até Manaus e desenhei lá para o pessoal da Funai qual era a nossa área”, conta Januário, que, apesar de não saber ler nem escrever, conseguiu identificar no mapa os lugares de uso comum dos indígenas, os pontos de roças, de coleta e de caça. 

A memória que tinham da história contada pelos pais, que só falavam em kokama, língua nativa de origem Tupi, ajudou os antropólogos a reconstituir a migração dos Kokama, que saíram da região de Caballococha, no Peru, para viver no Alto Solimões. No entanto, esse processo se arrastou mais que o esperado. 

Januário guarda os registros da luta pela demarcação e aponta foto em que ele e Santiago desenham área ocupada pelos indígenas para técnicos da Funai. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia

Identificação e delimitação do território 

Januário e Santiago estiveram na Funai em Manaus em 1991 e em 1995. Na segunda visita ao órgão, parte da Terra Indígena já estava sendo invadida, principalmente para retirada de madeira, contam os indígenas.

A portaria para identificação e delimitação do território só foi publicada em 1997. Já a confirmação da delimitação da área, feita com base nas informações de Januário e das pesquisas técnicas, só ocorreu em 1999.

“Cada vez que a gente ia para Manaus, as nossas expectativas aumentavam, mas sempre tinha um novo caminho a se fazer. Mas seguimos firmes e unidos na luta”, diz Santiago.

As idas e vindas viraram história para contar e exemplo para toda comunidade. Januário lembra que se não fosse a pressão e o risco real de serem expulsos, talvez os Kokama estariam até hoje vivendo como sempre fizeram naquela região.

“A gente não sabia nada, só sabia que éramos índios e que estávamos há muito tempo naquela terra. Fomos descobrindo que tinham leis para proteger nossos direitos, fomos descobrindo os caminhos sozinhos. Foi praticamente uma vida toda nessa luta”, 

lembra Januário.

A dupla se alternou nos cargos de cacique e vice-cacique de 1980 a 2017, quando ambos se afastaram para cuidar da própria saúde ou da saúde de familiares. A homologação da Terra Indígena em setembro deste ano pegou os dois de surpresa. Januário foi avisado por um telefonema do genro, que estava em Manaus, viu a notícia pela televisão e tratou de avisar prontamente Santiago.
Por mais de 30 anos aguardando a demarcação definitiva, povo Kokama na TI Acapuri de Cima preservou a floresta e própria cultura sob ameaças de serem expulsos. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

Agenda ambiental no centro da cultura Kokama 

No início dos anos 90, quando o mundo despertou para a pauta climática, Benjamin Santiago já sabia há muito que os indígenas só sobrevivem nesse mundo se preservarem também suas florestas. No Alto Solimões, por essa mesma época, o dito desenvolvimento fazia a população das cidades crescerem —mas não necessariamente em indicadores sociais. Jutaí, por exemplo, cidade mais próxima da TI Acapuri de Cima, tem uma das maiores desigualdades sociais do Brasil e um Índice de Desenvolvimento Humano Médio (IDHM) entre os mais baixos do país. O único acesso à cidade é de barco e a maioria dos suprimentos chega de Manaus.

A essa altura, não era somente Zé Ferreira que estava de olho nas terras dos indígenas: “até 1990, praticamente não existia contato com os não indígenas, mas, depois, a pressão vinha de todos os lados”, conta Santiago. 

Francieti Estevão Santiago cultiva milho, melancia, mandioca e jerimum. Enquanto os homens passam dias pescando, as mulheres cuidam da roça. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

Na época, ele buscou capacitação para fazer a preservação ambiental da Terra Indígena e foi um dos primeiros na região a implantar um sistema de manejo de peixes nos lagos da comunidade, ajudando a transformar a pesca, que já era uma habilidade nata dos Kokama, em meio de geração de renda.

“Nós sabíamos que os de fora estavam vindo para tirar as riquezas da nossa terra e, para nós, só tem sentido viver na terra se pudermos preservar”, contou, lembrando do sucesso que foi a primeira safra da empreitada.

No primeiro manejo dos indígenas de Acapuri de Cima no lago Mata-Mata, segundo Santiago, foram capturados 5.800 tambaquis. Na época, eles conseguiram melhorar a safra para vender o excedente na cidade. Até hoje, o manejo do tambaqui e do pirarucu é uma das principais atividades da comunidade junto da agricultura. Nas boas épocas para a pesca, como a da visita da InfoAmazonia à aldeia em setembro, os homens vão para o lago e ficam lá por dias, enquanto as mulheres cuidam das roças.

Cultivo agrícola na TI Acapuri de Cima. Foto: Reprodução/Mongabay 

Indígenas chegaram ao Brasil fugindo dos espanhóis 

A homologação da Terra Indígena deixou os Kokama da Acapuri de Cima mais tranquilos. “Agora ele [Lula] cadastrou, homologou e tá reconhecida”, diz Januário. Mesmo assim, as pressões continuam de outras formas.

Recentemente, as atuais lideranças que estão no cacicado do território firmaram acordos para desenvolverem um projeto para venda de créditos de carbono que é gerado com a preservação da floresta, que cobre praticamente toda Terra Indígena. O projeto é recheado de contradições.

Januário e Benjamin, assim como outros moradores da aldeia, dizem que não conhecem os detalhes do projeto, que nunca recebeu aval da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Ao falar sobre o assunto, Januário diz não ter muito a opinar, “mas algo me diz que isso não está nada certo”, disse à reportagem.

Esse parece ser só mais um capítulo da história dos Kokama de Acapuri de Cima, que remonta à trajetória de um povo que foi perseguido por séculos, com registros de contatos desde os primeiros anos da colonização espanhola no Peru. Os diferentes projetos colonizadores incluíam trabalho forçado dos indígenas nas chamadas haciendas, que também foi um dos motivos que forçou o deslocamento deste povo em busca de áreas mais retiradas na floresta amazônica. 

Família Santiago, uma das quatro que fundou a primeira aldeia, reunida na TI Acapuri de Cima um dia após Lula homologar a demarcação do território. Foto: Christian Braga/InfoAmazonia.

O resumo do Relatório de Identificação da Acapuri de Cima narra que os Kokama que vivem no território descendem do grupo que vivia no rio Ucayali, que forma a bacia do rio Solimões do lado peruano, entre as cidades de Iquitos e Contamana. Pesquisadores estimam que os Kokama chegaram às terras altas da Amazônia peruana em torno de 200 ou 300 anos antes dos exploradores europeus. Os motivos variaram entre procura por alimento, fugir de guerras contra outros indígenas, motivos religiosos e, mais tardiamente, para escapar da escravidão europeia.

O movimento continuado de migração dos Kokama foi estabelecendo aldeamentos cada vez mais próximos do Brasil. No início do século 20, parte de um grupo que vivia nas proximidades da cidade peruana Caballocha, na fronteira, imigrou para o alto Solimões, estabelecendo aldeias que até hoje se estendem por 17 terras indígenas na calha do rio nos municípios de Tabatinga, São Paulo de Olivença, Benjamin Constant, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Fonte Boa, Tefé e Jutaí, todos no estado do Amazonas.

O longo processo de migração do povo Kokama para a Amazônia brasileira foi marcado por diferentes formas de interação a depender da região em que escolhiam se assentar. Ao longo dos anos, relacionaram-se com outras etnias, como os Tikuna, Kambeba, Katukina, entre outros, e até hoje é comum encontrar Kokamas nos territórios tradicionais desses povos.

Em muitas aldeias, a cultura sofreu forte pressão para apagamento da identidade indígena. Até a década de 1980, a língua Kokama chegou a ser dada como praticamente extinta. Fora das aldeias, eles evitavam o próprio idioma com medo de perseguição. Mas graças a figuras como Januário, Santiago, e tantos outros que injetaram o orgulho de ser indígena na própria comunidade, a língua, a cultura e os costumes Kokama seguem resistindo. E agora com o território oficialmente reconhecido e homologado. 

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Fábio Bispo, em parceria com InfoAmazonia.

Cultivo de soja fica proibido em Roraima até março de 2024

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Estratégia agrícola tem como objetivo evitar a propagação da ferrugem-asiática nas áreas produtivas.

Durante os próximos 90 dias produtores de soja estão proibidos de cultivar soja em Roraima. A medida iniciou nesta terça-feira (19) e encerra em 18 de março de 2024. O objetivo é evitar a propagação da ferrugem-asiática nas áreas produtivas, quebrando o ciclo de produção de esporos do fungo.

A restrição é da Agência de Defesa Agropecuária do Estado de Roraima (Aderr), por meio da portaria nº 821, e segue determinação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Esta é a segunda vez que a medida é aplicada em Roraima.

É uma estratégia agrícola, segundo a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), utilizada para quebrar o ciclo da praga do fungo Phakopsora pachyrhizi, agente causador da ferrugem-asiática (ou ferrugem-da-soja).

Foto: Lenito Abreu/Governo do Tocantins

“O principal dano dessa praga é a desfolha precoce, impedindo a completa formação dos grãos, com consequente redução da produtividade”, 

explicou o diretor de Defesa Vegetal da Aderr, Marcos Prill.

Ele também destacou que o controle com agrotóxicos, com o uso de produtos autorizados pelo Mapa, tem se mostrado eficiente na redução dos danos da praga na lavoura, entretanto o uso ininterrupto favorece a resistência do fungo ao controle químico. “Portanto, a quebra do ciclo da praga é a forma mais eficiente para reduzir a resistência da praga aos fungicidas”. 
Vazio sanitário visa conter ferrugem asiática, praga considerada severa para o cultivo da soja. Foto: Divulgação/Embrapa

Ferrugem asiática em Roraima 

A ferrugem asiática já causou prejuízos bilionários no Brasil. Em Roraima, a doença foi identificada inicialmente em propriedades de Alto Alegre e Iracema em 2021, e logo chegou a todos os municípios que produzem o grão.

A identificação da doença ocorreu durante inspeção de rotina de plantios, quando foi realizada coleta de folhas de soja com sintomas pelos técnicos da Aderr.

A empresa acompanhou os procedimentos de coleta, acondicionamento e envio das amostras em atendimento ao termo de cooperação técnica entre as instituições. A confirmação oficial se deu após análise em laboratório oficial credenciado junto ao Mapa, confirmando a presença do patógeno no material amostrado.

Apesar da incidência da doença, o estado tem a previsão de safra para 2023/2024 de 140 mil hectares de soja. Além disso, há uma previsão de produção de 410.437 toneladas para 2023. Nos últimos quatro anos, a produção aumentou em 191%. 

Imagem: Reprodução/G1 Roraima

Conheça famílias que escolheram viver dentro de reserva ambiental em Rondônia

Jorge Lopes largou tudo para voltar para suas origens, já Adenias e a esposa sempre viveram na região mas não trabalham mais com o extrativismo. Elissandra viu quase todos os amigos irem para a cidade estudar, mas decidiu ficar.

“Nasci e me criei aqui, mas fui para a cidade. Quando voltei para passear, senti que tinha voltado para as minhas origens. Eu sou filho, neto e irmão de extrativista, esse é o meu legado”.

É com essas palavras que Jorge Lopes, de 61 anos, relembra como foi retornar para o lugar onde foi lhe dada a vida: a comunidade Silva Lopes, dentro da Reserva Extrativista (Resex) Lago do Cuniã, em Porto Velho (RO). Lá vivem descendentes de indígenas que habitavam o entorno do lago e migrantes que vieram para Rondônia em busca de trabalho em seringais.

Uma das principais características da região é mata verde e a presença de mais de 36 mil jacarés nos lagos. O local é monitorado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Icmbio).

Comunidade é formada por descendentes de seringueiros. Foto: Emily Costa/g1 Rondônia

As famílias são divididas em cinco núcleos dentro da Resex: Araçá, Neves, Pupunhas, Silva Lopes Araújo e Bela Palmeira.

Na Reserva Extrativista Lago do Cuniã em Porto Velho a existência e o sustento dependem da preservação da Amazônia. Confira a história dos moradores: 

Comunidades são divididas em cinco núcleos dentro da Resex. Foto: Emily Costa/g1 RO

‘Esse é o meu legado’ 

Jorge Lopes nasceu e viveu na reserva até os 12 anos. Quando sua mãe faleceu, ele teve que mudar para Porto Velho e morar com uma tia. Durante esse período, trabalhou em diversas atividades até encontrar estabilidade como atendente de farmácia.

Em 1994, quando voltou à comunidade para uma visita, Jorge tomou a decisão de permanecer e preservar seu legado. Ao relembra o retorno, há 28 anos, ele descreve a comunidade como um “lugar rico e povo pobre”.

Jorge notou que a riqueza do local era a natureza, que permanecia da mesma forma desde sua mudança para a cidade. No entanto, a população carecia de diversos serviços. Foi quando ele percebeu que tinha algo errado: faltava liderança e união.


Sr Jorge é descendente de extrativistas e retornou há 26 anos para a Resex

Ele decidiu conversar com os moradores e acabou se tornando líder da Associação de Moradores do Cuniã (Ascomun). No inicio, o principal objetivo da associação era lutar pelo direito de permanecerem no lugar de origem.

Isso porque, nos anos 80, a região do Lago do Cuniã foi declarada Estação Ecológica de proteção integral e não permitia a presença humana. Após uma longa batalha pelos direitos territoriais, a população local conseguiu transformar parte da Estação Ecológica em Reserva Extrativista, em 1999.

A partir desse ponto, ocorreram diversas transformações dentro da comunidade, como a implementação de energia elétrica, rede de água e acesso à internet. Surgiu também algo único: o manejo de jacarés, com frigorífico dentro de unidade de conservação.

Núcleo Silva Lopes dentro da Resex Lago do Cuniã — Foto: Emily Costa/g1 RO

Jorge ficou na liderança da Asmocun por quase uma década, até 2004. Depois disso, dedicou seu tempo à culinária regional. Atualmente, ele é especialista em pratos feitos com jacaré e peixes. É apaixonado pela reserva e não pretende voltar para a cidade.

A vida do extrativista e as mudanças

No Lago do Cuniã, as populações, em sua maioria, trabalham na extração de frutos nativos, como o açaí e a castanha-do-brasil, além do manejo de peixes e dos jacarés açu e jacaretinga.

Um desafio ainda persiste na região é a renda local. Isso porque a maioria das famílias depende das épocas produtivas de diferentes frutos. Por exemplo, a renda proveniente da castanha só ocorre entre outubro e abril. 

Comunidades locais vivem de extração de furtos e manejo de picaruru e jacaré. Foto: Emily Costa/g1 RO

Outro desafio é a crise climática: o Adenias dos Santos, filho e neto de seringueiro, dedicou mais de 25 anos da sua vida à pesca na região. Contudo, nos últimos anos, devido aos impactos da seca e a escassez de algumas espécies, ele teve que buscar outras fontes de renda.

Atualmente ele é piloto de transporte escolar (que é feito por voadeira) e conta que essa foi a forma que encontrou para ajudar no sustento da família. Além disso, ele e a esposa criam galinhas para a própria alimentação e para ajudar a complementar a renda. 

Adenias, sua filha e a esposa Valdivania moram na comunidade Silva Lopes. Foto: Emily Costa/g1 RO

Adenias vive na comunidade Silva Lopes com a esposa Valdivania, que era pescadora e agora realiza serviço de censo de pescado. A filha do casal também trabalha com o transporte escolar. 

‘Quero permanecer aqui’  

Gesuíta Gomes mora no núcleo Araça e chegou à reserva com apenas um ano de idade. Aos 63 anos, desempenha o papel de dona de casa: sua rotina inicia às 5h da manhã. 

Gesuíta é dona de casa e vive na comunidade há mais de 60 anos

A cozinha é o coração da casa de Gesuíta. Entre as panelas e pratos, a equipe encontrou a Luarinha, uma arara muito simpática que faz companhia para a dona de casa nos afazeres domésticos.

Luarinha é a arara de estimação da família. Foto: Emily Costa/g1 RO

Elissandra de Oliveira, filha de Gesuíta, tem 25 anos e participa da liderança do programa “Jovem Extrativista” promovido pelo Icmbio. O objetivo é aprender a monitorar e preservar a floresta. 

“A nossa tarefa é cuidar da floresta e da comunidade, não jogar lixo, cuidar dos animais. Eu acho que somos nós (moradores) que precisamos manter a reserva em pé”,

explica.

Embora tenha visto muitos amigos se mudando para a cidade para estudar e trabalhar, Elissandra não pensa em sair da reserva. A jovem busca oportunidades para construir sua vida dentro da própria comunidade.

Segundo Mauro Guimarães, analista ambiental do ICMBio, observa-se uma crescente tendência de esvaziamento nas Reservas Extrativistas. Isso se deve à migração dos jovens para áreas urbanas, deixando apenas os casais mais idosos. Essa evasão é uma realidade nacional.

A permanência nas reservas é restrita aos parentes próximos dos moradores e a venda de imóveis dentro da reserva não é permitida. Além disso, eles têm o direito de realizar o extrativismo do pescador e dos frutos nativos. A mineração e a atividade madeireira também não são permitidas. 

*Por Emily Costa, do g1 Rondônia

Essa reportagem faz parte da série “Vivendo da floresta” do g1 Rondônia, que conta as histórias de moradores que vivem dentro da Reserva Extrativista Lago do Cuniã, em Porto Velho.

Altura abaixo da média em crianças e jovens ribeirinhos pode estar associada a desnutrição

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Pesquisadores estudaram a prevalência de baixo peso e obesidade em povos e comunidades tradicionais de todas as regiões do Brasil. 

Uma pesquisa inédita da Universidade Federal do Ceará (UFC) e parceiros pode indicar os efeitos da insegurança alimentar na saúde de comunidades e povos tradicionais do país. Cerca de 19% das crianças e adolescentes de comunidades ribeirinhas têm altura baixa para a sua idade — a taxa mais alta dentre os povos e comunidades tradicionais. Os dados estão descritos em artigo científico publicado nesta segunda-feira (18) na ‘Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde’.

A alta prevalência de ribeirinhos com altura baixa para sua idade pode estar associada à desnutrição causada pela falta de acesso a pescados por causa de ciclos intermitentes de secas e cheias nos rios da Região Norte

O acesso a alimentos de pouca qualidade também parece ser um problema nesta e em outras comunidades e povos tradicionais: 23% das mulheres adultas de comunidades tradicionais camponesas de todo o país tinham obesidade, em comparação a 11% dos homens.

Ribeirinhos no rio Moa, na cidade de Mâncio Lima, no Acre (AC). Foto: Sergio Amaral/MDS

O trabalho analisou o estado nutricional de quase 14 mil indivíduos de comunidades e povos tradicionais de ambos os sexos, entre zero e 101 anos de idade, de todas as regiões do país, com base em informações registradas no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) em 2019.

As comunidades tradicionais representam 1% dos registros do Sisvan — e têm os ribeirinhos (50%), gerazeiros (13%) e quilombolas (10%) em maior quantidade. Mais da metade dos indivíduos com dados analisados pela pesquisa são da região Norte (56,4%), seguidas por Nordeste (20,8%), Sudeste (18,9%), Sul (2,2%) e Centro-Oeste (1,6%) — e a maioria se identifica como tendo a cor parda (65%), seguidas de branca (13,7%), amarela (7,1%), preta (5%) e indígena (4,3%).

Segundo o co-autor do estudo, Ítalo Wesley Oliveira Aguiar, da UFC, as taxas de peso e altura baixas são consideradas índices de desenvolvimento nutricional para a saúde pública. A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que para as crianças de 3 a 4 anos, o peso ideal é cerca de 15,4 kg para os meninos e 15 kg para as meninas, com uma altura para os meninos de 100 cm e, para as meninas, de 99 cm.

Aguiar explica que, os índices podem estar ligados ao isolamento e à falta de amparo a estas comunidades. “Apesar dos indicadores serem de 2019, sabemos que, desde então, a situação destas comunidades potencialmente se agravou por conta da pandemia de Covid-19 e da recorrência maior de eventos climáticos extremos como a recente seca na Amazônia”, comenta o pesquisador.

O trabalho mostra a profissionais de saúde a diversidade entre grupos étnicos, raciais e culturais no país. Considerados preocupantes pelos pesquisadores, os indicadores de saúde nutricional e alimentar destas comunidades podem servir para sensibilizar os tomadores de decisão nas instâncias públicas e profissionais da saúde.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Agência Bori

Ribeirinhos no Pará tem direitos negados por maior produtora de bauxita do país

A Mineração Rio do Norte (MRN) começou a minerar um novo platô na região amazônica em 2019, mas não consultou quatro comunidades ribeirinhas estabelecidas nas proximidades. 

Raimunda de Souza tem 62 anos. Nasceu na Amazônia, num pedaço de floresta banhado por lagos e igarapés. “Um paraíso”, é como ela define o local onde seus pais, avós e bisavós também abriram os olhos pela primeira vez. A memória familiar de Raimunda não alcança limites geográficos para além de Oriximiná, no Pará. O município tem 107,6 km², uma área maior que a de Portugal.

Foi nessa imensidão de floresta que as filhas e os netos de Raimunda também aportaram os pés no mundo, mais especificamente na comunidade de São Tomé, uma das quatro situadas no Lago Maria Pixi, onde vivem outras 183 famílias.

Foto: Brian Garvey/Universidade de Strathclyde

Comunidades tradicionais inviabilizadas  

Apesar de ocuparem a região há várias gerações, esses ribeirinhos foram invisibilizados pelo Estudo de Impacto Ambiental (EIA) realizado para que a Mineração Rio do Norte (MRN) – maior produtora de bauxita do Brasil – pudesse explorar uma nova mina num local conhecido como Platô Aramã. Na fase de licenciamento ambiental, esse estudo é responsável por apontar os prováveis impactos ao ambiente e às pessoas que dele dependem, e apresentar as medidas mitigatórias e compensatórias a serem adotadas.

A Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) publicou uma análise desse licenciamento ambiental, e apontou falhas graves no EIA, como a afirmação de que “na área do empreendimento não existem comunidades, sejam elas tradicionais ou não”, ou a de que os locais de lavra mineral são “desprovidos de qualquer ocupação humana”.

Prováveis destinatários do impacto da atividade, os ribeirinhos do Maria Pixi só descobriram que a mineradora começaria a escavar o subsolo nas proximidades de suas casas quando escutaram o barulho das máquinas derrubando a floresta. “Nós não fomos consultados”, afirma Jesi Ferreira de Castro, coordenador da comunidade de São Francisco, em referência ao direito assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aos povos e comunidades tradicionais.

A licença de operação foi concedida pelo Ibama à mineradora no fim de 2018. Em 2019, os moradores das comunidades São Francisco, São Tomé, São Sebastião e Espírito Santo solicitaram que as obras no Aramã fossem paralisadas até que a empresa realizasse um estudo de impacto específico para as comunidades; uma consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais ribeirinhas; e que fosse acordado um plano de mitigação e indenização. A reivindicação foi negada pela Mineração Rio do Norte.

Centro comunitário da comunidade Boa Nova, no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Sapucuá-Trombetas, no Pará. Foto: Teresa Harari

Em fevereiro de 2020, a equipe da Mongabay visitou Porto Trombetas – vila construída para sediar a MRN em Oriximiná – e perguntou sobre o impasse. Na ocasião, o diretor de sustentabilidade da companhia, Vladimir Moreira, afirmou que apenas povos indígenas e comunidades quilombolas teriam direito à consulta prévia, livre e informada. “Ribeirinhos não são considerados povos tribais”, disse. Entretanto, Moreira assegurou que a empresa estava dialogando com as comunidades.

As tratativas entre a MRN e as comunidades foram suspensas durante o período mais crítico da pandemia de covid-19. Já a mineração, considerada atividade essencial pelo governo de Jair Bolsonaro, seguiu em ritmo acelerado. Imagens de satélite divulgadas pelas CPI-SP mostram que, entre maio de 2020 e outubro de 2021, o platô de 345 hectares foi inteiramente desmatado. “A fartura e o sossego também se acabaram”, disse Raimunda. 

Áreas extensas da Floresta Nacional (Flona) Saracá-Taquera, antes cobertas por densa floresta e usadas por dezenas de famílias ribeirinhas para coleta de frutos nativos, foram desmatadas para dar lugar à mina de bauxita de Aramã. Foto: Jesi de Castro

Impactos da mineração no Aramã  

Morador da comunidade São Francisco, Humberto de Castro conta que a chegada da mineração à Serra do Aramã e o desmatamento feito no local a partir de 2019 geraram sérios problemas de segurança alimentar para as comunidades do entorno: “agora nós estamos sofrendo necessidade porque, no tempo em que o peixe fica ruim, a gente caça, e quase não tem mais. A gente esperava debaixo do piquiá.”

O piquiazeiro é uma árvore estratégica para prática de caça de espera naquela região, pois a flor do piquiá é muito apreciada por mamíferos como a paca, o caititu e o veado. Na borda do Platô Aramã, havia um exemplar centenário dessa árvore e uma pequena estrutura de madeira – chamada de mutá – onde os ribeirinhos costumavam se abrigar para aguardar a chegada dos animais. Ao lado de castanheiras e outras tantas espécies manejadas pelos povos da floresta, o piquiazeiro tombou para dar lugar à extração mineral. Se já não há flores perfumadas para atrair as caças, sobram ruídos de máquinas trabalhando para afastá-las dali. “Hoje, se quiser pegar algo, você vai passar noite em claro na mata”, diz Iderval Cavalcante, coordenador da comunidade de São Tomé.

Os frutos coletados para consumo próprio ou para geração de renda – como a castanha, o uxi, o patauá e a bacaba – também escassearam. Raimunda de Souza conta que muitas árvores frutíferas foram derrubadas, e que os moradores do entorno ficaram proibidos de acessar o platô. “Pra nós é muito triste ver as nossas florestas, nossas matas se acabando desse jeito. E a água também. Antes a água não era dessa cor, se antes era uma água clara, hoje não é mais, já tá uma água vermelha”, lamenta.

Detalhe de piquiá, árvore amazônica usada como estratégia de caça entre as comunidades ribeirinhas. Foto: Jovinocheik via Wikimedia Commons

Na comunidade de São Sebastião, os moradores relatam que onças começaram a matar os porcos criados para subsistência. “Essas onças, não tinha aí. Elas vêm quando a fome aperta, porque correram com elas de lá porque parte da floresta foi derrubada”, diz o coordenador da comunidade, Diego Gato.

A Mongabay contactou a MRN inúmeras vezes entre 2021 e 2023 para discutir o empreendimento no Aramã. Por email, a assessoria de comunicação disse que a mineradora havia optado por não responder aos questionamentos. 

Barreiras temporárias instaladas pela mineradora MRN para tentar conter a erosão do solo e o deslizamento de terra que começaram depois que a companhia desmatou o platô para abrir a mina de Aramã. Foto: Teresa Harari

“Nós nos tornamos pessoas estranhas” 

As quatro comunidades impactadas pela exploração mineral do Platô Aramã estão localizadas no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Sapucuá-Trombetas, criado pelo Incra e o Instituto de Terras do Pará em 2010. O PAE faz limite com Floresta Nacional (Flona) Saracá-Taquera – uma Unidade de Conservação (UC) federal de uso sustentável.

Quando a Flona foi criada, em 1989, com 429 mil hectares, havia comunidades tradicionais centenárias dentro de seus limites. Havia também o maior projeto de exploração de bauxita em operação no Brasil desde a década de 1970. O decreto de criação da UC proibiu a ocupação humana na área, mas resguardou a continuidade da exploração de recursos naturais em escala industrial.

O assentamento, de 67.749 hectares, englobou as moradias e alguns roçados das comunidades. Entretanto, grande parte dos locais onde os ribeirinhos realizavam atividades essenciais, como caça, pesca e extrativismo (de frutos, madeira, palha, cipós, óleos, resinas, cascas de árvores etc.) ficou de fora – no interior da Flona.

“Esses locais, chamados ‘pontos de trabalho’ são parte fundamental do território ocupado pelos ribeirinhos, embora a porção delimitada inclua apenas os pontos de morada e sedes comunitárias”, explica o geógrafo Hugo Gravina, que pesquisa a dinâmica de ocupação ribeirinha na região.

Durante os mais 30 anos que se seguiram à criação da Flona, as comunidades ribeirinhas continuaram a utilizar esses “pontos de trabalho”. Mas, com o início das obras no Aramã, funcionários do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio) começaram a monitorar as atividades das famílias ribeirinhas. Em março de 2021, uma operação do ICMBio batizada de Operação Caipora gerou intenso mal-estar entre os comunitários.

Multado em 40 mil reais por plantar em quatro hectares dentro dos limites da Flona, um morador da comunidade de São Sebastião relatou a truculência da abordagem à CPI-SP: “Eles [policiais e funcionários do ICMBio] chegaram em casa, cercando toda a área. Um por trás, outro pelo lado com a mão no gatilho do fuzil. Fiquei até sem reação”. O homem fazia farinha com a mulher e a filha quando foi surpreendido pelos agentes armados. Outro ribeirinho, morador da comunidade de São Sebastião, multado em 20 mil reais, disse que “nunca havia sido avisado, formal ou informalmente, da proibição de se trabalhar ali”.

Assustados com a postura repressiva do órgão gestor da Flona, os moradores estão temerosos em relação ao futuro: “parece até que somos gente estranha. Sem fazer roça, como a gente vai viver?”, pergunta Humberto de Castro. 

A vegetação em torno da mina de bauxita de Aramã está coberta por uma poeira vermelha. “Não era assim antes de a mineradora começar as atividades em Aramã”, diz o líder comunitário Jesi de Castro. Foto: Teresa Harari

Questionado sobre a pertinência da operação, o ICMBio não respondeu às inúmeras tentativas de contato feitas pela reportagem ao longo de 2021 e 2022. Apenas em 2023, após a mudança no governo federal, é que o Núcleo de Gestão Integrada ICMBio-Trombetas se manifestou por email. Afirmou que os autuados “não são moradores tradicionais Floresta Nacional Saracá-Taquera” e “não possuíam Autorização Direta para desmatamento, com objetivo de estabelecer agricultura de subsistência”.

De acordo com relatos dos comunitários ouvidos pela reportagem, todos os autuados na Operação Caipora são nascidos nas comunidades do Maria Pixi, embora um documento enviado pelo ICMBio ao Ibama afirme que eles só ocuparam a Flona recentemente, a partir de 2018. A pesquisa realizada por Gravina mostra que as áreas da Flona utilizadas pelos atuais moradores das comunidades ribeirinhas, em muitos casos, são as mesmas manejadas pelos seus bisavôs, avôs, remontando ao histórico de ocupação de quatro a seis gerações.

Esses grupos que já habitavam a Flona quando ela foi criada lutam para que seja reconhecido seu uso também nas áreas que conflitam com os interesses minerários ou madeireiros, mas esbarram na visão de sustentabilidade expressa pelo órgão ambiental. De acordo com o estudo publicado pela CPI-SP e conduzido pela pesquisadora Ítala Nepomuceno, o plano de manejo, documento que regulamenta a ocupação da Flona, “expressa profundo preconceito em relação às comunidades quilombolas e ribeirinhas”. Enquanto as práticas tradicionais são qualificadas como carentes de “critérios de racionalidade e sustentabilidade”, a MRN está associada à aplicação de conhecimento técnico-científico e ao uso de “tecnologias ambientais” para mitigação de impactos de suas atividades.

O ICMBio está revisando o plano de manejo da Flona e, apesar de reconhecer a ocupação humana na unidade de conservação, disse à Mongabay não saber se ali “existem atividades extrativistas e lícitas ou apenas atividades não extrativistas e ilícitas”.

Quem são os beneficiários do direito de consulta? 

Os ribeirinhos obtiveram uma vitória parcial quando, em agosto de 2021, o Ibama solicitou à MRN um estudo sobre os possíveis impactos socioambientais do empreendimento no Platô Aramã. Entretanto, o diagnóstico, realizado pela Golder Associates Brasil, consultoria contratada pela MRN, não identificou “relação causal entre as atividades minerárias no Platô Aramã e as questões reportadas pelas comunidades do Lago Maria Pixi” no que se refere à qualidade da água, ao ruído e à disponibilidade de caça, pesca e extrativismo vegetal”. Com base nesse estudo, em agosto de 2022, o Ibama decidiu que não há necessidade de alterar a licença de operação do empreendimento para incluir um plano de mitigação de danos e indenização às comunidades.

O parecer do Ibama justifica afirma que as comunidades ribeirinhas não se equiparam a povos tribais e que, portanto, não seria necessário realizar uma consulta nos moldes da Convenção 169 da OIT. Uma espiada rápida no portal da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, responsável pelos temas relativos a povos indígenas e comunidades tradicionais, mostra uma interpretação oposta: o Enunciado 17 , editado em 2014, diz que “as comunidades tradicionais estão inseridas no conceito de povos tribais da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho”. 

Quando as obras na mina de Aramã começaram, surgiram faixas proibindo a entrada das famílias ribeirinhas na Floresta Nacional Saracá-Taquera, local que essas comunidades visitaram por muitos anos para coletar produtos florestais. Foto: Jesi de Castro

E, de acordo com o jurista Carlos Marés de Souza Filho, “o termo povos tribais, utilizado na Convenção 169, diferenciando de povos indígenas deve ser entendido no mesmo sentido que populações, grupos ou comunidades tradicionais não indígenas usadas pelas leis brasileiras”. As normativas que, intencionalmente ou não, deixam de mencionar as demais populações tradicionais não podem se sobrepor à Convenção 169, pois ela equivale a um tratado internacional de Direitos Humanos. É o que ele explica em artigo publicado recentemente: “a sua aplicação não pode ser afastada por nenhum ato legal, seja Lei Complementar, Lei Ordinária, Medida Provisória, Decreto, Portaria etc. Isto significa que a conduta do Poder Público, em especial da Administração Pública, não pode deixar de observar os critérios estabelecidos na Convenção 169 sob alegação de que outras leis lhe são incompatíveis.”

Ao fazer prevalecer um entendimento diferente do explicado por Marés e adotado pelo MPF, o Ibama impede a caracterização das violações aos direitos dos ribeirinhos. Dessa forma, permite que outras instituições, como certificadoras e fabricantes de automóveis, tornem-se coniventes com os impactos socioambientais. 

Risco de greenwashing? 

Em fevereiro de 2022, enquanto os ribeirinhos ainda aguardavam a divulgação dos resultados do estudo solicitado pelo Ibama, a Mineração Rio do Norte recebeu a certificação internacional Aluminium Stewardship Initiative (ASI) no padrão de Desempenho. O selo avalia a cadeia de valor do alumínio e funciona como uma espécie de garantia para grandes consumidores – como as montadoras de automóveis, por exemplo – de que seus fornecedores trabalham com altos padrões de responsabilidade social e ambiental. Entre os critérios avaliados está também o respeito aos Direitos Humanos individuais e coletivos afetados pelas operações de extração de bauxita.

A reportagem entrou em contato com Fiona Solomon, diretora executiva da ASI, e questionou se, durante o processo de certificação, os auditores ouviram os ribeirinhos do Maria Pixi sobre as controvérsias relativas à mineração no platô Aramã. De acordo com Solomon, o empreendimento não foi mencionado durante a auditoria.

Numa carta pública endereçada à ASI em fevereiro de 2022, a Human Rights Watch (HRW) recomendou, entre outros pontos, que a ASI desenvolva, “em seu padrão de direitos humanos, critérios focados na resultados sofridos pelas comunidades afetadas, em vez de se basear nos sistemas e processos de gestão que as empresas possuem.” O caso que chamou a atenção da HRW para a necessidade de aprimoramento nas normas adotadas pela ASI foi o de mineradoras certificadas na Guiné, no oeste da África, cujas atividades resultaram em graves violações de direitos humanos a comunidades locais.

De toda forma, aplica-se também à MRN o receio expresso na carta de que “auditorias que não acessam os impactos reais causados no chão contribuem para aumentar a preocupação com greenwashing por parte de múltiplos atores”. O greenwashing é um tipo de maquiagem verde, que cria um rótulo de sustentabilidade para práticas que envolvem algum tipo de prejuízo socioambiental. 

Centro comunitário localizado às margens do Lago Maria Pixi, no Projeto de Assentamento Agroextrativista Sapucuá-Trombetas. Foto: Brian Garvey, Universidade de Strathclyde e projeto “Biografias não-autorizadas das cadeias de commodities”, financiado pela British Academy

Possibilidades de mudanças no horizonte 

Da mesma forma que o ICMBio, o Ibama só retornou os pedidos de entrevista feitos pela reportagem em 2023, apesar das tentativas feitas nos anos anteriores. Afirmou que a gestão atual do instituto “pretende reavaliar orientações internas relacionadas à Convenção OIT nº 169”. O objetivo, segundo a assessoria de comunicação do órgão, seria “buscar aproximação com as comunidades tradicionais para melhor compreender os impactos de empreendimentos no modo de vida dessas populações e exigir dos empreendedores medidas que reduzam ou compensem adequadamente esses impactos”.

Entre as comunidades do PAE Sapucuá-Trombetas, a expectativa é que essa reavaliação sirva para o licenciamento do “Projeto Novas Minas”, que deverá desmatar e escavar 6.446 hectares de florestas nativas entre 2026 e 2042. O Platô Aramã já foi totalmente explorado está agora em fase de reflorestamento. Aos ribeirinhos do Maria Pixi, resta aguardar a implementação das medidas de compensação ambiental, que adquiriram um tom de favor da empresa às comunidades a partir do momento em que os impactos foram considerados indiretos.

De acordo com Lúcia Andrade, coordenadora executiva da CPI-SP, “é importante ressaltar que estudos capazes de avaliar os impactos cumulativos e sinérgicos ao longo de 40 anos de atividade minerária, em Oriximiná, são necessários e, até o presente, ausentes. Estudos dessa natureza contribuiriam para que pudéssemos compreender a real magnitude gerada pelos impactos da mineração sobre as comunidades locais e o meio ambiente.”

Enquanto essa avaliação não acontece, os ribeirinhos do Maria Pixi lutam como podem contra a invisibilidade: “a mineradora tem muito dinheiro e poder, e nós só temos a nossa palavra mesmo”, conclui Jesi Ferreira, responsável por grande parte da apuração desta reportagem. 

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Thaís Borges e Sue Branford

Superando obstáculos: paratleta amazonense acumula mais de 40 medalhas de atletismo

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Richard Miguel, de 14 anos, é diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e vem rompendo barreiras graças ao esporte e ao apoio familiar.

Enfrentar barreiras. Treinar, superar obstáculos, vencer. A vida de um atleta é ter força frente às adversidades, é se esforçar para ser o melhor que se pode ser. No caso dos paratletas, a superação destas adversidades pode ser ainda mais significativa, já que mesmo frente a limitações, estes competidores conseguem se destacar nas mais distintas modalidades.

Um dos paratletas que tem acumulado medalhas apesar da tenra idade é Richard Miguel, competidor de atletismo. Com apenas 14 anos de idade, o amazonense já detém 44 medalhas, conquistadas em campeonatos regionais, nacionais e internacionais. O Portal Amazônia conversou com Raquel Costa da Silva, mãe de Richard, para entender a influência do esporte na vida do rapaz. 

Richard Miguel, medalhista das paraolimpíadas escolares. Foto: Raquel Costa/Acervo Pessoal

Esporte em desenvolvimento

A vida esportiva de Richard começou há pouco tempo, aos 12 anos de idade e, inicialmente, a intenção de seus pais era que ele pudesse ter mais interações sociais. 

Diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 2 anos, Richard sempre teve como principal dificuldade no seu desenvolvimento a comunicação.

“Aos 12 anos decidimos colocá-lo em algum esporte no qual ele pudesse interagir e trabalhar essa questão. Quando perguntei se ele queria praticar algum, ele disse ‘mãe, quero fazer atletismo, quero correr'”, relata Raquel .

O atleta, de 14 anos, já acumula 44 medalhas. Foto: Raquel Costa/Acervo Pessoal

O interesse pelo atletismo surgiu em uma aula de educação física, após o professor do colégio explicar as diferentes modalidades esportivas. 

Logo depois do contato inicial com o atletismo, ficou claro que as barreiras não existiam na pista de corrida. Seu treinador, junto a família, incentivou-o a iniciar uma jornada nas competições, inicialmente à nível regional, mas logo alcançando disputas até mesmo internacionais.

O esporte mudou outros aspectos da vida de Richard, que além de melhorar cada vez mais nas pistas, vêm, pouco a pouco, superando suas dificuldades comunicacionais e interacionais, segundo a mãe. 

“Como mãe posso dizer que a cada dia ele tem superado suas dificuldades através do esporte e de todo apoio familiar que recebe”,

assegura.

Mesmo com os percalços, de acordo com Raquel, o jovem atleta se envolve com cada vez mais atividades e competições e, quem sabe, conquistar mais medalhas. Para além das corridas, ele também se interessa por xadrez, matemática e jogos eletrônicos.


*Estagiário sob supervisão de Clarissa Bacellar

Lideranças Yanomami reforçam pedido para retirada de garimpeiros e melhorias na saúde

Indígenas ainda não enxergam efetividades nas ações do governo federal para a desintrusão de garimpeiros e assistência na saúde em Roraima.

“Eles [garimpeiros] estão vendo a fraqueza do estado brasileiro”, é como Júnior Hekurari, presidente da Associação Urihi Yanomami, avaliou as ações do governo federal para a retirada de garimpeiros da Terra Indígena Yanomami durante uma audiência do Ministério Público Federal (MPF), no último dia 13, em Boa Vista (RR). A reunião teve a participação de associações indígenas e representantes do governo federal.

Os indígenas reforçaram o pedido de retirada dos invasores e melhorias na saúde no território, que ainda enfrenta casos de malária, desnutrição e, agora, o retorno dos garimpeiros. A audiência ocorreu a pedido da Hutukara Associação Yanomami, a mais representativa do povo.

Território Yanomami volta a receber garimpeiros ilegais. Foto: Alexandro Pereira/Rede Amazônica

O território está em emergência sanitária na saúde desde janeiro deste ano. A medida foi decretada pelo governo federal para levar atendimento de saúde aos indígenas e também para retirar garimpeiros da região. Por outro lado, os indígenas ainda não enxergam efetividades nas ações.

“Isso é revoltante! Nas comunidades de Xitei, Parafuri, Parima, retornaram 100% os garimpeiros. A gente não está enxergando esse problema que está chegando de novo. Daqui a pouco eles vão tomar a Terra Indígena Yanomami de novo e impedir de fazer a Saúde nessas comunidades”, 

alertou Hekurari.

Em nota, o Ministério da Saúde informou que investiu R$ 19 milhões na operação interministerial que atende os povos Yanomami. No período, mais de 13 mil atendimentos foram realizados, 30 Polos Base e 35 Unidades Básicas de Saúde foram reabertos.

“Também foram enviados 117 profissionais pelo programa Mais Médicos, sendo 14 para o território Yanomami. Além desses, mais de 700 profissionais de saúde foram mobilizados em todo o território […] O Ministério da Saúde, trabalha para reconstruir a assistência aos indígenas da região após o desmonte dos últimos anos”. 

No último fim de semana, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) identificou que garimpeiros voltaram a operar na região conhecida como “garimpo do Rangel”, uma das mais exploradas pelos invasores dentro do território. Lá, foram encontrados até internet via satélite.

Além de organizações de Roraima, a reunião com o MPF reuniu lideranças de associações do Amazonas, onde também há Terra Yanomami demarcada. Representantes do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami e Yek’uana (Dsei-YY) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também participaram.

Encontro reuniu lideranças e representantes do governo federal. Foto: Samantha Rufino/g1 Roraima

Ao MPF e órgãos do governo federal, as lideranças mencionaram que problemas relacionados à crise sanitária e humanitária ainda permanecem no território. Entre eles, citaram: 

  • Falta de medicamentos e insumos;
  • Falta de profissionais da saúde;
  • Ausência de bases de proteção territorial;
  • Polos de saúde desativados;
  • Avanço de casos de malária;
  • Entrada de drogas e bebidas no território.
Alvo há décadas de garimpeiros ilegais, a Terra Yanomami, maior território indígena do Brasil, enfrentou nos últimos o avanço desenfreado da atividade ilegal no território. A atividade impacta diretamente na vida dos povos indígenas devido ao desmatamento, da contaminação dos rios pelo uso de mercúrio e dos danos à caça e pesca.

Em setembro deste ano, um relatório do Ministério da Defesa apontou que as áreas atingidas pelo garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami tinha reduzido em 78,51% até então em comparação com o mesmo período no ano passado. Porém, com o retorno dos invasores a situação voltou a preocupar lideranças. 

“Os aviões estão pousando livremente sem controle, então, isso a gente está analisando também. Como podemos pensar soluções para resolver o problema do garimpo ilegal que voltou nos últimos quatro meses?”,

questionou Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara.

Lideranças em reunião com procurador Alisson Marugal. Foto: Samantha Rufino/g1 Roraima

Com o retorno da atividade ilegal, as lideranças relatam que há regiões em que o atendimento de saúde fica comprometido devido à insegurança dos profissionais de saúde com a presença dos invasores. Segundo Júnior Hekurari, uma delas é a região de Xitei.

“No Xitei, só 10% da população Yanomami é atendida e nos outros 90% os profissionais são impedidos por garimpeiros que estão no meio do caminho. Tem Força Nacional lá e não pode acompanhar para fazer missões nessas comunidades. Então, a situação Yanomami está voltando ao que era em 2021 e 2022”.

Além da falta de atendimento médico, os indígenas se preocupam com o aumento dos casos de malária no território, de acordo com Dário Kopenawa. A malária é uma das principais doenças registradas na Terra Yanomami, entre adultos e crianças. A doença agrava quadros de desnutrição entre todos.

O procurador da República em Roraima, Alisson Marugal explicou que as demandas dos líderes indígenas são primordiais para o trabalho do MPF e o órgão deve cobrar providências ao governo federal. Ele é autor de diversas ações que cobraram do governo federal a retirada de garimpeiros nos últimos anos.

“É importante que essas lideranças tragam essas informações, subsidiem o trabalho do MPF, que será feito tanto extrajudicialmente, com recomendações, orientações a esses órgãos, articulação ou diálogo com esses órgãos, que estão nessas matérias de saúde e de garimpo, mas também subsidiam o trabalho judicial do Ministério Público Federal”.

Estiveram na reunião a Associação Yanomami do rio Cauaburis e Afluentes (AYRCA), Associação de Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), Associação Ye’kwana Wanasseduume (SEDUUME), Associação Kurikama Yanomami (AKY), Associação Xoromawë e Associação Parawamɨ.

O que é o efeito “ar-condicionado” das Terras Indígenas e como o marco temporal pode prejudicá-lo

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Esse fenômeno de resfriamento se dá pela evapotranspiração das árvores, que bombeiam até 1.440 mm de água por ano para atmosfera, formando os chamados rios voadores – três vezes mais que nas áreas contíguas às TIs.

Toda vez que Kaianaku Kamayurá, 32 anos, vai visitar a família na aldeia Ipawu, no centro do território do Xingu, a indígena, que mora em Brasília, sente a temperatura cair bruscamente ao entrar na floresta de 26.420 km² localizada no nordeste do Mato Grosso.

“O contraste na sensação térmica é grande. O ar circula mais fresco e chove com mais intensidade aqui dentro. Na nossa vizinhança, onde só tem campo de soja, a atmosfera é quente e seca”, diz a jovem Kamayurá, que atua como coordenadora do movimento Amazônia de Pé, uma rede de órgãos e ativistas que militam por um projeto de lei para destinar terras públicas na maior floresta tropical do planeta.

A diferença entre a região de mata densa em que vivem seus pais e o entorno, dominado pela presença de imensas fazendas, chega a impressionantes 5 °C. No restante das Terras Indígenas homologadas na Amazônia Legal, a média é de 2 °C mais baixa quando comparada a áreas contíguas não protegidas.

Ritual Kamayurá no Parque Indígena do Xingu. Foto: Rafae_Silva (CC BY-NC 2.0)

Os dados constam em um estudo do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) em colaboração com o Centro de Pesquisa em Clima Woodwell, cujo objetivo foi avaliar as consequências socioambientais do Projeto de Lei n° 2.903, que flexibiliza direitos dos povos originários e trata da tese do marco temporal, que estabelece a data da promulgação da Constituição de 1988 como parâmetro para os direitos de ocupação de território indígena.

Depois de aprovado no Senado em setembro, o PL foi parcialmente vetado por Lula. O Congresso, por sua vez, derrubou os vetos presidenciais nesta quinta-feira, 14 de novembro. Para evitar uma derrota ainda maior, o governo conseguiu um acordo para que fossem preservadas três vedações. Foram mantidos a proibição de contato com povos isolados, o plantio de culturas transgênicas em Terras Indígenas e a permissão para que territórios já demarcadas voltassem às mãos da União em caso de aculturamento.

“Nosso trabalho faz uma correlação direta entre Projetos de Lei que ferem os direitos dos povos originários com efeito no clima. Se forem ratificados, poderá ocorrer um aumento do desmatamento de 23 a 55 milhões de hectares nos próximos anos em função do avanço da grilagem e da fronteira agrícola sobre as TIs. E até 18,7 bilhões de toneladas de dióxido de carbono poderão ser emitidos para atmosfera”, afirma Martha Fellows, coordenadora no núcleo de estudos indígenas do Ipam e autora do estudo, em declaração dada antes da decisão final dos congressistas que abriu o caminho para a promulgação do PL.

Segundo Fellows, a razão do Parque Indígena do Xingu ter 3 graus a mais do que a média das outras Terras Indígenas é a divisão brusca entre a selva densa e a monocultura do entorno.

Chamado pelos pesquisadores de efeito “ar-condicionado”, o fenômeno resfriador observado de forma tão eloquente no território do Xingu se dá pela evapotranspiração. Trata-se de um importante serviço ecossistêmico em que as árvores conectam a água do solo até o ar, devolvendo umidade para a atmosfera e reduzindo o calor. 

Trecho de mata em área de plantio de algodão no noroeste de Mato Grosso, próximo à região do Parque Indígena do Xingu. Foto: Pedro Biondi/Abr (CC BY 3.0 BR)

No Xingu, este ciclo formador de nuvens que abastece os chamados rios voadores é quase três vezes maior do que nas áreas desmatadas, bombeando até 1.440 milímetros de água (por metro quadrado) ao ano para a atmosfera, enquanto no entorno desflorestado não chega a 540 milímetros. Em outras áreas ancestralmente ocupadas na Amazônia Legal, o estudo aponta uma média 9% maior de evapotranspiração em relação às regiões não conservadas.

Conforme aponta a pesquisa do Ipam, órgão que também faz parte do movimento Amazônia de Pé, as TIs da Amazônia Legal armazenam cerca de 55 bilhões de toneladas de carbono, o equivalente a 26 anos de emissões brutas do Brasil.

Se lançado no ar, além de comprometer as metas do país na redução de emissão de gases do efeito estufa e inviabilizar o compromisso com desmatamento zero até 2030, esse carbono colocaria estas regiões em um cenário de altas temperaturas e redução da umidade e chuvas.

“Fizemos um retrato do potencial que estes territórios já têm para promover serviços ecossistêmicos e ajudar na crise climática global. Deveríamos garantir a continuidade deste potencial ao invés de ameaçá-los. E os direitos indígenas são originários, não vieram depois da Constituição de 1988”, 

diz Fellows.

De olho nos problemas que a insegurança jurídica traz ao dia a dia da relação entre indígenas e não indígenas, Kaianaku Kamayurá, que é formada em Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Goiás (UFG), pede pressa aos tomadores de decisão.

“Estamos dentro do Xingu, onde vivem 16 povos. O território é homologado, mas estamos preocupados em relação à adoção do marco temporal”, diz Kayanaku. “São áreas cobiçadas pelo agronegócio, há muitos interesses envolvidos. Tem casos de invasão, extração de madeira ilegal, e o marco temporal abre uma possibilidade de rever estas Terras Indígenas já demarcadas. Pode haver diminuição do território e isso traz um risco para todo mundo. A PL 2.903 é um grande pacote de ameaças para os povos indígenas.”

A grande interrogação em torno do tema deve seguir em aberto por algum tempo. O Supremo Tribunal Federal (STF), que derrubou a tese do marco temporal em setembro, promete inviabilizar a lei na prática atribuindo a ela o entendimento de inconstitucionalidade. Em contrapartida, o Congresso pretende incluir o marco temporal em uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional), obrigando o STF a observar as regras da nova lei em suas resoluções.

*O conteúdo foi originalmente publicado pela Mongabay, escrito por Luís Patriani,  disponível aqui

Indígenas Zoró, da Amazônia Legal, detectam presença de garimpeiros em seu território

Outro aspecto mencionado é instalação de maquinários no local.

A Terra Indígena (TI) Zoró (em Mato Grosso, na Amazônia Legal) passou a lidar, neste mês, com a presença de garimpeiros em busca de ouro e diamante em seus domínios, o que preocupa mais as lideranças que representam o povo originário, que já lida com a invasão de madeireiras. A informação foi compartilhada pelo líder Alexandre Xiwekalikit Zoró, que preside a Associação do Povo Indígena Zoró (Apiz).

Apesar de ser algo recente, os zoró pangyjej já têm observado danos à vegetação e contaminação da água em seu território, como resultado da presença dos garimpeiros. Outro aspecto mencionado é a instalação de maquinários no local.

Foto: APIZ/Associação do Povo Zoró

A TI Zoró fica nos limites do município de Rondolândia (MT). O povo zoró pangyjej sempre teve uma população pequena, estimada pela Funai, na década de 1970, quando foram oficialmente contatados pela primeira vez, em uma quantidade que ficava entre 800 e 1 mil pessoas.

“A gente tem feito denúncias, sim, mas, até agora, nada”, responde o líder, acrescentando que já avisou sobre os últimos acontecimentos à coordenação regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e ao governo do Mato Grosso, quando questionado sobre recorrer ao poder público.

“Violência física a gente não sofreu, mas isso traz muita coisa para o território, porque, tendo essas pessoas dentro dele, elas atraem muitas coisas ruins. Às vezes, o caminhoneiro que carrega madeira joga cigarro e, aí, pega fogo dentro da terra indígena”, 

acrescenta.

Alexandre Xiwekalikit disse que não sabe precisar quantos garimpeiros são, ao todo, e explica que começaram a chegar no início de dezembro. O líder zoró conta que parte dos zoró pangyjej acabaram “se vendendo” e passando para o lado dos madeireiros, por receber dinheiro em troca, ainda que em pequenas quantias. Atualmente, a população dos zoró tem cerca de 700 pessoas, que vivem em 32 aldeias. Segundo ele, “sete ou oito parentes” estabeleceram relações com os invasores, que agora se dividem em madeireiros e garimpeiros.

Alexandre Xiwekalikit comentou ainda que as lideranças conseguiram, por algum tempo, convencer os zoró aliciados pelos invasores de que as propostas financeiras não valiam a pena e, com isso, reaproximá-los de sua comunidade de origem. “A gente tem conversado com esses parentes que se vendem, através da associação, do cacique. Fizemos várias reuniões e buscamos uma forma legal de essas pessoas terem uma renda, porque tudo que esses parentes fizeram foi pelo dinheiro”, diz.

A história dos zoró foi marcada por diversos tipos de invasores. Em 1961, houve a inauguração da Rodovia Cuiabá-Porto Velho, o que facilitou a chegada de agropecuárias e posseiros em seu território.

Uma preocupação atual das lideranças é como os zoró atraídos pelos invasores voltam à comunidade, o que acontece, geralmente, apenas quando o dinheiro que ganham deles acaba. Como consequência das associações a madeireiros e garimpeiros, existem a ida frequente a casas noturnas, o rompimento de vínculos familiares e a gradual perda de valores do universo zoró, na opinião do presidente da Apiz.

O que se procurou como solução foi tentar implementar algum projeto que capturasse a atenção daqueles que se deixaram levar, mas o plano falhou. “Nesses meses, a gente foi, através da associação, buscar um projeto de sustentabilidade. Acabou o ano e, no meu ponto de vista, eles viram que a gente não conseguiu e voltaram a dar ouvidos a esses invasores”, lamenta o líder. “A gente até pediu para órgãos como a Funai para ajudar. Como ainda tem poucos invasores, pediu para a Funai impedir, porque o que a gente pôde fazer, a gente fez. Agora é com o órgão”.

Parte da verba do Fundo Amazônia será destinada a merenda escolar, sinaliza BNDES

Ideia é comprar de produtores sustentáveis da Amazônia Legal.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vai destinar até R$ 336 milhões do Fundo Amazônia para promover a agricultura de base sustentável e a alimentação escolar saudável. Os recursos serão aplicados em dez projetos a serem selecionados por edital, informou o banco nesta quarta-feira (13). 

Os projetos candidatos devem atuar no fortalecimento da capacidade de produção, aquisição e consumo de alimentos sustentáveis e da sociobiodiversidade, abrangendo todos os nove Estados da Amazônia Legal.

O objetivo é levar comida saudável e segurança alimentar a crianças e jovens da rede pública de ensino, gerando emprego e renda para agricultores familiares, incluindo quilombolas, assentados e grupos de mulheres, povos indígenas e demais povos e comunidades tradicionais.

“Essa abordagem, de apoio à demanda e à oferta de forma integrada, é inovadora e abre caminho para o desenvolvimento de modelos que podem ser disseminados pela Amazônia Legal e pelo país”,

defende a diretora Socioambiental do BNDES, Tereza Campello.

Foto: Sérgio Amaral/ Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social

A seleção faz parte da iniciativa ‘Amazônia na Escola: Comida Saudável e Sustentável’, resultado de parceria entre BNDES, gestor do Fundo Amazônia, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e ministérios do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) e do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). As instituições assinarão acordo de cooperação técnica prevendo ações para implementação da chamada. 

Nova fase 

Cada projeto selecionado será apoiado com, no mínimo, R$ 10 milhões. A previsão é alcançar 56 municípios, marcando nova fase do Fundo, voltada a projetos estruturantes, de maior escala e impacto. Tereza Campello garante que a consolidação de cadeias produtivas sustentáveis e justas é fundamental para um novo modelo de desenvolvimento, baseado na bioeconomia como alternativa às atividades indutoras do desmatamento.

A diretora diz que pretende dar soluções a vários desafios conhecidos da região, conciliando geração de emprego e renda, justiça social, conservação ambiental, estímulo à economia local a partir de atividades produtivas sustentáveis e aumento da segurança alimentar de crianças e jovens. Podem participar da seleção fundações de direito privado, associações civis e cooperativas.

O BNDES informou ainda, por meio de sua assessoria de imprensa, que serão selecionadas duas propostas para o estado do Pará e uma para cada um dos outros estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Roraima, Rondônia, Tocantins, Amazonas, Maranhão e Mato Grosso). O edital pode ser acessado no site do Fundo Amazônia.